segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Anno Domini Nostri Iesu Christi e seus lacaios


Os lacaios de um deus sem rosto - mentecaptos trajados de branco - começam o ritual do servilismo. Operam rigorosamente dentro das distâncias que os separam de seu deus, mimetizando de modo infantil (no pior sentido) os sacrifícios sanguinolentos de outrora de forma banal: o mal impregna este mundo de seres que já não são capazes da faculdade de julgar, sobre a qual falava o velho onanista de Königsberg. Cantam a roda de Chronos deleitando-se com os objetos fantasmagóricos que há pouco seu sanguinário deus lhes havia dado (objetos que prometem uma completude que, porém, mostram apenas suas faltas - suas tão detestadas e esperadas culpas). A ânsia pelo ciclo, pelo cíclico, é o mal estar transformado em mercadoria. Jogam pólvora aos ares, lamentam perdas que nunca foram ganhos, clamam pelos próximos cretinos índices de "expectativa de vida" (expressão das que me causam mais nojo), deixando a vida à promessa e à venda. Incapazes de imaginar, são também incapazes tomar decisões. Repetem um ciclo mítico de esperança e que, entretanto, carrega o mundo à catástrofe. Como rolos de feno num deserto, vão ao sabor desses ventos míticos até que hoje, na comemoração fantástica, empesteiam o primeiro balneário que lhes aparece pela frente. E viva o Anno Domini Nostri Iesu Christi!!!

Imagem: Rogier van der Weyden. Tríptico Bladelin (asa esquerda). 1445-50. Staatliche Museen, Berlin. 

sábado, 29 de dezembro de 2012

Pequeno delírio em parágrafo V


Se a serpente destila veneno por suas presas, o escritor o faz por meio de seus dedos no teclado. A vontade inóspita de desfazer-se dos sentimentos em letras, em sons suscitados no ato da escrita, na voz que lhe falta a todo instante - que, no entanto, a serpente possui desde seus primeiros movimentos. Desfaçatez é a escrita - é o delírio do animal de voz articulada. É com ódio que rompo meu silêncio e tento lançar essas vexatórias palavras ao tempo, ao relento. Descobertas, palavras perdidas, é a vida que crepita junto com o som seco dos dedos no teclado. É o veneno que, aos poucos, conduz à morte. 

Imagem: Paul Gauguin. Autorretrato. 1889. National Gallery of Art, Washington.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Glosa delirante aos delírios


A vida é a arte da tauromaquia. Envolve o risco, a trapaça, o gesto, o bailado contra uma natureza estúpida e bela.
Mas não é a tauromaquia cantada por Goya e Leiris, o épico tauromático, o espetáculo viril e trágico.
Esta vida é sórdida como a corrida de touros magros no pequeno coliseu mexicano, onde a mística do toureiro sub-proletário não ultrapassa o escapulário e o mezcal.
Afinal, nada ultrapassa a sordidez, Blanchot morreu em uma solidão teatral e sórdida: Des Esseintes em uma quinta pequeno burguesa de Île-de-France. Sonhando em ser um dos moleques mexicanos de Buñuel.
Todo épico e toda tragédia são parodicamente farsescos. A metafísica não explica os gritos desesperados do mundo.
O desespero é sempre mundano, sem edulcorações.
A vida bebe em botecos baratos, onde os espelhos de Narciso foram quebrados a pauladas. Os cacos estão cobertos pela poeira misturada ao suor.
A vida é a memória da mulher assassinada na periferia de Ciudad Juárez, como nos livros daquele chileno intempestivo.

Imagem: Fotograma de "Los olvidados", de Buñuel. 

Pequeno delírio em parágrafo IV


"A comunidade não é o simples colocar em comum, nos limites que ela se traçaria, uma vontade partilhada de ser em muitos, seja para nada fazer, isto é, fazer nada mais do que manter a partilha de 'algo' que precisamente parece ser já sempre subtraído à possibilidade de ser considerado como uma parte para uma partilha: palavra, silêncio." Maurice Blanchot

Corneando as plásticas noites de domingo, o touro aquático - que, outrora, poderia ter sido o enviado de Poseidon a Minos - desfaz-se do rebanho para saborear o ardor da conquista. No mesmo outrora, assola uma ilha e, talvez, é a peça chave dos embustes de um sequestro. Porém, nas noites em que o presencio, desfere seus golpes em silêncio. É um chiste, a própria imagem dos homens solitários que golpeiam seus corpos, numa espécie de ritual masoquista infinito, em busca da parte que lhes falta. Tolos homens, tolo touro, não sabem que a parte sempre lhes falta, não importa quão hábeis sejam na arte dos golpes. Em seus quase loquazes movimentos, os cornos do touro fazem faísca ao raspar o chão e resplancescem o céu da noite dominical, tal qual seus reflexos, os perdidos e silenciosos homens, faziam ao sair das cavernas atemporais ao frio e descoberto céu das eras glaciais. Sombras e luzes são os espasmos dos corpos em silêncio; metáforas vazias (e qual não o é?) do périplo dos homens na busca por seu "algo". O touro e o silêncio tentam rebater firmes meus delírios - e qual a tolice de se contar os delírios? São sempre incontáveis. Há somente um espectro: o in-comunicável - que, aqui, em meio ao vazio dissimulado da moça que uma vez fora raptada, faz-se ainda audível. A partilha é desde sempre interdita e a palavra, ou o silêncio, soltam-se em riso incontrolável diante da patética e, por isso, deliciosa existência... 

Imagem: Rembrandt. O rapto de Europa (detalhe). 1632. J. Paul Getty Museum, Los Angeles.     

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Pequeno delírio em parágrafo III


A realidade é inegável. Não por um seu suposto caráter evidente, pois não há dar-se a ver. Não por uma impossibilidade de dela escapar, pois o que são as palavras senão adendos fugidios à realidade? Não, a realidade não é uma conta das idades do Real - isso que não cessa de não se escrever -, mas tão-somente uma das pontas de um dos icebergs da possibilidade. Supor um inexorável, supor um tempo composto de coisas, supor, su-pôr, é sobrepor realidades: eis as falácias da inegabilidade da realidade. Mas nada diz o caráter inegável da realidade. Não por sua proximidade com a morte (que só sabemos por sermos compostos pelas potencialidades falsas chamadas palavras), não por sua aparente intransigência em relação às consciências (aparência e consciência, mais uma vez, apenas nosso toque Real na realidade). Não. A realidade é inegável porque não se nega o que nunca se afirma.

Imagem: Nicola Scafidi. Luchino Visconti durante as filmagens de "Gattopardo". Palermo. 1962.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Pequeno delírio em parágrafo II


As palavras me vêm como pedregulhos atirados por esses insolentes moleques da vizinhança. Armo-me com uma tesoura para cortá-las, melhor, para dissecá-las e colocá-las à luz. Insuspeitado, como o velho Murilo, vejo-as como elementos que se assanham e querem me ajudar a organização do meu lúcido delírio. Moleques travessos! Não tenho mais forças e sucumbo com a primeira pedrada em minha cabeça. Tento, mais uma vez, apanhar os resquícios de sentido que elas poderiam me trazer. Petardo! E nada mais. Dominam-me impressões avassaladoras do inconveniente de ter nascido (mas que bom inconveniente...). Batalho em vão. São as imagens das Highlands que minam o Canal Grande de Venezia e, como as pedras, derrubam-me. Se um livro é um suicídio diferido, Cioran, sua matéria, as palavras, é a morte a conta gotas.

Imagem: Nicola Scafidi. Emigrante. Palermo, 1960.

Glosa marginal ao Soneto de Fidelidade


e se a vida não fosse mais que esta sequência de estórias indefinidas, imponderáveis, incompletas
um grande labirinto sem centro e sem buracos para se esconder
e se meus dias não se passassem neste úmido equador metafísico
entre a indecência e o desespero
talvez eu pudesse cuidar de você

as portas-estandartes das femmes authentiques me chamariam de canalha, ora esta,
cuidar de uma mulher autônoma
mas cuidar não é carregar a bolsa
(tenho vontade de dar voz de assalto ao modernóide com a bolsa da companheira à tiracolo)
nem respeitá-la como a putinha sacra da princesa da Inglaterra
é tratá-la como mulher, ponto.  

todos nós inautênticos metafísicos canalhas poetas desesperados
leitores do Bolaño e de outros cachaceiros
precisamos é de um colo

quer ser sugada para o buraco negro de uma vida bretoniana?
às travessuras e travessias de um huckleberry finn crescido
que ainda sonha em se alistar em alguma guerrilha de quinta
por mera aventura?

aceitaria minha intolerância à presunção literária bundona que nos ronda
ao ponto de dizer que o tal de galera, que você gosta, é um cretino sem precisar ler nada do sujeito?
aceitaria meus pesadelos e, por vezes, meu mutismo? 

aceitaria minhas derivas etílicas ao lado de um insurgente Marechal
conduzindo as moças do centro velho?
aceitaria que a vida finda e que nenhum jardim ou cercania poderá ser planejado
se sonho com selvas e desertos?
aceitaria um amor tuaregue
sem videoprogramas dominicais
mas com uma rede e a ideia repentina de morar um tempo no Tocantins?

e, se for responder sim a estas provocações,
que isto não fosse feito na frente de um padre, pároco, pastor, professor, cartorário
ou outro filho da puta deste mundo das merdas administradas?

Imagem. Edward W. Kemble, Ilustração da edição de "The Adventures of Huckleberry Finn", 1885.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Pequeno delírio em parágrafo


 a Paulo Leminski
"a poesia é a realidade.
o campo da poesia são os homens.
se fossem as palavras, estaríamos feitos." - Oscar Conde.

Às voltas com uma espécie de realismo visceral, toco palavras como toco a carne. Espúria ilusão dos jogos de braços e abraços, caro Leminski. Não há toque no campo da poesia, a encarnação é o feitiço do per-fazer-se. Estaríamos feitos, mesmo se o abismo das palavras nos engolisse; estaríamos feitos, mesmo se as palavras fossem o sopro que falta nos momentos em que a realidade - o doce insulto da palavra à vida - esboça seus desenhos opacos na carne dos homens: um passo sem solução. O mistério da vida profana é o indulto que as palavras se permitem nos dar - a nós, pobres e tolos palavrórios soltos em carne pelos abismos e pelos campos floridos de um verão quase invernal.

Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Imagens de Antanas Sutkus




O despertar é o lapso do sonho da vida. O vagar das imagens em negativo, de Antanas Sutkus - são mais de um milhão de negativos que o fotógrafo mantém em seu acervo e que aos poucos vem revelando -, expande sonho em meio ao turbilhão do despertar traumático da experiência soviética. As fotografias que se revelam, anos após terem sido tiradas, são os impossíveis de outrora que, inesquecíveis no olhar fotográfico de Sutkus, surgem como puncta que tocam os olhares que a eles se dirigem. As máquinas de refrigerante, os rostos em meio a caminhos repletos das folhas outonais, as mulheres e crianças de olhares tristes. É o sonho vívido da vida que, após o vagar inadvertido pelas décadas da oficialidade das poses e retratos, torna-se, por ínfimos instantes (o do olhar de quem se depara com tais imagens), um lapso de memória e, portanto, para lembrar Picabia, a forma da vida. Dos sonhos imaginados em que estamos imersos surgem imagens do despertar. A moça que lança seu olhar à rua, debruçando-se como uma gárgula desde o alto de um edifício, rompe a imobilidade eterna das feias figuras das igrejas e, como um despertar, exibe a beleza em movimento da memória. Sartre caminha no deserto - o apogeu do existencialismo: e como não lembrar da praia em que Camus coloca seu estrangeiro parado, olhando para o mar e para o sol? - acompanhado apenas pela sombra de Beauvoir (e talvez seja uma das melhores imagens de Sartre). As duas crianças que de dentro de uma espécie de tambor (o mesmo que se transforma em embarcação para um menino em outra imagem)  deixam seus sorrisos sonoros ecoarem pelos tempos em que permaneceram negativas. O gesto da criança que se afaga e se apega na então gigantesca mão de um adulto, como que a lembrar que qualquer mitologia de segurança é estraçalhada pelo mais singelo gesto infantil. As fotografias de Sutkus são apenas imagens que irrompem a crosta de uma historiografia oficial e lançam uma sombra de seus presentes revelados em seus passados negativos. Como pontiagudas lâminas, cortam o sonho e apenas remontam uma possível história da vida.































Imagens: Antanas Sutkus. Maratona na rua da Universidade, em Vilnius, 1959; Uma mão de mãe, 1966; Jean-Paul Sartre na Lituânia, 1969; Festival de música, 1970.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Sonhos e abismos


"O abismo entre nós e deus está cheio do escuro de deus e, quando alguém o prova, deve calar-se e gritar em tal abismo (é mais necessário isso do que o atravessar)." Rilke e seu deus absconditus passeam de mãos dadas. Nebulosa noite em que a luz do sonho não se apaga - e há luz onde a noite escura insiste em fazer calar? Panteras correm e não me deixam ver senão seus olhos: assustadores, mas ao mesmo tempo perplexos; inquisidores, mas com uma pitada de comoção. Relaxo a cabeça nestes travesseiros desgastados por cabeças que jamais conhecerei. Vejo o abismo como talvez nunca antes. Silêncio, palavras: o palavrório mordaz desses seres que jazem - vivem mortos - nos seus trajetos abismais e quotidianos. Onde está o escuro de deus?! Corremos o risco de atravessá-lo sem nem mesmo perceber aqueles ferozes olhos da pantera. Sou eu quem grito! É o espanto da existência. Despertar...

Imagem: Hieronymus Bosch. Inferno: a queda dos condenados. 1500-1504. Palazzo Ducale, Venezia.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Revolta contra a poesia


Nós sempre escrevemos a partir da encarnação da alma, mas ela já tinha acontecido, e não por nós, quando nós entramos na poesia.
O poeta que escreve se dirige ao Verbo e o Verbo tem suas leis. Está no inconsciente do poeta crer automaticamente nessas leis. Ele se crê livre mas ele não o é.

Há algo atrás de sua cabeça, ao redor das orelhas de seu pensamento. Algo está em germe na sua nuca, onde já estava quando ele começou. Ele é o filho de suas obras, talvez, mas suas obras não são dele, pois o que era dele na sua poesia não foi ele que nela tinha colocado, mas esse inconsciente produtor da vida que o tinha designado para ser seu poeta e que ele não tinha designado. E que nunca estava à sua disposição.

Eu não quero ser o poeta de meu poeta, desse eu que quis me escolher poeta, mas o poeta criador, em rebelião contra o eu e o si-mesmo. E me lembro da rebelião antiga contra as formas que vinham até mim.

É pela revolta contra o eu e o si-mesmo que me livrei de todas as más encarnações do Verbo que sempre foram, para o homem, um compromisso de covardia e de ilusão, de não sei qual fornicação abjeta entre a covardia e a ilusão. Eu não quero um verbo vindo de não sei qual libido astral e que foi completamente consciente nas formações de meu desejo em mim.

Há nas formas do Verbo humano não sei qual operação de voracidade, a auto-devoração de rapina em que o poeta, limitando-se ao objeto, vê-se comido por esse objeto.
Um crime pesa sobre o Verbo feito carne e o crime é o de ter admitido isso. A libido é um pensamento de animal e são todos esses animais que, um dia, metamorfosearam-se em homens.

O verbo produzido pelos homens é a ideia de um pervertido enterrado pelos reflexos animais das coisas e que, pelo martírio do tempo e das coisas, esqueceu que o tínhamos inventado.
O pervertido é aquele que come seu si-mesmo e quer que seu si-mesmo o nutra, procura no seu si-mesmo sua mãe e quer possui-la. O crime primitivo do incesto é o inimigo da poesia e o assassino de sua imaculada poesia.

Eu não quero comer meu poema, mas quero doar meu coração a meu poema e o que é meu coração ao meu poema. Meu coração é o que não é meu. Dar seu si-mesmo a seu poema é arriscar também ser violado por ele. E se eu sou Virgem para meu poema, ele deve permanecer virgem para mim.

Eu sou esse poeta esquecido, que se viu cair na matéria um dia e a matéria não me comerá. 
Eu não quero esses reflexos envelhecidos, consequência de um antigo incesto vindo de uma ignorância animal da lei Virgem da vida. O eu e o si-mesmo são esses estados catastróficos do ser em que o Vivente se deixa aprisionar pelas formas que percebe de si. Amar seu eu é amar um morto e a lei do Virgem é o infinito. O produtor inconsciente de nós-mesmos é aquele de um antigo copulador que se entregou às mais baixas magias e que retirou uma magia da infâmia que há em se reduzir si-mesmo a si-mesmo sem fim até fazer sair um verbo do cadáver. A libido é a definição desse desejo de cadáver e o homem em queda é um criminoso pervertido.

Eu sou esse primitivo descontente com o horror inexpiável das coisas. Eu não quero me reproduzir nas coisas, mas quero que as coisas se produzam por mim. Eu não quero uma ideia do eu no meu poema e nele não quero me rever.

Meu coração é essa Rosa eterna vinda da força mágica da Cruz inicial. Aquele que se crucificou Nele-Mesmo e por Ele-Mesmo jamais voltou a si-mesmo. Jamais, pois esse si-mesmo pelo qual sacrificou Ele-Mesmo, também a este ele deu à Vida após o ter forçado em si-mesmo a tornar-se o ser de sua própria vida.

Eu quero ser para sempre este poeta que se sacrificou na Cabala do si para a concepção imaculada das coisas.    

Antonin Artaud. Révolte contre la poésie. In.: Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. pp. 937-938. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Antoni Artaud. Autorretrato. 1947

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Pequeno Parágrafo sobre o Azul


A máquina do mundo roda sobre minha cabeça. O som é azul, os sentidos faltam e a máquina continua seu giro inexorável. "Há manchas azul-claras no meio do esplendor do amarelo. Só meus olhos viram as manchas azul-claras. Fizeram bem aos meus olhos. Por que ninguém mais viu as manchas azul-claras no meio do esplendor do amarelo?" dizia Kandisky, talvez se sentindo mal com o peso da máquina sobre sua cabeça. Não há roteiros para o azul. Ainda ouço o som do canto dos pássaros do paraíso: ecoam azul em meio ao amarelo. Olho com mais olhos e nem mesmo o claro do azul ainda traz sentido. Falta. E talvez sejam olhos outros que deveriam olhar através dos meus pontiagudos olhos-armados. Trevas azuis. Lance de um dia. No mar profundo, a dor da existência. O azul eterno, irônico e opressor. Seu som incontrolável agonia. Azul é a cor da máquina do mundo.

Imagem: Kandinsky. Blue Crest. 1917.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Arqueologia da obra de arte



Giorgio Agamben


Temo que o que irão escutar não corresponde exatamente ao título um tanto pomposo Lectio magistralis. Eu me limitarei a partilhar com vocês algumas reflexões sobre a situação da obra de arte hoje. Por isso, da minha parte, gostaria de ter intitulado a conferência Arqueologia da obra de arte. A ideia que guia as minhas reflexões é que a arqueologia e não a futurologia é a única via de acesso ao presente.
Como certa vez sugeriu Michel Foucault, as pesquisas sobre o passado, as pesquisas históricas que fazemos sobre o passado, são apenas a sobra que paira sobre uma interrogação dirigida ao presente. É procurando compreender o presente que nós, europeus, encontramo-nos constrangidos a interrogar o passado. Especifiquei “nós, europeus” porque me parece que, admitindo-se que a palavra Europa tenha um sentido – o que não é seguro –, este, como hoje é evidente, não pode ser nem político, nem religioso e muito menos econômico; no entanto, talvez, consista nisto: que o homem europeu, de modo diverso dos asiáticos ou dos americanos, para os quais a história ou o passado têm um significado completamente diferente, pode ter acesso à sua verdade apenas por meio de um confronto com o próprio passado, somente acertando as contas com a própria história. Por isso, creio que a crise que a Europa está atravessando é, antes de mais nada – como deveria ser evidente no desmantelamento das instituições universitárias e na museificação crescente da cultura –, não um problema econômico, mas uma crise da relação com o passado.
Vocês sabem que hoje se fala muito de crise, de economia, e penso que quem quer que tenha um pouco de inteligência terá compreendido que essas palavras não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem para impor e obter restrições e sacrifícios que, de outro modo e com razão, as pessoas não gostariam de fazer; ou, ainda, crise, no fundo, hoje é uma palavra de ordem que significa apenas “obedeça!”, uma palavra vazia de sentido. E, portanto, se há uma crise, se uma crise tem sentido, é justo a crise da relação com o passado. Uma vez que, obviamente, o único lugar em que o passado pode viver é o presente. E se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, as universidades e os museus tornam-se lugares problemáticos. Se a arte se tornou para nós hoje uma figura, ou, talvez, a figura eminente desse passado, então a pergunta que é preciso ser colocada é: “Qual é o lugar da arte no presente?”. São essas as considerações que procurarei fazer.
A expressão Arqueologia da obra de arte, que gostaria que tivesse sido o título da conferência, pressupõe que a relação com a obra de arte tenha se tornado hoje problemática. E se, como estou convencido – como dizia Wittgenstein –, os problemas filosóficos devem ser colocados como perguntas sobre o significado das palavras, o verdadeiro problema filosófico é: “O que significa essa palavra?”. Ora, isso quer dizer que hoje a expressão obra de arte tornou-se opaca ou mesmo ininteligível. A sua obscuridade não diz respeito apenas ao termo arte, que dois séculos de reflexão estética tornaram problemático, mas também, e acima de tudo, ao termo obra. Até mesmo de um ponto de vista gramatical a expressão obra de arte, que usamos com tanta desenvoltura, não é nada fácil de entender. De fato, não está claro se, por exemplo, trata-se de um genitivo subjetivo, isto é, se a obra é feita da arte, pertence à arte, ou de um genitivo objetivo no qual o importante é a obra e não a arte. Em outra palavras, se o elemento decisivo é a obra, a arte ou a não bem definida mistura das duas. Além disso, vocês sabem que hoje a obra parece atravessar uma crise decisiva que a fez desaparecer do âmbito da produção artística, na qual a performance e a atividade criativa do artista tendem cada vez mais a tomar o lugar daquilo a que estávamos habituados a chamar obra de arte. Ou seja, se hoje a arte se apresenta como uma atividade sem obra – hoje, como vocês sabem, os artistas contemporâneos são artistas sem obra, que exibem documentos de uma obra ausente –, isso pôde acontecer porque o ser obra da obra de arte permanecia não pensado. Por isso, penso que apenas uma genealogia do conceito de obra – conceito que julgo fundamental, mesmo se não se apresenta assim nos manuais de filosofia – pode tornar compreensível tal processo (que, segundo o notório paradigma psicanalítico do retorno do reprimido – vocês sabem que Freud dizia que há um trauma, em seguida um recalque e, depois desse recalque, o trauma reaparece na forma mitológica como sintoma – creio, faz da obra, hoje, o grande reprimido da arte contemporânea, o reprimido que retorna em formas patológicas). Naturalmente não posso fazer uma genealogia desse conceito mas, no entanto, limitar-me-ei a apresentar-lhes algumas reflexões sobre três momentos que me parecem extremamente significativos. 
Para começar, será preciso que nos desloquemos à Grécia clássica, grosso modo, aos tempos de Aristóteles, isto é, ao século IV a.C. Qual é a situação da obra de arte – de modo geral, das obras e dos artistas – nesse momento? Muito diferente da que estamos habituados. O artista, como qualquer artesão, está classificado entre os teknites, isto é, entre aqueles que, praticando uma técnica, produzem coisas, produzem objetos. No entanto, a sua atividade jamais é tomada como tal, mas é sempre e apenas considerada do ponto de vista da obra produzida. Esse é um fato difícil de ser compreendido por nós – p.ex., temos muitos testemunhos de contratos de trabalho de artesãos e artistas: o trabalho e o tempo empregado jamais são levados em consideração; trata-se apenas de fornecer a dita obra. Por isso, os historiadores modernos com frequência repetem que em grego falta o conceito de trabalho. Com efeito, um conceito de trabalho e de atividade artística como o nosso não aparece em absoluto. Creio, entretanto, que se deveria dizer que não é que aos gregos falte completamente o conceito, mas que eles não distinguem o trabalho, a atividade produtiva, da obra. Aos seus olhos, a atividade produtiva está por inteiro na obra e não no artista que a produziu. Há uma passagem de Aristóteles em que isso é expresso claramente (é uma passagem da Metafísica dedicada aos seus dois conceitos tão importantes: potência e ato, dynamis energeia). O termo energeia é apenas um termo criado por Aristóteles (e também os filósofos, como os poetas, precisam inventar palavras; ou melhor, creio que se deveria dizer que a terminologia é o momento poético do pensamento). Como Platão inventa a palavra ideia, Aristóteles inventa essa palavra, energeia, que simplesmente provém de ergon, que significa obra, e, portanto, significa o ser em obra, ser em ato, operação, o ser em obra de algo. E é curioso que para sublinhar a posição entre potência e ato, Aristóteles se sirva exatamente de um exemplo retirado de uma atividade definida como artística. Ele diz que Hermes encontra-se em potência na madeira ainda não esculpida e, ao contrário, em energeia, em obra, na estátua esculpida. A obra de arte pertence de modo constitutivo à esfera do ser em obra, da energeia. E aqui, leio rapidamente com vocês a passagem. Aristóteles escreve que o fim é sempre a obra (o ergon), e que a obra é sempre energeia, é sempre ser em obra, operação. “De fato, o termo energeiaescreve Aristóteles, “deriva de ergon (de obra) e tende, por isso, à completude – a um estado em que atinge a própria completude. Há casos em que o fim último se exaure no uso. Por exemplo, na vista, quando usamos os olhos, tudo se exaure na visão; não há produção de qualquer outra coisa. Há ainda outros casos, por exemplo, a arte de construir, na qual além da operação do construir produz-se também outra coisa: a casa. Nesses casos, o ato de construir reside na coisa construída. Ela vem a ser e está junto da casa. Em todos os casos em que é produzido algo além do uso, a energeia, o ser em obra, está na coisa feita. Como o ato de construir está na casa construída, assim também o ato de tecer está no tecido. Quando, ao contrário, não surge uma obra externa, além do uso, então a energeia, o ser em obra, estará nos próprios sujeitos. Como, por exemplo, a visão naquele que vê e a cognição naquele que conhece.”
Paremos por um momento nessa passagem extraordinária que, creio, mostra o quanto a concepção grega de uma obra de arte é diferente da nossa. Está claro que os gregos privilegiam a obra em relação ao artista ou ao artesão. Nas atividades que produzem alguma coisa, a atividade produtiva é verdadeira e própria, diz Aristóteles, não está no artista, mas na obra. A operação de construir uma casa, na casa, a operação de fazer uma estátua, na estátua, e não no artista. Portanto, compreendemos também por que os gregos, em geral, não podiam levar em grande conta o artista ou o artesão. Enquanto a contemplação, o ato do conhecimento, está no contemplador e no cognoscente, o artista, para os gregos, é um ser que tem o seu fim fora de si, na obra. Isto é, ele é um ser constitutivamente incompleto, que jamais possui o seu fim e ao qual falta o seu fim. Por isso, os gregos consideravam o teknites – o artesão e o artista – como um banausos, um termo que significa pessoa vulgar, não exatamente decente. Isso não significa que os gregos não poderiam ver a diferença entre um sapateiro e Fídias, mas, aos seus olhos, eles tinham seu fim fora de si: no sapato e na estátua do Parthenon respectivamente. Em todo caso, a sua energeia não lhes pertencia.
Essas são as atividades que produzem obra. Há outras que são sem obra e que Aristóteles exemplifica, como vimos, na visão e no conhecimento. É evidente que, para um grego, essas são superiores às outras. Mais uma vez: não por que não fossem capazes de apreciar a obra de arte em relação ao conhecimento ou ao pensamento, mas por que nas atividades improdutivas como o pensamento, o sujeito possui perfeitamente o seu fim. A obra, o ergon, é de algum modo um ultraje, que expropria o agente da sua energeia, e não está nele, mas nas obras. Por isso a práxis, a ação, que tem em si mesma o seu fim é para Aristóteles de algum modo superior à poiesis, à atividade produtiva cujo fim está na obraenergeia, a operação perfeita, é sem obra e tem seu lugar no agente.
Parece-me que essa concepção do agir humano contenha em si o germe de um problema, de uma aporia, que diz respeito exatamente ao lugar da atividade humana: em um caso, na poeisis, está na obra e, no outro, no agente. Que se trate de um problema não superável, é provado pelo fato de que, em uma outra passagem de outra obra, Aristóteles se pergunta se existe algo como um ergon, uma obra, próprio do homem. Existe uma obra do homem enquanto tal (assim como existe a obra do sapateiro, que faz o sapato, uma obra do flautista, que toca a flauta, uma obra do carpinteiro, que faz a cama)? Aristóteles crê que também existe uma obra do homem em si, do homem enquanto tal. Logo na sequência, ele deixa a hipótese de que o homem seja um ser sem obra de lado. Eu, da minha parte, acho tal ideia interessantíssima. Ou ainda, diria que o homem é um animal constitutivamente sem obra e que lhe falta, de maneira diversa dos outros animais, uma vocação específica inscrita no seu destino, assinalada pela espécie. O homem é um animal que não tem uma atividade própria. E é, talvez, justo por isso que, diferentemente dos outros animais, pode encontrar a própria verdade em uma atividade como a arte que, como é notório, é privada de uma finalidade (de uma finalidade ao menos definível).
Dizia-lhes que Aristóteles deixa de lado o problema de ser o homem sem obra ou de ter ele uma obra, e responde que a obra do homem existe e é ser uma obra da alma segundo a razão. Mas, se nos perguntarmos, por outro lado: o que é do homem enquanto tal? Existe uma obra do homem enquanto tal? Ou ainda: é o homem um ser condenado à cisão, porque há nele duas obras diversas (uma que lhe compete enquanto homem e outra, mais segura, que lhe compete enquanto sapateiro, flautista, escultor etc.)? Se confrontarmos essa concepção da obra de arte com a nossa, podemos rapidamente dizer que o que nos separa dos gregos é que, num certo ponto – e podemos fazê-lo grosso modo coincidir com a modernidade –, a arte saiu da esfera das atividades que têm a sua energeia fora de si, numa obra, e se deslocou ao âmbito das atividades que, como o conhecimento, têm em si mesmas seu ser em obra. O artista não é mais um banausos, um artesão, constrangido a perseguir a sua completude fora de si na obra mas, como filósofo, como pensador, reivindica o domínio e a titularidade da sua atividade criativa. Mas o que ganhou de um lado, a independência em relação à obra, vem, por assim dizer, pela falta do outro. Se ele possui em si mesmo a sua energeia, e pode assim afirmar a sua superioridade, de certa maneira, sobre a obra, esta torna-se para ele de algum modo acidental. Transforma-se em um resíduo de alguma maneira não necessário à sua atividade criativa. Enquanto na Grécia o artista é uma espécie de resíduo embaraçante, um pressuposto da obra, na modernidade a obra é de algum modo um resíduo embaraçante da atividade criativa e do gênio do artista. É como se o gênio, a atividade criativa, procurasse firmar-se para além daquilo que produz, ou seja, firmasse seu valor além da obra que produz.
A hipótese que gostaria de sugerir é que obra e operação criativa são duas noções complementares que formam com o artista como seu meio o que lhes proponho chamar de máquina artística da modernidade. E jamais é possível separar um desses três elementos. Juntos formam algo como os anéis de Borromeo (três círculos unidos de tal modo que nenhum deles pode ser separado sem que separe também os outros). Obra, artista e operação criativa estão ligados juntos numa espécie de máquina de três faces que hoje, de alguma maneira, gostaria de colocar em dúvida.
Gostaria de fazer um salto de vários séculos e da Grécia deslocar-nos para a Alemanha, ao início dos anos vinte do século XX. Não às desordens e tumultos que, como vocês sabem, naqueles anos marca a vida das grandes cidades alemãs, mas ao silêncio e recolhimento da abadia beneditina de Maria Lach, na Renânia. Ali um obscuro monge chamado Odo Casel publica em 1923, o mesmo ano em que Duchamp termina, ou melhor, abandona em estado de incompletude definitiva o Grande Vidro, um livro denominado A Liturgia como festa mistérica, que se tornaria uma espécie de manifesto daquilo que seria depois chamado de movimento litúrgico. Vocês sabem que os primeiros trinta anos do século XX foram corretamente batizados de A idade dos movimentos. Tanto à direita quanto à esquerda do quadro político, os partidos cedem lugar aos movimentos (vocês sabem que tanto o nazismo quanto o fascismo se definiram antes de mais nada como movimento). Mas também na arte e nas ciências – por exemplo, quando em 1914 Freud procurava um nome para sua criação, não sabia se a chamava escola psicanalítica até que, a um certo ponto, decidiu chamá-la de movimento psicanalítico. Em todo aspecto da cultura os movimentos substituem as escolas e as instituições. É nesse contexto que também na Igreja Católica começa esse grande movimento chamado movimento litúrgico. A aproximação que fiz entre a prática das vanguardas e a liturgia, entre os movimentos da vanguarda e o movimento litúrgico, não é um pretexto. Na base da doutrina desse monge, Casel, está a ideia de que a liturgia, a atividade litúrgica – notem que a palavra pertence originariamente ao vocabulário político; etimologicamente significa obra pública, obra para o povo –, seja de modo essencial um mistério. Mistério, no entanto, não significa um ensinamento escondido, uma doutrina secreta e assim por diante. Na origem, segundo Casel, como nos mistérios de Elêusis que eram celebrados na Grécia, mistério significa uma atividade, uma práxis, uma espécie de ação teatral feita de gestos e palavras que se realizam no tempo e no mundo para a salvação do homem. Segundo Casel, o cristianismo não é uma religião, uma confissão no sentido moderno do termo, isto é, um conjunto de verdades e de dogmas que se trata de reconhecer e professar. Em absoluto não; a religião cristã é um mistério, isto é, uma ação litúrgica, uma performance cujos atores são Cristo e seu corpo místico, ou seja, a Igreja. E tal ação é sim uma práxis especial, mas ao mesmo tempo constitui a atividade humana mais universal e mais verdadeira, na qual em jogo está a salvação dos que a realizam e daqueles que dela participam. Vejam que a liturgia, nessa situação, deixa de ser a celebração de um rito exterior que tem a verdade em outro lugar, num dogma. Ao contrário, segundo Casel, apenas na realização aqui e agora dessa ação absolutamente performática que realiza a cada instante o que significa, o crente pode encontrar a sua verdade e a sua salvação. De acordo com Casel, por exemplo, a missa, a celebração do sacrifício eucarístico, não é uma representação ou uma comemoração do evento salvífico, mas é ela mesma o evento. Não se trata de uma representação [rapresentazione] em sentido mimético, mas de uma reapresentação [ripresentazione], na qual a ação salvífica de Cristo é tornada efetivamente presente por meio dos símbolos e das imagens que a significam. Por isso se diz que a ação litúrgica age ex opere operato, pelo próprio fato de ser realizada, naquele momento e naquele lugar, de modo independente, por exemplo, das qualidades morais do celebrante (vocês sabem que, por exemplo, se um padre é um criminoso e quer batizar uma mulher para abusar dela, o batismo é, entretanto, válido justo por que é independente do ator, age de maneira performática). É a partir dessa concepção mistérica da religião, segundo Casel, que gostaria de lhes propor minha hipótese de que entre a ação sagrada da liturgia e a práxis das vanguardas artísticas da assim chamada arte contemporânea haja algo mais do que uma simples analogia. É fato que uma especial atenção por parte dos artistas já tinha aparecido nos últimos decênios do século XIX, em particular nos movimentos artísticos e literários que se definem absolutamente com termos vagos como simbolismo, estetismo e decadentismo que, como vocês sabem, são parte do caldo cultural do qual nascerão as vanguardas. Pari passu ao processo que com a primeira aparição da indústria cultural seguidora de uma arte pura em direção às margens das produções sociais, artistas e poetas – basta tocar no nome de Mallarmé – começam a observar a sua prática como a celebração de uma liturgia. Liturgia no sentido próprio do termo, enquanto comporta tanto uma dimensão soteriológica de salvação, na qual parecerá estar em questão exatamente a salvação espiritual do artista, quanto uma dimensão performática, na qual a atividade criativa assume a forma de um verdadeiro ritual, desvinculado de todo significado social e eficaz pelo simples fato de ser celebrado. Em todo caso, é justo esse segundo aspecto que foi assumido de modo decidido pelas vanguardas do século XX, que constituem a extremização daqueles movimentos – e, algumas vezes, são também uma paródia dos movimentos. Creio não anunciar nada de extravagante sugerindo a hipótese de que a vanguarda e os seus modelos contemporâneos devem ser lidos como a lúcida e com frequência consciente retomada de um paradigma essencialmente litúrgico. Como, segundo Casel, a celebração litúrgica não é uma imitação ou uma representação do evento salvífico mas é ela mesma o evento, do mesmo modo, o que define a práxis da vanguarda do século XX e de seus modelos contemporâneos é o decidido abandono do paradigma mimético representativo em nome de uma pretensão genuinamente pragmática. Trata-se de uma performance, de uma ação. A ação de um artista se emancipa do seu tradicional fim produtivo, ou reprodutivo, e torna-se uma performance absoluta – uma pura liturgia que coincide com a própria celebração e é eficaz ex opere operato e não pelas qualidades do artista.
Numa célebre passagem da Ética, Aristóteles tinha distinguido o fazer, poiesis, que objetiva um fim externo, uma obra, da práxis, que tem em si mesma o seu fim. Entre esses dois núcleos, liturgia e performance artística, insere-se uma forma de híbrido, de terceiro, no qual a própria ação quer representar-se como obra.
Neste ponto, para o terceiro e último momento desta minha sumária arqueologia, gostaria de convidá-los a ir a Nova Iorque, por volta de 1916. Aí há um senhor, que não saberia como definir – talvez um monge, como Casel –, de nome Marcel Duchamp que com uma escolha – por certo, nesse ato não um artista – inventa o ready-made. Vocês sabem que Duchamp, propondo aqueles atos existenciais e não obras de arte, que são os ready-made, sabia perfeitamente que não operava como um artista. Sabia também que a estrada da arte tinha sido bloqueada por um obstáculo intransponível que era a própria arte, então constituída pela estética como uma realidade autônoma. Nos termos desta minha arqueologia, diria que Duchamp tinha compreendido que o que bloqueava a arte era exatamente o que defini como máquina artística, que havia atingido, a partir da liturgia da vanguarda, a sua massa crítica. O que faz Duchamp para explodir ou ao menos desativar a máquina obra-artista-operação criativa? Ele toma um objeto qualquer de uso, ou mesmo um mictório, e, introduzindo-o num museu força-o a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente, exceto pelo breve instante que dura no efeito de estranhamento e da surpresa, na realidade, nada surge aqui à presença. Não a obra, pois se trata de um objeto de uso comum produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de modo algum poiesis, produção, e nem mesmo o artista, pois aquele que assina com um irônico nome falso o mictório não age como artista, mas como filósofo, como crítico ou, como Duchamp amava dizer, como alguém que respira, um simples vivente. Como vocês sabem, o que ao contrário depois surgiu é uma associação, infelizmente até agora ativa, de hábeis especuladores e espertalhões que transformaram o ready-made em uma obra de arte. Não que eles tenham conseguido recolocar verdadeiramente em movimento a máquina artística – e esta, diria, gira hoje no vazio –, mas a aparência de movimento consegue movimentar, espero que ainda não por muito tempo, os templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea.
Gostaria agora de concluir esta minha brevíssima arqueologia sugerindo-lhes, de algum modo, abandonar um pouco a máquina artística ao seu destino. E, com isso, abandonar também a ideia de que haja alguma coisa como uma suprema atividade artística do homem que, por meio de um sujeito, realiza-se numa obra ou numa energeia e que extraia destas o seu incomparável valor. Diria que é preciso redesenhar desde o início o mapa do espaço em que a modernidade situou o sujeito e as suas faculdades. Artista ou poeta não é quem tem a potência ou a faculdade de criar, que um belo dia, por meio de um ato de vontade ou obedecendo uma injunção divina, decide, como o deus dos teólogos, não se sabe como e por quê, executar algo. Assim como o poeta e o pintor, também o carpinteiro, o sapateiro, o flautista, enfim, todo homem, não são o titular transcendente de uma capacidade de agir ou de produzir obras. Ao contrário, são viventes que no uso, e apenas no uso de seus membros – como do mundo que os circunda – fazem experiência de si e constituem-se como formas-de-vida. A arte é apenas o modo no qual o anônimo que chamamos artista, mantendo-se em constante em relação com uma prática, procura constituir a sua vida como uma forma-de-vida. A vida do pintor, do músico, do carpinteiro, nas quais, como em toda forma-de-vida, está em questão nada menos do que a sua felicidade. Gostaria de concluir com as palavras de um grande pintor de Scicli, que à pergunta “para o senhor, Piero Guccione, pintar é mais que viver?”, apenas respondeu: “Pintar é certamente para mim a única forma de vida, a única forma que tenho para defender-me da vida.”      
     

Conferência de Giorgio Agamben em Scicli, Sicília, em 06 de agosto de 2012. Transliteração e tradução ao português: Vinícius Nicastro Honesko. 

O vídeo da conferência está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=A7NrMgIoEfg

Imagem: Piero Guccione. Interno, esterno, 1962.                      

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Da Crítica da Razão Cínica


Desde que a sociedade burguesa começou a estabelecer a ponte entre o saber de cima e o aqui debaixo, e anunciou a ambição de erigir a sua imagem de mundo totalmente com base no realismo, os extremos fundiram-se um no outro. Hoje, o cínico apresenta-se como um tipo das massas: um caráter social medíocre na superestrutura elevada. Ele é o tipo vulgar - não só porque a civilização industrial avançada produz o solitário amargurado como fenômeno de massa. Pelo contrário, as próprias cidades grandes tornaram-se borras difusas, cuja força para criar figuras públicas universalmente aceitas se perdeu. A pressão por individualização diminuiu na atmosfera da cidade grande e na mídia. Assim, o cínico moderno - como há na Alemanha em grande quantidade, principalmente desde a Primeira Guerra Mundial - não fica mais à margem. Ele definitivamente não entra em cena como um tipo plasticamente evoluído. O cínico de massa moderno perde o ímpeto individual e poupa-se do risco de evidenciar-se. Há muito renunciou a expor-se à atenção e ao escárnio alheio para provar sua originalidade. O homem com o "olhar mau" e claro desaparece na multidão; apenas o anonimato torna-se o grande espaço do descaminho cínico. O cínico moderno é um associal integrado, páreo para qualquer hippie na falta de ilusões subconscientes. A ele próprio, seu olhar mau e claro não surge como defeito pessoal ou como mania amoral a ser justificada por ele mesmo. Instintivamente, ele compreende seu modo de existir não mais como algo que tem a ver com ser-mau, mas enquanto partícipe de uma maneira de ver, coletiva e realisticamente conformada. Essa é a forma corrente por meio da qual as pessoas esclarecidas não se veem como aquelas que continuam sendo tolas. Parece mesmo haver algo de saudável nisso - exatamente em favor disso fala a vontade de autoconservação. Trata-se da postura daqueles que se conscientizaram que os tempos da vaidade se foram.
Psicologicamente, o cínico do presente deixa-se compreender como um caso limite de melancolia, que mantém seus sintomas depressivos sob controle e, em certa medida, pode permanecer apto para o trabalho. Sim, é isso que importa ao cinismo moderno: a capacidade de trabalho de seus representantes - apesar de tudo, e mesmo depois de tudo. Há muito os postos-chave da sociedade pertencem ao cinismo difuso, em diretorias, parlamentos, conselhos, gerências, leitorados, consultórios, faculdades, chancelarias e redações. Certa amargura refinada acompanha seu agir. Pois cínicos não são bobos, e olham simplesmente para o nada e novamente para o nada a que tudo conduz. Entretanto, seu aparato psíquico é suficientemente elástico para integrar em si, como fator de sobrevivência, a dúvida perene acerca da própria atividade. Sabem o que fazem, mas o fazem porque as ramificações objetivas e os impulsos de autoconservação a curto prazo falam a mesma língua e lhes dizem que, se assim é, assim deveria ser. Dizem-lhes também que, de qualquer maneira, ainda que eles não o fizessem, outros o fariam, talvez pior. Desse modo, o novo cinismo integrado tem frequentemente o sentimento compreensível de ser vítima e fazer sacrifícios. Sob a fachada dura desse jogo árduo, ele facilmente leva muitos a infortúnios nocivos e às lágrimas. Nisso há algo de tristeza acerca de uma "inocência perdida" - a tristeza de um saber melhor, contra o qual todo agir e todo trabalho estão direcionados. 
Isso resulta em nossa primeira definição: cinismo é a falsa consciência esclarecida. Ele é a consciência infeliz modernizada, da qual o Esclarecimento se ocupa ao mesmo tempo com êxito e em vão. Ele aprendeu sua lição sobre o Esclarecimento, mas não a consumou, nem a pôde consumar. Ao mesmo tempo bem instituída e miserável, essa consciência não se sente mais aturdida por nenhuma crítica ideológica; sua falsidade já está reflexivamente conformada.
"Falsa consciência esclarecida": escolher tal formulação significa aparentemente desferir um golpe contra a tradição do Esclarecimento. A frase mesma é um cinismo em estado cristalino. Contudo, ela manifesta uma pretenção objetiva de validação; o ensaio em questão desenvolve o teor dessa pretensão e sua necessidade. É lógico que se trata de um paradoxo, pois como é que uma consciência esclarecida poderia ser ao mesmo tempo falsa? É disso que se trata aqui.
Agir contra o "saber melhor" é hoje a relação superestrutural em nível global; tal agir sabe-se sem ilusões e, apesar disso, depreciado pelo "poder das coisas". Assim, o que na lógica é tomado como paradoxo e na literatura como chiste surge, na realidade, como um estado de coisas. Isso constitui um novo posicionamento da consciência diante da "objetividade".
"Falsa consciência esclarecida": essa fórmula não se quer episódica, mas um ponto de partida sistemático, como modelo diagnóstico. Assim, ela se obriga a revisar o Esclarecimento; deve demonstrar claramente sua relação com o que a tradição chama de "falsa consciência"; mais ainda, deve reconsiderar a trajetória do Esclarecimento e o trabalho da crítica ideológica em cujo decurso foi possível que a "falsa consciência" absorvesse o Esclarecimento. Tivesse o ensaio um propósito histórico, este seria o de descrever a modernização da falsa consciência. Mas o propósito da apresentação como um todo não é histórico, mas fisionômico: trata-se da estrutura de uma falsa consciência reflexivamente suprimida. Entretanto, gostaria de salientar que a estrutura não é assimilável sem situá-la em uma história política de reflexões contenciosas. 
Sem sarcasmo, nos dias de hoje não pode haver relação saudável entre o Esclarecimento e sua própria história. Só temos a escolha entre um pessimismo "lealmente" vinculado às origens, que lembra a decadência, e uma falta de respeito serena na continuação das tarefas primordiais. Diante disso, só na infidelidade resta fidelidade ao Esclarecimento. Em parte, isso se explica pela postura dos herdeiros que se voltam aos tempos "heroicos" e mantêm-se necessariamente mais céticos diante dos resultados. No ser-herdeiro há sempre certo "cinismo postural" - típico das histórias de herança dos capitais de família. Claro que essa postura retrospectiva não esclarece por si só o tom singular do cinismo moderno. No Esclarecimento, a decepção não é de forma alguma apenas um sinal de que os epígonos podem, e devem, ser mais críticos que os fundadores. O ranço característico do cinismo moderno é de natureza essencial - uma disposição da consciência que padece de esclarecimento e que, instruída pela experiência histórica, não admite otimismos baratos. Novos valores? Não, obrigado. Após as esperanças obstinadas, propala-se a monotonia dos egoísmos. No cinismo novo coopera uma negatividade aclarada que quase não nutre esperanças por si mesma, quando muito um pouco de ironia e compaixão.
Em última instância, trata-se dos limites sociais e existenciais do Esclarecimento. Imposições da sobrevivência e desejos de autoafirmação humilharam a consciência esclarecida. Ela padece da imposição de aceitar relações previamente dadas, das quais desconfia, de ter que se adaptar a elas e, por fim, até mesmo resolver seus negócios. 
Para sobreviver, deve-se ir para a escola da realidade. Por certo. A linguagem dos que têm as melhores intenções chama isso de tornar-se adulto. E há nisso algo de verdadeiro. Mas não é tudo. Sempre um tanto inquieta e irascível, a consciência partícipe olha ao redor à procura de ingenuidades perdidas, para as quais não há mais retorno, porque conscientizações são irreversíveis. 
Foi certamente Gottfried Benn, ele mesmo um dos mais proeminentes porta-vozes da estrutura moderna do cinismo, que forneceu a esse mesmo cinismo a formulação do século, inequívoca e desavergonhada: "Ser tolo e ter trabalho: isso é a felicidade." A inversão do sentido da frase apenas demonstra seu conteúdo pleno: ser inteligente e, todavia, realizar seu trabalho - eis aí a consciência infeliz em sua forma modernizada, acometida de esclarecimento. A consciência não pode tornar a ser "tola" e ingênua - inocência não se restabelece. A consciência apega-se à fé na força de coesão entre as relações às quais se vê atrelada por seu instinto de autoconservação. Se assim for, que seja. Com um salário líquido de dois mil marcos por mês, começa silencioso o Contra-Esclarecimento; ele aposta que cada um que tenha algo a perder arranje-se por conta própria com sua consciência infeliz ou a encubra com "atividades engajadas".

Peter Sloterdijk. Crítica da Razão Cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendonça Cardozo, Ricardo Hiendlmayer. pp. 32-36.

Imagem: Heinrich Hoerle. As máscaras. 1929. 

domingo, 18 de novembro de 2012

O retrato dos Arnolfini


Que ninguém ouse duvidar da verdade deste ícone: "Johannes de Eyck fuit hic 1434", o maior pintor de Flandres dele é testemunha. A extraordinária potência da sua téchne, que soava prodigiosa tanto aos cavalheiros do outono medieval da corte de Borgonha quanto aos doutos humanistas e aos banqueiros e mercadores da Toscana, não apenas "faz", mas desvela, manifesta o real, abre as cortinas que o escondia. Ao seu olhar nada resiste, nenhum ente é suficientemente distante, nada suficientemente infinitesimal para não poder ser trazido à luz. Vibrações imperceptíveis do seu pincel e dos seus pigmentos descobrem qualquer detalhe e tudo colocam sub specie aeternitatis. A "miséria" do nosso olho é como que abolida: próximo e distante, luz e sombra, o brilho de uma pérola assim como as amplas superfície de um manto se correspondem e ressoam ao mesmo tempo. Basta a pupila do decrépito cônego Georgius de Pala refletir a Virgem no trono, speciosior sole, candidez da Luz eterna na grande mesa de Bruges. Todo átomo de matéria pode ser "bom" para ser como espelho de um mundo. Todo ente chega à potência de speculum sine macula. Tudo fulgura a partir do esplendor da pedra preciosa quando ela é perfeitamente cortada.
E assim, como partícipe de pleno direito da luz de um tal mundo, quis ser retratado o mercador de Lucca Giovanni Arnolfini junto à esposa Giovanna Cenami. O mercador tinha sido capaz de muito navegar, antevendo as coisas futuras e prestando atenção nas visões (para exprimir-se com as palavras da famosa epístola de Marsilio Ficino a Giovanni Rucellai), e então, por fim, da sua prudência, paciência, magnitude, da sua virtus, da sua merecida paz, chamava a dar testemunho eterno o maior dos pintores. O mercador pedia verdadeiramente o próprio ícone, a imagem do próprio rosto verdadeiro, além das máscaras da vida aparente e da fadiga que custa para adaptar-se aos seus casos. Sabe bem o mercador - mas então é o fundamento da própria existência que quer que se exprima, aquela razão de ser que a torna exemplar e como que intransponível.
Sub metaphoris corporalium o pintor devia revelar a força do espírito que tinha sido capaz de atingir o equilíbrio, construir a permanência, medir com todo cuidado o espaço, merecer a boa fortuna. E como os santos nos "velhos" ícones estão em Nenhum-lugar, envoltos pela luz escatológica, essa nova figura de uma nova santidade devia aparecer no mais sagrado dos lugares, no seu próprio templo, na casa, ou melhor, no quarto [na estância] onde ele, sozinho com sua mulher, celebra os ritos mais secretos e necessários. É ali que ele convidou o pintor junto de uma outra testemunha, cuja figura se entrevê no espelho convexo pendurado na parede.
E eis o evento: um solene gesto de confirmação, um juramento sagrado e inviolável. Giovanni levanta a mão direita (fides levata) e com a outra apoia e mostra a mão da mulher que a ele se entrega. Nela vemos a palma da mão puríssima, que nada esconde, que nada possui. Com a outra mão, Giovanna "protege" o próprio ventre, promessa de vida. O ritmo que essas mãos desenham entrelaça toda a obra: daquela levantada, no alto, ao lado do perfil do homem, até o aéreo encontro das duas palmas, "sobe-se" mais uma vez ao dorso fusiforme da mão esquerda de Giovanna; eis a "progressão": pronúncia da promessa - benção - sua escuta - e, por fim, o seu custodiar-se no ventre da mulher.
Giovanni jura a própria fidelidade e a mulher, anima nuda, crê perfeitamente nele. Giovanni não tem coração dividido, não é homem de duas cabeças. Tem fé, é fiel, e, por isso, será estável (Is, 7,9). Erigido sobre o fundamentum inconcussum da própria fé, dá certeza e fé. A mulher a ele se fia já que ele está, ontologicamente, parado sobre a própria fé. Como poderia ela crer em quem fosse inquieto no seu coração? Como crer em quem poderia sempre cair nos pecados do desespero e da acedia? Giovanni é imagem da fé; isso é o "espiritual" que a sua aparência significa. E fé é fundamento da esperança. A mulher é aquela que espera porque se baseia sobre a fé em quem é perfeitamente fiel. A relação entre as duas figuras exprime, portanto, sub metaphoris corporalium, as núpcias entre Fé e Esperança.
Que se trate dessas núpcias diz todo verbum dessa obra. Uma única vela acesa: o lumen do Filho que o candelabrum da Virgem segura ("ipsa enim est candelabrum et ipsa est lucerna, Christus, Mariae filius, est candela accensa"). Como a luz do dia que entra pela janela ilumina a aparência do evento, assim aquela vela, que sempre arde e tudo vê, manifesta-lhe o sentido interior: esse homem é autêntica certeza de fé e a mulher é verdadeira esperança. Por isso suas figuras podem ser colhidas no speculum sine macula colocado sobre a parede às suas costas, speculum humanae salvationis, ao redor do qual giram as imagens dos momentos da Paixão. Espelho que não mente, espelho de vidro puro, transparentíssimo, do qual são feitos vasos e as jarras que de modo tão frequente acompanham os ícones de Maria: como a luz atravessa o vidro sem quebrá-lo, assim Maria deu a luz ao mundo.
Nenhum signo está "só". Nenhum "joga" por si. Já que jamais quem tem fé está só, e isso que toca ou diz respeito a todo ente, assume valor do símbolo. Aqueles frutos inteiros, maduros sobre o peitoril, são gaudia paradisii, antes da mordida fatal. Os calçados deixados de lado lembram que esse lugar é terra santa (Ex, 3,5). Nada que seja profano, ou melhor, nada de profano que não se transfigure no "colar" de contas e na luz que a revela. O retrato do mercador toscano, que a devotio moderna "converteu", eleva-se à simbólica dignidade e, a cada instante, o símbolo se encarna. Todo ente é "salvo"- e, por isso, "belo", no sentido etimológico do kalón grego. O meu mundo, este mundo - diz o mercador e testemunha o Mestre - não está condenado a morrer. É meditatio vitae.
Mas é próprio das obras extremas, como esta, constranger a uma interrogação que as ultrapassa. Uma vez que, quando uma obra "cumpre" um mundo, é necessário mostrar também seu limite. Realmente, a fé do homem consiste unicamente no Amém que a sua mão levantada pronuncia e a aliança com a mulher, que aqui é celebrada, por certo resolveu em si a inquietude dos anos do êxodo? Suspendamos por um instante a busca dos "significados" da obra e "lembremos" a primeira e claríssima nítida impressão que dela tínhamos recebido: uma infinita distância se concentra, aqui, no sagrado recinto do quarto nupcial. O que sabe o olhar do homem a respeito da presença da mulher? Só de maneira imperceptível sua cabeça "dobra-se" para o lado de Giovanna. E Giovanna, por sua vez, toca apenas com seu olhar a figura do homem, mas parece também, a cada vez, retrair-se, como a Virgem de tantas Anunciações diante ao Anjo. Uma distância que não é colmatada une essas figuras. Modéstia de ambas? Querem ambas obedecer apenas à própria forma, a sua medida e aos seus limites? Modéstia apenas? É realmente tão estranha à cena toda dissonância? Decerto, a mais perfeita solius mentis inspectio pode ter imaginado a forma da cabeça de Giovanni (como será para os rostos e chapéus de Piero), mas se observarmos separadamente a parte superior e a inferior do rosto uma potente dúvida nos surge: duro, impenetrável, apathés aparenta seu olhar, enquanto um levíssimo sorriso parece animar os lábios joviais. No olhar ele já tudo consumou, tudo pode observar com distanciamento e desencanto: éthos da renúncia, melancolia viril. Sobre os lábios uma sombra de sorriso move, ao contrário, lentamente para a esperança da mulher. Também os Anjos da Anunciação às vezes mostram essa facies. 
E poderá, então, Giovanna confiar-se de modo sereno a um tal Anjo? Ela não é dupla no rosto: o mesmo sorriso dos lábios revive a modéstia do olhar. Gostaria de pedir, talvez - mas a mão que jura do homem é a mesma que lhe impõe silêncio. Equidistante do centro do espelho, que reflete e em si concentra a cena, estão a mão levantada de Arnolfini e a boca da sua esposa. A sua conversa está custodiada no mais fechado silêncio, a sua relação na mais firme distância. Que as bocas permaneçam seladas - tal é o sigilo autêntico das núpcias. A boca fechada, o olhar que não se encontra, os olhos voltados a um invisível Não-onde (e como poderia ser diferente, já que é do Invisível que a fé argumenta?): a tudo isso deve confiar-se a Esperança - quia mitis est. Humilde, deverá obedecer ao jugo dessa severa e dura certeza de fé, entrelaçada entre renúncia e silêncio. Será leve o seu jugo?
Falta uma palavra para que nisso se possa crer. Falta a Palavra. Fé e Esperança aqui aparecem sozinhas. E, por isso, distantes, inexoravelmente distantes, ainda que na ordem comum do seu lugar. Onde se manifesta e como se exprime o que é mais do que tais palavras e sem a qual elas são apenas nada? Onde lampeja, no recinto sagrado do mercador, Agape e Caritas? É essa a sua "estância" ou não se mede aqui toda a sua di-stância? Talvez apenas sobre a palma da mão vazia da mulher; talvez apenas por meio das imperceptíveis dissonâncias que a "grande forma" dessa obra esconde re-velando intuamos os seus traços.
Ou talvez devemos dizer: justo aqui, onde o símbolo quer perfeitamente se encarnar, onde significado e aparência querem vir às "justas núpcias", justo aqui Agape deve transformar-se em inapreensível ideia. Spiritualia sub metaphoris corporalium, dissemos - mas qual pode ser a metáfora de Agape? Como "fechar" Agape em uma imagem? Não se resolve Agape no sopro de luz que tudo anima e que em nenhum ponto verdadeiramente aparece? Podia compreendê-lo o mercador Arnolfini? Podia ou poderá jamais compreendê-lo qualquer téchne - mesmo a dos antigos Mestres? Eles não têm pares no representar, manifestar, produzir. Nisso consiste a sua arte. E o mercador Giovanni Arnolini queria "imitá-la". De tudo pode ser desvelamento, tudo pode aletheúein a téchne de Johannes de Eyck, toda coisa poderá trazer à luz. Mas não Agape. Esperança e Fé são representáveis. Mas da suas núpcias Agape participa na forma da ausência. 
A medida de uma fria paixão domina a cena. Daí pode ter início apenas um amor intellectualis, uma caritas more geometrico demonstrata, em suma, uma Ethica. Assim edifica no coração e na mente dos mercadores da Toscana a devotio moderna dos flamengos. E todo "ardor seráfico" se retira - in interiore mulieris, talvez, na ou-topía do sorriso de Giovanna, no vazio da palma de sua mão.

Massimo Cacciari. Il Ritratto degli Arnolfini. In.: Tre Icone. Milano: Adelphi, 2008. pp. 43-51. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko).

Imagem: Jan van Eyck. O Retrato dos Arnolfini. 1434. National Gallery, London.
            

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O segredo mais bem escondido do caso Tarnac




Por Giorgio Agamben e Yldune Lévy
Foi em fevereiro de 2011 que apareceu a primeira notícia sobre o assunto: “Por muito tempo foi o segredo mais bem escondido do “caso de Tarnac”: um agente britânico, infiltrado no seio dos movimentos alter-globalizadores e ambientalistas europeus, exerceu um papel importante nessa investigação” (L’Express). A novidade permaneceu por muito tempo sem sequência, órfã. Os escândalos não importam, como qualquer outra mercadoria.
Seu nascimento deve muito à conformação moral do país em que eclodem. “O caso Mark Kennedy”, na Inglaterra, nutriu os tabloides e os programas sensacionalistas durante meses. O escândalo conduziu à dissolução da unidade “de elite” dos serviços secretos para os quais Mark Kennedy trabalhava, ao desencadeamento de uma série de investigações sobre os métodos de infiltração da polícia inglesa, à demissão de um diretor, ao não-lugar de todos os procedimentos que implicavam direta ou indiretamente Mark Kennedy e até mesmo à anulação de julgamentos já ocorridos.
Mas o fundo do escândalo era ético: dizia respeito à incompatibilidade do deboche e do lucro com o ethos puritano inglês. É possível que alguém, exercendo seu trabalho de oficial de informações, transe com dezenas de charmosas jovens anarquistas? É permitido gastar mais de dois milhões de euros, durante sete anos, para financiar noitadas em festas eletrônicas, bebedeiras, férias, relógios de espião de sete mil euros de um James Bond com piercings e tatuagens da anarquia, e tudo isso por um pouco de informação sobre as atividades de ecologistas radicais, de antifascistas, de militantes antiglobalização? A sensibilidade nacional respondia sem hesitação “não” para essas questões supérfluas. Daí a amplitude e a duração do escândalo. Onde estamos, na Alemanha, por conta de uma primeira preocupação com procedimentos e com o solo nacional, parece que o caso Mark Kennedy trouxe mais a questão sobre a legalidade ou não do uso de um agente estrangeiro no território alemão.
A partir do caso de Tarnac é possível extrair diversas genealogias igualmente escandalosas, e quase igualmente secretas, mas a mais significativa politicamente é aquela que parte de Mark Kennedy: pois é ela que mais fala sobre os arcanos do nosso tempo. Mark Kennedy trabalhava oficialmente para a National Public Order Intelligence Unit, um serviço de informações britânico criado em 1999 com o intuito de combater o retorno da contestação ecologista e antiglobalização no Reino-Unido.
A implantação massiva de agentes infiltrados nesses movimentos reflete o lançamento de uma nova doutrina policial que em inglês é chamada “intelligence-led policing” e em francês, com a licença do uso apresentado por Alain Bauer e Xavier Raufer, o “décèlement précoce” [em português, algo como “policiamento por inteligência”]. É nos anos 2000 que o Reino Unido se empenha, por meio de sua presidência da União europeia, em difundi-la e em fazer com que seus parceiros europeus a adotem – e as autoridades britânicas assim conseguiram, como elas se gabam publicamente: pois, com a doutrina, é um conjunto de serviços, de técnicas e de informações que poderão ser trocadas e vendidas aos parceiros em questão.
“Informações” saídas da imaginação fértil de Mark Kennedy, por exemplo. A nova doutrina diz isto: o engajamento político, uma vez ultrapassando o quadro inofensivo da manifestação ou da interpelação dos “dirigentes”, sai do quadro democrático para entrar no domínio criminal, no “pré-terrorismo”. Aqueles que são suscetíveis de sair desse quadro são reprimidos de antemão. Mais do que esperar que eles cometam um crime, como ocupar uma usina de carvão ou interromper uma conferência europeia ou um G-8, é suficiente prendê-los já no momento em que eles elaboram o projeto, com o risco de suscitarem eles mesmos o projeto.
As técnicas de vigilância humana, como a abundante tecnologia eletrônica, devem ser suficientemente compreendidas, sofisticadas e partilhadas. E como essas técnicas “preventivas” não são sequer minimamente compatíveis com a ordem chamada democrática, é preciso que sejam organizadas à margem desta. Aliás, é o que respondeu com toda franqueza o chefe do BKA alemão (equivalente local da Direção Central de Informações Interiores, DCRI [algo similar, no Brasil, seria a ABIN]) quando uma comissão parlamentar de inquérito começa a interrogá-lo sobre o caso Kennedy: “Contra os euro-anarquistas, contra aqueles que se organizam de modo conspirativo e internacional, também nós devemos nos organizar conspirativa e internacionalmente”. “É preciso agir como partisan em todo lugar onde há partisans”, dizia Napoleão numa fórmula que Carl Schmitt adorava citar.
Não há dúvidas de que o começo das dificuldades para as pessoas de Tarnac vem de informações, fabricadas por alguns e voluntariamente aumentadas por outros, emanadas de Mark Kennedy: pois era preciso que ele justificasse seu salário, seus empregadores e seus créditos. Redes secretas franco-britânicas teriam assegurado sua transmissão discreta à DCRI, esta que acabou caindo na armadilha muito mais do que aqueles de Tarnac. Tal é, portanto, a verdadeira significação e o verdadeiro skandalon do caso Tarnac. O que se esconde por trás de um fiasco judiciário francês é a constituição de uma reivindicada conspiração policial mundial, na qual Mark Kennedy, oficialmente ativo em onze países – dos europeus aos Estados Unidos, passando pela Islândia –, hoje é apenas o mais famoso peão.
Como sempre, o discurso policial só contém verdade com a condição de invertê-la termo por termo; quando a polícia diz: “Os euro-anarquistas estão elaborando uma rede pré-terrorista europeia para atacar as instituições”, evidentemente é preciso ler: “Nós, policiais, estamos driblando as instituições por meio de uma vasta organização europeia informal a fim de atacar os movimentos que nos escapam”. O ministro do interior, Manuel Valls, declarou em Roma que, face aos “processos de radicalização em numerosos países”, fazia questão de acentuar a cooperação no seio da Interpol contra as “formas de violência provenientes da ultra-esquerda, de movimentos anarquistas ou autônomos.”
Ora, o que acontece hoje na Europa, na Espanha, em Portugal, na Grécia, na Itália, no Reino Unido, não é o surgimento ex nihilo de grupos radicais que vêm ameaçar a quietude da “população”, mas os próprios povos se radicalizando diante do evidente escândalo que é a ordem presente das coisas. O único erro daqueles que, como as pessoas de Tarnac, ocupam-se do movimento antiglobalização e da luta contra a devastação do mundo é de ter formado um signo anunciador de uma tomada de consciência que já é geral.
É bem possível que, como as coisas estão indo, um dia a recusa da identificação biométrica, tanto nas fronteiras como na vida, torne-se uma prática difundida. O que constitui a mais pesada ameaça para a vida das pessoas não são os quiméricos “grupos terroristas”, mas a organização efetiva da soberania policial em escala global e seus golpes sujos. A História nos lembra que as intrigas da Okhrana, a polícia secreta russa, trouxeram pouca sorte ao regime czarista. “Não há força no mundo que possa deter a força revolucionária quando ela insurge, e todas as polícias do mundo, pouco importando seu maquiavelismo, suas ciências e seus crimes, são quase impotentes”, anotava o escritor Victor Serge. Ele também daria esse conselho em O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão, de 1926: “Se a acusação se baseia sobre uma falsidade, não se indigne com isso: pelo contrário, deixe-a cair na própria armadilha antes de reduzi-la a nada.”   

Artigo publicado no dia 14/11/2012 no jornal Le Monde. Disponível em: http://www.lemonde.fr/idees/article/2012/11/14/le-secret-le-mieux-garde-de-l-affaire-de-tarnac_1790316_3232.html (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko). 

Mais informações sobre o caso de Tarnac:



Mais informações sobre o caso Mark Kennedy:
http://www.guardian.co.uk/environment/mark-kennedy