Giorgio Agamben
Temo que o que irão escutar não corresponde
exatamente ao título um tanto pomposo Lectio magistralis. Eu me
limitarei a partilhar com vocês algumas reflexões sobre a situação da obra de
arte hoje. Por isso, da minha parte, gostaria de ter intitulado a
conferência Arqueologia da obra de arte. A ideia que guia as minhas
reflexões é que a arqueologia e não a futurologia é a única via de acesso ao
presente.
Como certa vez sugeriu Michel Foucault, as
pesquisas sobre o passado, as pesquisas históricas que fazemos sobre o passado,
são apenas a sobra que paira sobre uma interrogação dirigida ao presente. É
procurando compreender o presente que nós, europeus, encontramo-nos
constrangidos a interrogar o passado. Especifiquei “nós, europeus” porque me
parece que, admitindo-se que a palavra Europa tenha um sentido – o que não é
seguro –, este, como hoje é evidente, não pode ser nem político, nem religioso
e muito menos econômico; no entanto, talvez, consista nisto: que o homem
europeu, de modo diverso dos asiáticos ou dos americanos, para os quais a
história ou o passado têm um significado completamente diferente, pode ter
acesso à sua verdade apenas por meio de um confronto com o próprio passado,
somente acertando as contas com a própria história. Por isso, creio que a crise
que a Europa está atravessando é, antes de mais nada – como deveria ser
evidente no desmantelamento das instituições universitárias e na museificação
crescente da cultura –, não um problema econômico, mas uma crise da relação com
o passado.
Vocês sabem que hoje se fala muito de crise, de
economia, e penso que quem quer que tenha um pouco de inteligência terá
compreendido que essas palavras não são usadas como conceitos, mas como
palavras de ordem para impor e obter restrições e sacrifícios que, de outro
modo e com razão, as pessoas não gostariam de fazer; ou, ainda, crise, no
fundo, hoje é uma palavra de ordem que significa apenas “obedeça!”, uma palavra
vazia de sentido. E, portanto, se há uma crise, se uma crise tem sentido, é
justo a crise da relação com o passado. Uma vez que, obviamente, o único lugar
em que o passado pode viver é o presente. E se o presente não sente mais o
próprio passado como vivo, as universidades e os museus tornam-se lugares problemáticos.
Se a arte se tornou para nós hoje uma figura, ou, talvez, a figura
eminente desse passado, então a pergunta que é preciso ser colocada é: “Qual é
o lugar da arte no presente?”. São essas as considerações que procurarei fazer.
A expressão Arqueologia da obra de arte,
que gostaria que tivesse sido o título da conferência, pressupõe que a relação
com a obra de arte tenha se tornado hoje problemática. E se, como estou
convencido – como dizia Wittgenstein –, os problemas filosóficos devem ser
colocados como perguntas sobre o significado das palavras, o verdadeiro
problema filosófico é: “O que significa essa palavra?”. Ora, isso quer dizer
que hoje a expressão obra de arte tornou-se opaca ou mesmo
ininteligível. A sua obscuridade não diz respeito apenas ao termo arte,
que dois séculos de reflexão estética tornaram problemático, mas também, e
acima de tudo, ao termo obra. Até mesmo de um ponto de vista
gramatical a expressão obra de arte, que usamos com tanta
desenvoltura, não é nada fácil de entender. De fato, não está claro se, por
exemplo, trata-se de um genitivo subjetivo, isto é, se a obra é feita da arte,
pertence à arte, ou de um genitivo objetivo no qual o importante é a obra e não
a arte. Em outra palavras, se o elemento decisivo é a obra, a arte ou a não bem
definida mistura das duas. Além disso, vocês sabem que hoje a obra parece
atravessar uma crise decisiva que a fez desaparecer do âmbito da produção
artística, na qual a performance e a atividade criativa do artista tendem cada
vez mais a tomar o lugar daquilo a que estávamos habituados a chamar obra
de arte. Ou seja, se hoje a arte se apresenta como uma atividade sem obra –
hoje, como vocês sabem, os artistas contemporâneos são artistas sem obra,
que exibem documentos de uma obra ausente –, isso pôde acontecer porque o ser
obra da obra de arte permanecia não pensado. Por isso, penso que apenas uma
genealogia do conceito de obra – conceito que julgo fundamental, mesmo se não
se apresenta assim nos manuais de filosofia – pode tornar compreensível tal
processo (que, segundo o notório paradigma psicanalítico do retorno do
reprimido – vocês sabem que Freud dizia que há um trauma, em seguida um
recalque e, depois desse recalque, o trauma reaparece na forma mitológica como
sintoma – creio, faz da obra, hoje, o grande reprimido da arte contemporânea, o
reprimido que retorna em formas patológicas). Naturalmente não posso fazer uma
genealogia desse conceito mas, no entanto, limitar-me-ei a apresentar-lhes
algumas reflexões sobre três momentos que me parecem extremamente
significativos.
Para começar, será preciso que nos desloquemos à
Grécia clássica, grosso modo, aos tempos de Aristóteles, isto
é, ao século IV a.C. Qual é a situação da obra de arte – de modo geral, das
obras e dos artistas – nesse momento? Muito diferente da que estamos
habituados. O artista, como qualquer artesão, está classificado entre os teknites, isto
é, entre aqueles que, praticando uma técnica, produzem coisas, produzem
objetos. No entanto, a sua atividade jamais é tomada como tal, mas é sempre e
apenas considerada do ponto de vista da obra produzida. Esse é um fato difícil
de ser compreendido por nós – p.ex., temos muitos testemunhos de contratos de
trabalho de artesãos e artistas: o trabalho e o tempo empregado jamais são
levados em consideração; trata-se apenas de fornecer a dita obra. Por isso, os
historiadores modernos com frequência repetem que em grego falta o conceito de
trabalho. Com efeito, um conceito de trabalho e de atividade artística como o
nosso não aparece em absoluto. Creio, entretanto, que se deveria dizer que não
é que aos gregos falte completamente o conceito, mas que eles não distinguem o
trabalho, a atividade produtiva, da obra. Aos seus olhos, a atividade produtiva
está por inteiro na obra e não no artista que a produziu. Há uma passagem de
Aristóteles em que isso é expresso claramente (é uma passagem da Metafísica dedicada
aos seus dois conceitos tão importantes: potência e ato, dynamis e energeia).
O termo energeia é apenas um termo criado por Aristóteles (e
também os filósofos, como os poetas, precisam inventar palavras; ou melhor,
creio que se deveria dizer que a terminologia é o momento poético do
pensamento). Como Platão inventa a palavra ideia, Aristóteles
inventa essa palavra, energeia, que simplesmente provém
de ergon, que significa obra, e, portanto,
significa o ser em obra, ser em ato, operação, o ser em obra
de algo. E é curioso que para sublinhar a posição entre potência e ato,
Aristóteles se sirva exatamente de um exemplo retirado de uma atividade definida
como artística. Ele diz que Hermes encontra-se em potência na madeira ainda não
esculpida e, ao contrário, em energeia, em obra, na estátua
esculpida. A obra de arte pertence de modo constitutivo à esfera do ser em
obra, da energeia. E aqui, leio rapidamente com vocês a
passagem. Aristóteles escreve que o fim é sempre a obra (o ergon),
e que a obra é sempre energeia, é sempre ser em obra,
operação. “De fato, o termo energeia”, escreve
Aristóteles, “deriva de ergon (de obra) e tende,
por isso, à completude – a um estado em que atinge a própria completude. Há
casos em que o fim último se exaure no uso. Por exemplo, na vista, quando
usamos os olhos, tudo se exaure na visão; não há produção de qualquer outra
coisa. Há ainda outros casos, por exemplo, a arte de construir, na qual além da
operação do construir produz-se também outra coisa: a casa. Nesses casos, o ato
de construir reside na coisa construída. Ela vem a ser e está junto da casa. Em
todos os casos em que é produzido algo além do uso, a energeia, o
ser em obra, está na coisa feita. Como o ato de construir está na casa
construída, assim também o ato de tecer está no tecido. Quando, ao contrário,
não surge uma obra externa, além do uso, então a energeia, o
ser em obra, estará nos próprios sujeitos. Como, por exemplo, a visão naquele
que vê e a cognição naquele que conhece.”
Paremos por um momento nessa passagem
extraordinária que, creio, mostra o quanto a concepção grega de uma obra de
arte é diferente da nossa. Está claro que os gregos privilegiam a obra em
relação ao artista ou ao artesão. Nas atividades que produzem alguma coisa, a
atividade produtiva é verdadeira e própria, diz Aristóteles, não está no
artista, mas na obra. A operação de construir uma casa, na casa, a operação de
fazer uma estátua, na estátua, e não no artista. Portanto, compreendemos também
por que os gregos, em geral, não podiam levar em grande conta o artista ou o
artesão. Enquanto a contemplação, o ato do conhecimento, está no contemplador e
no cognoscente, o artista, para os gregos, é um ser que tem o seu fim fora de
si, na obra. Isto é, ele é um ser constitutivamente incompleto, que jamais
possui o seu fim e ao qual falta o seu fim. Por isso, os gregos consideravam
o teknites – o artesão e o artista – como um banausos, um
termo que significa pessoa vulgar, não exatamente decente. Isso não significa
que os gregos não poderiam ver a diferença entre um sapateiro e Fídias, mas,
aos seus olhos, eles tinham seu fim fora de si: no sapato e na estátua do
Parthenon respectivamente. Em todo caso, a sua energeia não
lhes pertencia.
Essas são as atividades que produzem obra. Há
outras que são sem obra e que Aristóteles exemplifica, como vimos, na visão e
no conhecimento. É evidente que, para um grego, essas são superiores às outras.
Mais uma vez: não por que não fossem capazes de apreciar a obra de arte em
relação ao conhecimento ou ao pensamento, mas por que nas atividades
improdutivas como o pensamento, o sujeito possui perfeitamente o seu fim. A
obra, o ergon, é de algum modo um ultraje, que expropria o
agente da sua energeia, e não está nele, mas nas obras. Por
isso a práxis, a ação, que tem em si mesma o seu fim é para
Aristóteles de algum modo superior à poiesis, à atividade
produtiva cujo fim está na obra. A energeia, a
operação perfeita, é sem obra e tem seu lugar no agente.
Parece-me que essa concepção do agir humano
contenha em si o germe de um problema, de uma aporia, que diz respeito
exatamente ao lugar da atividade humana: em um caso, na poeisis, está
na obra e, no outro, no agente. Que se trate de um problema não superável, é
provado pelo fato de que, em uma outra passagem de outra obra, Aristóteles se
pergunta se existe algo como um ergon, uma obra, próprio do
homem. Existe uma obra do homem enquanto tal (assim como existe a obra do sapateiro,
que faz o sapato, uma obra do flautista, que toca a flauta, uma obra do
carpinteiro, que faz a cama)? Aristóteles crê que também existe uma
obra do homem em si, do homem enquanto tal. Logo na sequência, ele deixa a
hipótese de que o homem seja um ser sem obra de lado. Eu, da minha parte, acho
tal ideia interessantíssima. Ou ainda, diria que o homem é um animal
constitutivamente sem obra e que lhe falta, de maneira diversa dos outros
animais, uma vocação específica inscrita no seu destino, assinalada pela
espécie. O homem é um animal que não tem uma atividade própria. E é, talvez,
justo por isso que, diferentemente dos outros animais, pode encontrar a própria
verdade em uma atividade como a arte que, como é notório, é privada de uma
finalidade (de uma finalidade ao menos definível).
Dizia-lhes que Aristóteles deixa de lado o
problema de ser o homem sem obra ou de ter ele uma obra, e responde que a obra
do homem existe e é ser uma obra da alma segundo a razão. Mas, se nos
perguntarmos, por outro lado: o que é do homem enquanto tal? Existe uma obra do
homem enquanto tal? Ou ainda: é o homem um ser condenado à cisão, porque há
nele duas obras diversas (uma que lhe compete enquanto homem e outra, mais
segura, que lhe compete enquanto sapateiro, flautista, escultor etc.)? Se
confrontarmos essa concepção da obra de arte com a nossa, podemos rapidamente
dizer que o que nos separa dos gregos é que, num certo ponto – e podemos
fazê-lo grosso modo coincidir com a modernidade –, a arte saiu
da esfera das atividades que têm a sua energeia fora de si,
numa obra, e se deslocou ao âmbito das atividades que, como o conhecimento, têm
em si mesmas seu ser em obra. O artista não é mais um banausos, um
artesão, constrangido a perseguir a sua completude fora de si na obra mas, como
filósofo, como pensador, reivindica o domínio e a titularidade da sua atividade
criativa. Mas o que ganhou de um lado, a independência em relação à obra, vem,
por assim dizer, pela falta do outro. Se ele possui em si mesmo a sua energeia, e
pode assim afirmar a sua superioridade, de certa maneira, sobre a obra, esta
torna-se para ele de algum modo acidental. Transforma-se em um resíduo de
alguma maneira não necessário à sua atividade criativa. Enquanto na Grécia o
artista é uma espécie de resíduo embaraçante, um pressuposto da obra, na
modernidade a obra é de algum modo um resíduo embaraçante da atividade criativa
e do gênio do artista. É como se o gênio, a atividade criativa, procurasse
firmar-se para além daquilo que produz, ou seja, firmasse seu valor além da
obra que produz.
A hipótese que gostaria de sugerir é que obra e
operação criativa são duas noções complementares que formam com o artista como
seu meio o que lhes proponho chamar de máquina artística da modernidade. E
jamais é possível separar um desses três elementos. Juntos formam algo como
os anéis de Borromeo (três círculos unidos de tal modo que
nenhum deles pode ser separado sem que separe também os outros). Obra, artista
e operação criativa estão ligados juntos numa espécie de máquina de três faces
que hoje, de alguma maneira, gostaria de colocar em dúvida.
Gostaria de fazer um salto de vários séculos e
da Grécia deslocar-nos para a Alemanha, ao início dos anos vinte do século XX.
Não às desordens e tumultos que, como vocês sabem, naqueles anos marca a vida
das grandes cidades alemãs, mas ao silêncio e recolhimento da abadia beneditina
de Maria Lach, na Renânia. Ali um obscuro monge chamado Odo Casel publica em
1923, o mesmo ano em que Duchamp termina, ou melhor, abandona em estado de incompletude
definitiva o Grande Vidro, um livro denominado A
Liturgia como festa mistérica, que se tornaria uma espécie de
manifesto daquilo que seria depois chamado de movimento
litúrgico. Vocês sabem que os primeiros trinta anos do século XX foram
corretamente batizados de A idade dos movimentos. Tanto à
direita quanto à esquerda do quadro político, os partidos cedem lugar aos
movimentos (vocês sabem que tanto o nazismo quanto o fascismo se definiram
antes de mais nada como movimento). Mas também na arte e nas ciências – por
exemplo, quando em 1914 Freud procurava um nome para sua criação, não sabia se
a chamava escola psicanalítica até que, a um certo ponto,
decidiu chamá-la de movimento psicanalítico. Em todo aspecto
da cultura os movimentos substituem as escolas e as instituições. É nesse
contexto que também na Igreja Católica começa esse grande movimento
chamado movimento litúrgico. A aproximação que fiz entre a
prática das vanguardas e a liturgia, entre os movimentos da vanguarda e o
movimento litúrgico, não é um pretexto. Na base da doutrina desse monge, Casel,
está a ideia de que a liturgia, a atividade litúrgica – notem que a palavra
pertence originariamente ao vocabulário político; etimologicamente
significa obra pública, obra para o povo –, seja de modo essencial
um mistério. Mistério, no entanto, não significa um ensinamento escondido, uma
doutrina secreta e assim por diante. Na origem, segundo Casel, como nos
mistérios de Elêusis que eram celebrados na Grécia, mistério significa uma
atividade, uma práxis, uma espécie de ação teatral feita de
gestos e palavras que se realizam no tempo e no mundo para a salvação do homem.
Segundo Casel, o cristianismo não é uma religião, uma confissão no sentido
moderno do termo, isto é, um conjunto de verdades e de dogmas que se trata de
reconhecer e professar. Em absoluto não; a religião cristã é um mistério, isto
é, uma ação litúrgica, uma performance cujos atores são Cristo e seu corpo
místico, ou seja, a Igreja. E tal ação é sim uma práxis especial,
mas ao mesmo tempo constitui a atividade humana mais universal e mais
verdadeira, na qual em jogo está a salvação dos que a realizam e daqueles que
dela participam. Vejam que a liturgia, nessa situação, deixa de ser a
celebração de um rito exterior que tem a verdade em outro lugar, num dogma. Ao contrário,
segundo Casel, apenas na realização aqui e agora dessa ação absolutamente
performática que realiza a cada instante o que significa, o crente pode
encontrar a sua verdade e a sua salvação. De acordo com Casel, por exemplo, a
missa, a celebração do sacrifício eucarístico, não é uma representação ou
uma comemoração do evento salvífico, mas é ela
mesma o evento. Não se trata de uma representação [rapresentazione] em
sentido mimético, mas de uma reapresentação [ripresentazione], na
qual a ação salvífica de Cristo é tornada efetivamente presente
por meio dos símbolos e das imagens que a significam. Por isso se diz que a
ação litúrgica age ex opere operato, pelo próprio fato de ser
realizada, naquele momento e naquele lugar, de modo independente, por exemplo,
das qualidades morais do celebrante (vocês sabem que, por exemplo, se um padre
é um criminoso e quer batizar uma mulher para abusar dela, o batismo é,
entretanto, válido justo por que é independente do ator, age de maneira
performática). É a partir dessa concepção mistérica da religião, segundo Casel,
que gostaria de lhes propor minha hipótese de que entre a ação sagrada da
liturgia e a práxis das vanguardas artísticas da assim chamada
arte contemporânea haja algo mais do que uma simples analogia. É fato que uma
especial atenção por parte dos artistas já tinha aparecido nos últimos decênios
do século XIX, em particular nos movimentos artísticos e literários que se
definem absolutamente com termos vagos como simbolismo, estetismo e
decadentismo que, como vocês sabem, são parte do caldo cultural do qual
nascerão as vanguardas. Pari passu ao processo que com a
primeira aparição da indústria cultural seguidora de uma arte pura em direção
às margens das produções sociais, artistas e poetas – basta tocar no nome de
Mallarmé – começam a observar a sua prática como a celebração de uma liturgia.
Liturgia no sentido próprio do termo, enquanto comporta tanto uma dimensão
soteriológica de salvação, na qual parecerá estar em questão exatamente a
salvação espiritual do artista, quanto uma dimensão performática, na qual a
atividade criativa assume a forma de um verdadeiro ritual, desvinculado de todo
significado social e eficaz pelo simples fato de ser celebrado. Em todo caso, é
justo esse segundo aspecto que foi assumido de modo decidido pelas vanguardas
do século XX, que constituem a extremização daqueles movimentos – e, algumas
vezes, são também uma paródia dos movimentos. Creio não anunciar nada de
extravagante sugerindo a hipótese de que a vanguarda e os seus modelos
contemporâneos devem ser lidos como a lúcida e com frequência consciente
retomada de um paradigma essencialmente litúrgico. Como, segundo Casel, a
celebração litúrgica não é uma imitação ou uma representação do evento salvífico
mas é ela mesma o evento, do mesmo modo, o que define a práxis da
vanguarda do século XX e de seus modelos contemporâneos é o decidido abandono
do paradigma mimético representativo em nome de uma pretensão genuinamente
pragmática. Trata-se de uma performance, de uma ação. A ação de um artista se
emancipa do seu tradicional fim produtivo, ou reprodutivo, e torna-se uma
performance absoluta – uma pura liturgia que coincide com a própria celebração
e é eficaz ex opere operato e não pelas qualidades do artista.
Numa célebre passagem da Ética, Aristóteles
tinha distinguido o fazer, a poiesis, que
objetiva um fim externo, uma obra, da práxis, que tem em si
mesma o seu fim. Entre esses dois núcleos, liturgia e performance
artística, insere-se uma forma de híbrido, de terceiro, no qual a
própria ação quer representar-se como obra.
Neste ponto, para o terceiro e último momento
desta minha sumária arqueologia, gostaria de convidá-los a ir a Nova Iorque,
por volta de 1916. Aí há um senhor, que não saberia como definir – talvez um
monge, como Casel –, de nome Marcel Duchamp que com uma escolha – por certo,
nesse ato não um artista – inventa o ready-made. Vocês sabem
que Duchamp, propondo aqueles atos existenciais e não obras de arte, que são
os ready-made, sabia perfeitamente que não operava como um
artista. Sabia também que a estrada da arte tinha sido bloqueada por um
obstáculo intransponível que era a própria arte, então constituída pela
estética como uma realidade autônoma. Nos termos desta minha arqueologia, diria
que Duchamp tinha compreendido que o que bloqueava a arte era exatamente o que
defini como máquina artística, que havia atingido, a partir da
liturgia da vanguarda, a sua massa crítica. O que faz Duchamp para explodir ou
ao menos desativar a máquina obra-artista-operação criativa? Ele
toma um objeto qualquer de uso, ou mesmo um mictório, e, introduzindo-o num
museu força-o a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente, exceto pelo
breve instante que dura no efeito de estranhamento e da surpresa, na realidade,
nada surge aqui à presença. Não a obra, pois se trata de um objeto de uso comum
produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de modo
algum poiesis, produção, e nem mesmo o artista, pois aquele
que assina com um irônico nome falso o mictório não age como artista, mas como
filósofo, como crítico ou, como Duchamp amava dizer, como alguém que respira,
um simples vivente. Como vocês sabem, o que ao contrário depois surgiu é uma
associação, infelizmente até agora ativa, de hábeis especuladores
e espertalhões que transformaram o ready-made em
uma obra de arte. Não que eles tenham conseguido recolocar verdadeiramente em
movimento a máquina artística – e esta, diria, gira hoje no vazio –, mas a
aparência de movimento consegue movimentar, espero que ainda não por muito
tempo, os templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea.
Gostaria agora de concluir esta minha brevíssima
arqueologia sugerindo-lhes, de algum modo, abandonar um pouco a máquina
artística ao seu destino. E, com isso, abandonar também a ideia de que haja
alguma coisa como uma suprema atividade artística do homem que, por meio de um
sujeito, realiza-se numa obra ou numa energeia e que extraia
destas o seu incomparável valor. Diria que é preciso redesenhar desde o início
o mapa do espaço em que a modernidade situou o sujeito e as suas faculdades.
Artista ou poeta não é quem tem a potência ou a faculdade de criar, que um belo
dia, por meio de um ato de vontade ou obedecendo uma injunção divina, decide,
como o deus dos teólogos, não se sabe como e por quê, executar algo. Assim como
o poeta e o pintor, também o carpinteiro, o sapateiro, o flautista,
enfim, todo homem, não são o titular transcendente de uma capacidade de agir ou
de produzir obras. Ao contrário, são viventes que no uso, e apenas no uso de
seus membros – como do mundo que os circunda – fazem experiência de si e
constituem-se como formas-de-vida. A arte é apenas o modo no qual o anônimo que
chamamos artista, mantendo-se em constante em relação com uma prática, procura
constituir a sua vida como uma forma-de-vida. A vida do pintor, do músico, do
carpinteiro, nas quais, como em toda forma-de-vida, está em questão nada
menos do que a sua felicidade. Gostaria de concluir com as palavras de um
grande pintor de Scicli, que à pergunta “para o senhor, Piero Guccione, pintar
é mais que viver?”, apenas respondeu: “Pintar é certamente para mim a única
forma de vida, a única forma que tenho para defender-me da
vida.”
Conferência de Giorgio Agamben em Scicli, Sicília, em 06 de agosto de 2012. Transliteração e tradução ao português: Vinícius Nicastro Honesko.
O vídeo da conferência está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=A7NrMgIoEfg
Imagem: Piero Guccione. Interno, esterno, 1962.