Entrevista com Marie-José Mondzain
A imagem se tornou, nos últimos
anos, um dos temas teóricos em voga: dela não se fala apenas em termos de
história da arte, mas também em termos sociológicos, de teoria das mídias e de
filosofia política. Em uma das suas entrevistas precedentes, a senhora menciona
que na época em que o tema da imagem não estava tão na moda era preferível
falar de semiologia, do “campo de
especialidade que se desenvolve entre a filosofia e a gestão dos signos sociais”,
e que, durante o reinado da semiologia, a imagem era abordada em termos de
leitura: “lia-se” as imagens. A
senhora poderia indicar por que a semiologia da imagem finalmente perdeu seu
crédito? O que supostamente a substitui, no nível do pensamento contemporâneo
da imagem?
Marie-José Mondzain: O controle industrial e comercial das imagens está
inteiramente centrado na ideia de que é preciso que elas sejam de todo co-extensíveis
ao discurso que as habita – é assim que se vendem ideias, pessoas, coisas. A
quantidade de produções visíveis não tem nada a ver com o excesso de imagem que
designei como seu próprio, como sua propriedade. Minha relação com a semiologia
e a linguística é de curiosidade, de interesse. Mas, ao mesmo tempo, sempre
vejo que esses textos são – com frequência virtuosos do ponto de vista
conceitual e que desenvolvem os instrumentos de uma microcirurgia dos objetos
–, na maior parte dos casos, redigidos
com um espírito de inteligibilidade ou controle que não necessariamente
revelam uma vontade de poder, mas que são, para mim, saberes acadêmicos. A
imagem é tratada como um objeto, um objeto do saber que tem seus experts e é suscetível
de especialidade.
Até um período relativamente recente – dado que a questão da imagem se
tornou cada vez mais preponderante desde o início do século XX –, aqueles que
escreviam sobre as imagens eram tanto os historiadores da arte quanto os
industriais da imagem. Mas percebíamos que a filosofia aí não encontrava seu
regime: deixamos a imagem se desenvolver sem colocar questões. Também estou
muito interessada pelas leituras das imagens feitas por historiadores como
Daniel Arasse ou Georges Didi-Huberman que, de fato, integraram aos seus modos
de análise a dimensão propriamente filosófica. A leitura renovada de Aby
Warburg permitiu uma espécie de oxigenação em relação ao aparato bem equipado
dos semiólogos, dos estruturalistas, dos linguistas, que acabaram por asfixiar
totalmente seu objeto ao reduzi-lo ao estado de coisa. Eu diria que, para
certos analistas da imagem e da sua história, a redescoberta de Aby Warburg ou
o retorno a Walter Benjamin são as aberturas libertadoras em relação à
polissemia da imagem. Por polissemia quero dizer que a imagem é indecidível,
jamais unívoca. Sua equivocidade, sua liberdade, seu excesso, nela se encontram
como uma respiração. Saímos do laboratório instrumentalizado e do senhorio.
Mas por que também não estou na mesma posição que esses pensadores? De
início, porque não sou historiadora da arte e não realizei o mesmo trajeto a
partir da filosofia. Considerando que a imagem havia sido causa de guerras, de
destruições e de crimes, que pessoas são mortas por sua causa e que outras
tomaram o poder com ela, optei por olhar para onde estavam aqueles que as
faziam, aqueles que as queriam, aqueles que as destruíam, aqueles que as
defendiam, e àqueles para quem eram verdadeiramente uma aposta de vida e morte.
Cheguei a um terreno onde estava, de fato, sozinha. Sou parte do que se passa
com a imagem nos monoteísmos. Era preciso, então, traduzir os textos; passei
muito tempo na leitura e tradução desse primeiro material.
É por isso que, para responder a sua questão – é preciso uma nova leitura
da imagem pois a semiologia não vale mais nada? –, não estou nesse regime da questão.
Coloquei a questão na sua genealogia: como a questão da imagem foi posta? Em
que momento a imagem se tornou uma questão que provoca aqui a repulsão, a
delação, a idolatria, a glorificação política, e em outra parte a perversão? Em
que momento essa questão foi atrelada? Passei tempos em lugares um pouco
solitários, uma vez que se tratava do mundo proto-cristão, bizantino,
iconoclasta, e me encontrei na comunidade científica dos filósofos da
antiguidade, para os quais a imagem não era um bom objeto, e dos historiadores
da Idade Média oriental, para quem a imagem era apenas um problema teológico.
Construir um objeto filosófico nessas condições não era simples. Mas penso, em
parte, ter conseguido, isto é, ter convencido de que havia uma construção filosófica
do objeto chamado imagem naquele momento. E é desse momento que é preciso
partir. Eis aí a gênese.
Passemos às questões de conceitos
para mencionar seu percurso teórico e especificar o vocabulário “imagem, ícone,
ídolo”, constitutivo de sua obra. Nos seus livros Image, icône, économie e Le
commerce des regards, a senhora emprega os conceitos “ícone” e “ídolo” para
falar da imagem e de suas raízes religiosas. Ainda que esses dois termos sejam
muito próximos, eles são de significações opostas: a senhora indica que ícone,
imagem da paz, dá sua legitimidade ao ídolo, o qual funciona como um funil do
olhar. Ao mesmo tempo, a senhora afirma que “A imagem é independente do regime da verdade”. A senhora poderia
especificar a distinção que aí faz entre o ícone, o ídolo e a imagem em geral?
Em vez de dizer a imagem em geral, diria que “imagem” é um termo
genérico, designa o gênero cujas espécies seriam o ícone e o ídolo. Mas isso
também não é de todo verdade.
Voltemos, assim, às palavras. Uma vez que estamos conversando em língua
francesa, somos obrigados a passar por tal língua para falar de coisas que
foram pensadas primeiramente em hebraico, em grego e, então, em latim. Esses
termos não se recobrem de todo: a palavra “imagem” não é a tradução do latim “imago”, esta que não é a tradução do
grego “eikon”. Então vamos, aqui
também, tomar as coisas de modo histórico, ir ao terreno histórico onde as
coisas se colocaram e aconteceram, em situação de crise, onde a imagem se
constituiu como questão ao mesmo tempo filosófica e política. É importante
saber que as coisas primeiramente foram ditas em grego. Mesmo que, nas igrejas
ortodoxas, chamemos eikon os objetos
que vemos nas igrejas ortodoxas e que são chamados “ícones”, a palavra eikon, em grego, não é um substantivo.
Quando Platão ou, mais tarde, os padres da Igreja falam de eikon, eles não designam uma coisa. Eles designaram um modo de
aparição no campo do visível, pois o eikon,
em grego, é análogo a uma forma verbal no particípio presente. Quando um
grego quer dizer a coisa, a coisa icônica, ele toma a raiz dessa palavra, eikon, e a coloca no neutro, pois eikon é uma ramificação verbal no
particípio presente ativo e no feminino. Quando ele a coloca no neutro – para
as coisas, em grego, o neutro termina normalmente com “ma” – ela se torna “eikonisma”,
como “apeikasma”, “fantasma”. Tomemos o exemplo do verbo
“fazer” (pratto, prattein): se você
utiliza a palavra “práxis”, é a ação,
é uma palavra no feminino, como “eikon”;
mas a coisa é “pragma”, que deu
pragmático, e práxis deu “prático”. O
grego distingue o estatuto da coisa da ação que a traz à existência: “poiésis” é o gesto de criar, “poiéma” é o poema. Ao contrário, as
palavras no neutro também terminam com “on”
– como “eidolon”, que fez “ídolo” – e
designam, no visível, as operações das coisas, dos objetos, na sua consistência
opaca e presente, no seu efeito de real. Ergon
não é poièsis, nem todo
fabricante é poeta.
Voltemos agora ao eikon, que
foi traduzido por “ícone”. Da minha parte, prefiro traduzir por “semblante”,
pois a tradução literal de eikon é
“semblante”, no particípio presente, é a “coisa aparente”. O segundo sentido da
palavra eikon é “semelhante”: “semblante”, “aparência do outro”, portanto, “semelhante”, “quanto ao
retorno da aparência”. É muito importante compreender que o grego diferencia as operações do
visível das operações do sensível e que, se o platonismo rejeitou as imagens,
em grande parte – salvo em alguns casos, como no Timeu, em que a imagem serve à visão cosmológica do mundo – é
porque a aparência coloca um problema ontológico à filosofia. Pois se uma coisa
que parece não é, ela não tem um estatuto ontológico de verdade. Ela é
inapreensível. Platão não confunde eikon e
eidolon, e coloca o eikon ao lado daquilo que parece. E, de
fato, para ele é ainda ontologicamente insuficiente. É insuficiente porque sobre aquilo que parece não se pode
construir um saber. O que Platão vê aí é de todo justo e eu o defendo: não há
saber sobre a imagem. Para Platão é sua fraqueza, para mim é sua força e seu
destino político. Como analisei em meu livro Le commerce des regards, a filosofia platônica só reconhece
dignidade àquilo que permite construir um saber e uma verdade, associando o ser
das coisas à verdade do discurso sobre tal ser das coisas, o que faz com que,
ontologicamente, a imagem não possa ter seu lugar na dignidade metafísica de
uma verdade sobre o ser. Mas Platão diz, apesar de tudo, que essa aparência não
é não-ser: é uma insuficiência. O fato de que a aparência não seja nem ser nem
não-ser coloca o próprio Platão em dificuldade: ele diz que é verdade que a imagem não é – Ontos mè onta. É ontologicamente que ela
não tem ser. Assim, ela participa, ela é ao mesmo tempo on e mè onta, ela está
entre o ser e o não-ser. O fato de ser “entre” é o modo do eikon: é ser “entre”, entre o ser e o nada, é esse modo de aparição
do mundo que coloca o olhar em crise, que faz com que nós vejamos nos
inquietemos, duvidemos, suspeitemos. Ao mesmo tempo, talvez isso tenha a ver –
pensa Aristóteles, mais do que Platão – com os regimes daquilo que os homens
partilham na cidade, das coisas pouco certas, verossimilhanças, dos regimes
opinativos da palavra, das ignorâncias sobre o amanhã, das contingências, das
fragilidades: partilhamos muito mais fragilidades e dúvidas do que certezas em
uma cidade. Platão gostaria que o rei fosse filósofo e que o matemático fosse
filósofo e, portanto, que o matemático fosse o rei e o filósofo, ou seja, ele
gostaria que tudo isso fabricasse um poder um pouco sólido; enquanto o
interesse do pensamento aristotélico buscava compreender a política como um
regime de fragilidade e de dúvida, de inconstância, de ignorância, pois a vida
política é temporal e, assim, ligada à morte do passado e à ignorância do
futuro, e o presente era feito, trabalhado, por essa desaparição das coisas e
por essa ignorância do que vem. E a imagem esta aí, entre todas essas coisas
que são partilhadas pelos cidadãos. Portanto, o eikon, esse regime de aparência, antes de ter sido um objeto, foi
designado pela língua grega, com desconfiança ou esperança, como um regime
singular da aparência e da verossimilhança, da doxa e do endoxon.
Quanto aos ídolos, sem dúvidas é preciso esperar uma reflexão mais
aprofundada dos Padres da Igreja para lhes dar um estatuto no coração do pensamento
da imagem. O ídolo é um objeto que mediatiza as relações entre os viventes e os
mortos, entre os poderes ocultos e as impotências reais. Ele não é o antônimo
do ícone, antes do debate doutrinal sobre a imagem. Por razões que enunciei em
minhas obras – a saber, que há uma crise do olhar na produção das imagens entre
instâncias do poder –, sou tocada pelo fato de que a imagem, nesse debate, é
denunciada, criticada ou defendida de acordo com a questão: “o eikon e o eidolon são a mesma coisa ou são coisas diferentes?” Os
iconoclastas dizem que todo eikon não
se deixa conhecer como eidolon, portanto,
há idolatria. A resposta dos iconófilos, triunfante – e que penso ser
extremamente interessante –, é que o único meio de salvar o regime da imagem é
dizer que entre eikon e eidolon há incompatibilidade, uma
distinção definitiva; há mesmo uma contradição. Eikon designa uma relação, eidolon
designa um objeto. E, portanto, os iconófilos puderam dizer aos
iconoclastas: vocês é que, ao destruírem os ícones, são idólatras, uma vez que
diante da fragilidade e aparência do ícone vocês veem apenas o objeto. Assim,
vocês têm um olhar idólatra para aquilo que não deveria ser senão um objeto. É
seu olhar que reifica o objeto da fragilidade, da aparência. Fazemos referência
ao dois lados da questão sobre o ídolo. Mas se quisermos verdadeiramente
responder a tais questões – “o que é um olhar que reifica?” e “o que é um olhar
que respeita a fragilidade do ícone?” –, a cada vez, vamos encontrar apenas a
palavra “imagem” por ser lida. Daí a reflexão sobre a “imagem”.
Ora, quando em francês dizemos “imagem”, há um desconforto – que
encontramos também nas línguas anglo-saxônicas, as quais não nos auxiliam muito
–, pois a grande reflexão de fundação é feita em grego e encontrou a sutileza
de um desdobramento plural das palavras em latim. O francês exige muita
explicação aí onde o grego, que a respeito disso também se explicou, encontra
palavras para especificar os regimes: tanto articulados quando incompatíveis
uns com os outros. Se pesquisarmos sobre o latim “imago” teremos mais nuances, sabendo que o interessante do latim imago é que é muito ligado às práticas
funerárias e, portanto, sem dúvida ligado à experiência da morte, do
desaparecimento e do que é retido daqueles que não estão mais aqui. Mas
percebemos que a imago flutuou entre
os latinos, tanto que, no latim medieval, palavras diferentes circularam e se
esforçaram para dar conta da dimensão espiritual da imago. Santo Agostinho e os padres latinos, necessariamente,
precisam se ocupar da imagem por razões teológicas evidentes, uma vez que a
encarnação é uma estrita questão de visibilidade da imagem. Encontraremos
reflexões muito sutis e apaixonantes a respeito de “signum”, de “species”, “figura”, “fictio”, “res picta”, a coisa pintada, “res ficta”, a coisa
imaginada. Entre “imago” e “imagines” acontecerão também idas e
vindas.
Assim, como dar conta dessas vibrações lexicais quando escrevemos em
francês? E quem escreve em francês? Todo esse tempo que passei trabalhando
entre noções gregas que faziam distinções de extrema sutileza, para, em
seguida, falar de imagem a meus contemporâneos, era preciso retrabalhar os
efeitos do próprio vocabulário. A maior parte do tempo fui obrigada a dizer:
chamo “visibilidades” o modo no qual aparecem no campo do visível objetos que
ainda esperam sua qualificação por um olhar. Irei chamar “imagem” o modo de
aparição frágil de uma aparência que se constitui a olhares subjetivos, em uma
subjetivação do olhar. A “imagem” é efetivamente, no meu léxico, o que
constitui o sujeito. O eikon é o modo
de aparição dos signos que permite a estes se constituir para permitir a
partilha do simbólico. O “ídolo” é o modo sob o qual pode totalmente se afundar
e se aniquilar a questão do desejo, quando o desejo de ver dá a si mesmo o
objeto de sua completa satisfação, digamos, de seu gozo. E, assim, quando os
antigos criticam o ídolo, é preciso não se esquecer jamais de que há essa
suspeita, de todo legítima, em relação a objetos que se consomem e que consomem
o sujeito. O ídolo é então aquilo que ameaça a subjetividade, uma vez que essa
relação é de consumo passional, fusional e fantasmática. Nesse sentido, o
desejo de destruição é inseparável do destino dos ídolos. Finalmente, quando
coloco “imagens” no plural, designo o conjunto de produções do visível às quais
ainda não dei qualificação, ainda não sabendo a quais operações do olhar elas
vão dar lugar.
Várias vezes a senhora colocou em
evidência o fato de que a imagem encontra seu lugar entre a visão e a
representação, que ela necessita de uma construção, uma formação prévia do
olhar de um sujeito falante (e que ela é, nesse sentido, inacessível aos
olhares dos outros mamíferos, por exemplo). Trata-se, assim, no caso do olhar
humano, de uma competência cultural. A senhora poderia especificar qual é a
natureza da relação entre o sujeito e a imagem?
Nas nossas sociedades de hoje, encontramo-nos diante da designação
massiva da palavra “imagem” a tudo o que é produzido no visível: fotos, obras
de arte, publicidades, televisão, cinema, documentos. Todos são “imagens”. Sim,
mas em que são eles imagens? Sob qual título? Pelo meu trabalho, gostaria de
dar conta dos regimes de pensamento que foram fundadores em relação à definição
da imagem: fundadores não quanto ao seu estatuto de objeto, mas quanto àquilo a
que ela remete nas operações do olhar a ela dirigido por um sujeito. As coisas
se esclarecem a partir do momento em que classificamos a imagem na relação que
ela tem com o olhar do sujeito, com o cruzamento de olhares e com a troca, a
circulação de signos, distinta do comércio das coisas, daquilo que chamo o
comércio de olhares. É o olhar do sujeito que dá à imagem seu estatuto de “eikon”, de “eidolon”, de “fantasmata”,
de “fantasma”; é a maneira de
construir o olhar que reifica ou não seu objeto. Posso tomar os maiores lugares
do olhar e da aparição frágil da história da arte e deles fazer objetos
idolátricos. E é justo por isso que os artistas surrealistas, em particular, os
dadaístas, lutaram contra a arte burguesa, necessariamente idólatra e que
reifica a arte como mercadoria. Por meio dos objetos de arte, eles jogaram e
atacaram os ídolos da cultura burguesa para mostrar que estes são operações do
olhar que foram lentamente desqualificadas pelo comércio dos objetos. Eis as
coisas que nos concernem de modo vital hoje.
Minha abordagem faz um apelo a cada um de nós, enquanto sujeitos, a nossa
potência subjetiva de qualificação do visível; a neste reconhecer signos em um campo
de signos que circulam; a dizer que o que chamamos de imagem pode ser, ou não,
constituinte ou destituinte dos sujeitos que as olham.
É aí que as coisas se complicam na definição, pois é preciso explicar em
que, antropologicamente, a imagem é constituinte da relação entre os sujeitos,
e do próprio sujeito. A fim de dar conta da abordagem patrística e dos efeitos
bastante modernos que ela poderia ter para nós, e do interesse que por ela
poderíamos ter para nutrir nosso pensamento da imagem, o problema mencionado me
obrigou a me dirigir à antropologia e à psicanálise. Ambas me fizeram ver como,
genealogicamente – do ponto de vista filogenético (a constituição da
humanidade) de um lado, ou ontogenético (a constituição do sujeito humano na
sua individualidade e singularidade) do outro –, a questão da imagem era parte
envolvida na gênese do sujeito. E assim compreendia que um sujeito que era
privado de imagens, que não podia construir uma imagem de si, havia produzido
na nossa sociedade, tão plena de imagens, uma verdadeira patologia da imagem.
Isto é, que havia um sofrimento, uma patologia, um abuso do olhar, que fazia
com que houvesse uma destituição da imagem, um abuso do narcisismo primário:
como nos constituímos a nós mesmos na imagem que temos de si em relação a um
outro sujeito, em relação ao olhar de um outro sujeito? A psicanálise, a
psicopatologia, os textos sobre a psicose, muito me esclareceram sobre o fato
de que a imagem era uma aposta constituinte para os sujeitos na sua relação
matricial, na sua origem. Filogeneticamente, também, percebia que, no fundo, a
própria humanidade assinalava-se como humanidade por inscrição dos signos que,
antes de dar testemunho de uma linguagem ou mesmo de uma escritura, designavam
o modus imaginis, o modo da imagem,
como primeiro gesto de separação. Tornando-se a condição necessária ao acesso
de cada um de nós às operações simbólicas da palavra, a imagem pode ser um
separador, um operador de separação. Um bebê, por exemplo, que não tem nenhum
meio de construir e apreender sua própria imagem – sinestésica e visual ao
mesmo tempo – é uma criança que jamais terá acesso à palavra. E, assim, nos
autismos, nas afasias, nas psicoses infantis, tratamos e retomamos as coisas
pela questão da imagem: fazemos desenhar. Recomeçamos pela construção da
imagem.
Se o sujeito se constrói, então compreendemos que o que os Padres
designavam pela palavra eikon era
algo constituinte das relações entre os sujeitos. Desse modo, o que é
constituinte do político, isto é, do viver juntos, no sentido grego, assim o é
porque é constituinte dos procedimentos, dos protocolos de subjetivação. Não há
sujeito sem imagem. É muito importante. O ídolo torna-se, no seu processo de
reificação, muito mais o modo pelo qual o visível não produz o sujeito, mas o reduz
ao estado de objeto: o ídolo é o que reifica o sujeito, ao ser uma reificação
da imagem.
É nesse sentido que digo que há uma verdadeira patologia da imagem, a
qual faz com que aqueles que não têm imagem de si mesmos, senão por meio de
objetos, sejam reduzidos ao estado de objeto e persuadidos de que é a
apropriação e o consumo dos objetos que vão lhes permitir construir uma imagem
de si mesmos. Do ponto de vista inicial do sofrimento social de hoje, pedir o
reconhecimento de identidade peloo consumo dos objetos produz violências. Isto
é, alguém que não tem nenhum meio de se fazer reconhecer em um campo social por
um outro olhar, procura chamar a atenção desse olhar pelo consumo de objetos que
lhe dão uma identidade em relação ao olhar do outro. Para ele serão precisos
Nike, Lacoste etc.. O consumo das marcas torna-se um marcador identitário. De
uma só vez, vamos nos tornar qualificados, identificados, pelos objetos que estamos
à altura de consumir. Fazemos de nós mesmos objetos – e pensamos ser esse
tornar-se objeto o único meio de obter o olhar do outro e um processo de
reconhecimento, portanto, de dignidade. Estamos em uma história de loucos: as
pessoas tornam-se criminosas porque não têm nenhuma imagem de si mesmas. Estão
em uma tal desqualificação interna que vem como uma dor absoluta, que engendra
uma violência absoluta, que dá vontade de matar, de morrer.
Com o objetivo de especificar o
papel cultural do “eikon”, voltemos mais uma vez à terminologia. No seu livro Image, icône, économie, a senhora dirige
sua atenção para o fato de que, nos contextos não cristãos (clássicos e
pagãos), a palavra “oikonomia” designava tudo o que era gestão e administração,
ao mesmo tempo dos bens (economia) e das visibilidades (ikonomia). A senhora
assinala igualmente que o termo “economia” tornou-se, no momento da crise
iconoclasta bizantina, o leitmotiv da defesa icônica. A senhora poderia
elucidar as razões dessa retomada do termo “economia” no contexto cristão?
Para mim, foi uma descoberta saber que os Padres da Igreja tinham, depois
de São Paulo, construído toda a doutrina do “eikon” sobre algo que eles opunham à “teologia”. A imagem é uma
relação econômica, isto é, anti-teológica. A economia é a dimensão real,
histórica, é a dimensão temporal do olhar. Ela designa essa negociação
ininterrupta dos olhares entre o que está presente e o que está ausente. É
dizer que só há vida dos signos numa relação com a ausência e em uma separação da
presença. É magnífico que “a economia” tenha se tornado o conceito operatório
dessa construção, pois isso toca a totalidade das trocas humanas e vai,
efetivamente, do comércio e circulação de signos até o comércio das coisas e a
circulação das mercadorias. A mesma palavra! A que isso se refere? À nossa
responsabilidade ética e política no campo do visível. Cabe a nós escolher. Os
objetos, nisso, não podem nada. Eles não fazem nada, eles não mata, eles
esperam.
Ora, a palavra “economia” não é uma invenção dos cristãos, mas é retomada
do grego clássico: foi muito utilizada por Xenofonte, por Aristóteles. Ela
designa toda a gestão e administração doméstica e, em Aristóteles, é tomada nas
suas relações com a administração da cidade. Como, para Aristóteles, o modelo
familial permanece o modelo da economia política, passamos da gestão e
administração do patrimônio pelo pai, à gestão e administração dos bens e
serviços no campo social. E mesmo o “oikonomos”
era já um intendente. É ele que está encarregado de gerir, administrar,
regular, compatibilizar, velar, pelo equilíbrio na produção, na difusão, no
gasto.
A palavra “economia” foi traduzida ao latim essencialmente por duas
palavras: “dispositio” e “dispensatio”. “Dispositio” é como o grego “systema”;
é o conceito de organização que está por trás e a partir do qual encontramos o
sentido na “oikonomia”: a
organização. O grande “oikonomos” na
teologia é Deus, o grande organizador, o ordenador do mundo, o arquiteto
cosmológico. É também por que a economia foi identificada tão rapidamente com a
providência, com o “cosmos”, em
grego, querendo dizer ao mesmo tempo a ordem, a beleza e o mundo. Estamos em um
mundo onde só podemos admirar e anotar a inteligibilidade, a regularidade, a
ordem e a beleza – “cosmos”. A origem
desse “cosmos” é um “oikonomos”: uma entidade, um princípio
de organização racional e estético sem falha. É por isso que “oikonomia” se tornou “pronoia”, providência.
Mas, a partir do momento em que essa providência, no mundo cristão, entregou-se
ao exercício histórico admirável da economia, produzido pela imaginação cristã
da encarnação, a providência e a ordem do mundo foram mudadas. Em todos os casos,
eles se implementam sobre um outro regime do que o que conhecemos da teologia
cosmológica: aquele da história dos homens como gasto de Deus (Dispensatio). Tal mudança é devida à
encarnação, esta que consiste em duas coisas fundamentais. Um, a temporalização
da divindade que nasce, vive e morre: a divindade se torna temporal e
histórica; dois, a divindade, que não é visível, torna-se visível.
Temporalização e visibilidade são as duas características da encarnação. A
partir do momento em que é Deus que a quis, em que é a providência que organiza
isso, será preciso integrar essa história, essa narração, à “oikonomia”, e dizer que esse fenômeno da
encarnação faz parte do plano geral da divindade, que se torna um plano não
simplesmente invisível, inteligível e cósmico, mas histórico e vivível.
Assim, “eikonomia” – cuja
homofonia, em grego, com “oikonomia”
assinalei, pois, para os grego, “oi”
e “ei” são ambos pronunciados “i” –,
o direito do ícone, a lei do ícone, é também a lei da casa, a nova habitação.
Ele se fez Verbo, Ele se fez Pai e Ele veio habitar entre nós. Desse modo, essa
lei da habitação, do “oikos” e do
ícone, que são completamente homofônicos; e, penso, não apenas homofônicos:
eles são sinônimos. Não podemos separar o registro icônico do registro
histórico e do registro providencial, de gestão e de administração do mundo.
Apenas – como compreenderam muito bem os latinos ao dizer que há não somente “dispositio”, reorganização, mas também “dispensatio”,
gasto – essa economia é, ao mesmo
tempo, em um regime computável, um investimento, com tudo o que isso representa
de perdas e benefícios. E, numa boa economia, é preciso que o gasto seja um
investimento que traga benefícios. Por consequência, a ressurreição é o modo
pelo qual a perda será superada por um benefício incalculável, incomensurável,
que é a Redenção. Há aí uma economia, um investimento e um gasto – pois não é
pouca coisa enviar um filho, uma imagem, e entregá-lo à paixão e à morte: é um
grande risco econômico assumido pela própria divindade. Mas tal risco é bem
gerido, uma vez que isso dura até agora e que é um caso que não conheceu a
bancarrota.
A aposta de seu livro Image, icône, économie era a de desvelar
as fontes do imaginário contemporâneo na querela iconoclasta na época bizantina
(725-843). Ainda que falemos com frequência em relação às “guerras das imagens”
do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, em Nova York, poderíamos
mencionar também a recente lide seguida à publicação das caricaturas de Maomé
em um jornal dinamarquês. Para a senhora, podemos identificar a censura
contemporânea à iconoclastia bizantina? Há diferenças entre essas duas
estratégias de eliminação das imagens?
Todo poder tem suas imagens e recusa ao contra-poder ter sua
visibilidade. Aqui estamos perto da problemática iconoclasta: quem toma o poder
tem o monopólio da imagem e de sua significação. E, portanto, interrompe a
busca icônica do outro, ou o censura.
Entretanto, a iconoclastia bizantina não era uma censura: era uma maneira
de destruir uma instância de poder, recusando as imagens àqueles que delas se
serviam para tomar o poder, justo por reconhecer que tal era o poder das
imagens. Essa prática consistiu em suprimir imagens retirando uma categoria do
poder que se queria eliminar, mas para substitui-lo por imagens do poder que se
queria constituir. E aquele que as destruiu, ao mesmo tempo, compreendeu bem
que as imagens tinham um poder, uma vez que atribuiu a si mesmo o poder de
fazer suas próprias imagens. Os iconoclastas não são an-icônicos: eles são contra as imagens religiosas, as imagens no
campo da Igreja, para desenvolver um imaginário profano, um imaginário do
poder; há até mesmo uma arte iconoclasta. Assim, não se trata de uma eliminação
das imagens, mas de uma eliminação do outro enquanto utiliza suas imagens para
tomar o poder.
Ademais, em Bizâncio, a imagem não é um pretexto. Ao contrário, ela é a
aposta do poder e a própria razão da crise: todos queriam tomar o poder com
suas próprias imagens e suprimir as imagens do outro para tomar-lhe o poder. Isso
quer dizer que a imagem é, nesse momento, reconhecida como portadora de um
poder de convicção, de submissão e de representação do poder do qual se quer
privar seu adversário.
Quando as caricaturas de Maomé são proibidas, isso não é feito por que se
quer tomar o poder, suprimir um poder às imagens. É em um contexto de todo
diverso, em uma outra paisagem política, que é a do terror ideológico. Muitos
não foram enganados por esse história de censura das caricaturas de Maomé,
dizendo que a produção e a denúncia das caricaturas eram uma operação de
propaganda nos dois sentidos. A questão da imagem era aí extremamente
secundária: nem mesmo eram caricaturas que faziam rir, com algum um interesse
gráfico. Apenas se aproveitou de uma manchete visual por meio da caricatura
para inflamar um conflito ideológico que é somente a máscara de um conflito de
tipo econômico. O Islã e as convicções religiosas são hoje a aposta sob a qual
se opõem potências econômicas no mercado do ópio, do petróleo, das armas. Ora,
em vez de dizer que, neste momento, as pessoas morrem por causa do ópio, do
petróleo e do mercado das armas, criou-se uma martiriologia terrificante, ao
dizer que as pessoas se matam porque há um choque de culturas, uma
incompatibilidade de culturas. Mesmo no momento das caricaturas de Maomé,
dizia-se que o conflito advinha da fratura cultural entre os regimes de
religiões. Ora, para mim, tudo isso era apenas simulacro, uma montagem teatral
para esconder as apostas políticas do conflito.
Tomemos um outro exemplo, aquele dos Budas de Bamiyan: eles estavam ali
há muitos séculos, em um país islâmico que, até aí, neles não viam
inconvenientes. Para eles eram ídolos, o Deus dos outros, e isso não lhes
concernia uma vez que não retirava atenção das sua própria divindade. Somente a
partir do momento em que o outro se tornou inimigo eles notaram que aqueles
Budas de Bamiyan faziam parte do patrimônio mundial da cultura, defendido pela
Unesco, representante da cultura ocidental com a qual eles estão em guerra.
Decidiram atacar o Ocidente, tocá-lo onde declara seus mais altos valores. A
saber, não quiseram matar o budismo, mas atacar a ideia que o Ocidente faz da
obra de arte e do patrimônio cultural. É também por isso que filmaram a cena da
destruição. Eu recebi uma imagem em que o filme da destruição é objeto de um
auto-de-fé: filma-se o auto-de-fé do filme para fazer um filme de auto-de-fé
das imagens.
Estamos aí em uma espécie de circularidade das visibilidades – e o 11 de
setembro de 2001 foi a fórmula exemplar do mesmo princípio – que é: uma vez que
vocês são uma sociedade espetacular, nós também iremos fazer espetáculo e fazer
de vocês os espectadores privilegiados da sua destruição... Eles sabem que
Hollywood é inseparável dos modos narrativos escolhidos pelo Pentágono para
construir suas narrações guerreiras e sua legitimidade. São os cenaristas de
Hollywood que fornecem ao Pentágono os cenários para contar aos jovens soldados
e convencê-los da grandeza heroica e legítima de seu sacrifício no Iraque. As
pessoas gostam que para elas sejam contadas suas histórias. George Bush disse
em um discurso: “People like stories”. Então a eles contamos histórias. E como
os militares não sabem contar histórias, pedimos para que Hollywood escreva
histórias que iremos contar aos militares. No mundo islâmico, em guerra
econômica e financeira com os Estados Unidos, acontece de modo similar. Estamos
em uma gestão espetacular: a organização econômica e industrial do espetáculo
torna-se o sujeito de narrações que são lendas – no sentido em que fazemos
lendas em torno de imagens, para torná-las compreensíveis – que precisam ser
contadas para legitimar operações estritamente imperialistas, de um lado e do
outro. O ícone de Bin Laden é inesgotável dos dois lados.
Assim como a imagem foi verdadeiramente uma grande aposta no momento da
guerra iconoclasta, também a gestão industrial do espetáculo coloca-se como
pano de fundo aos verdadeiros contextos do conflito. Mas também não é o
contrário da iconoclastia, porque na questão da iconoclastia, a denúncia dos
ídolos faz parte da problemática escondida do poder. Hoje assistimos a uma
gestão industrial dos ídolos. Cada um quebra os ídolos do outro pois o próprio
dos ídolos, de modo contrário às imagens, é que podemos quebrá-los. Os Padres
já haviam compreendido muito bem que não podemos quebrar a imagem, pois a
imagem não é um objeto. Quando vocês destroem um ícone, vocês não destroem a
imagem. Vocês atacam a sacralidade, mas isso não pode atacar a imagem: vocês
destroem o objeto. A imagem é indestrutível.
Em 2002 a senhora participou de um
projeto de exposição Iconoclash, concebido
e realizado pelo filósofo Bruno Latour e pelo artista Peter Weibel. A aposta
teórica da exposição era chamar a atenção para a problemática da produção e
destruição das imagens existentes nos três domínios culturais diferentes: a
ciência, a arte e a religião. A senhora era membra do comitê científico desse
projeto; como a senhora o julgaria em face do pensamento teórico da imagem nos
nossos dias?
Essa exposição, para mim, foi um pouco um problema, pois a problemática
que Bruno Latour queria apresentar provinha diretamente de meu trabalho sobre a
economia icônica e a iconoclastia. Sem dúvidas foi por isso que ele me associou
ao projeto: porque a maneira com a qual abordei a questão da iconoclastia havia
sugerido que ele poderia abordar o conjunto da problemática da imagem em campos
diferentes sob o signo da positividade da própria destruição e da
reversibilidade das interpretações da violência no campo da criação. Isso
permitiu a ele – com a cumplicidade amigável de muitos teóricos e artistas –
fazer uma exposição de todo atual, isto é, na qual era possível ver formas
críticas, formas de ironia, formas de destruição, no sentido crítico e
sarcástico, dadaísta, surrealista ou científico. Mas em vez de ser um espaço
onde colocar em crise a crença em todos os níveis, por fim, isso produziu uma
exposição de arte contemporânea: a enésima exposição de arte contemporânea na
qual experts em arte contemporânea arranjaram-se, bem ou mal, para impor um
certo número de artistas como emblemáticos dessa positividade da destruição e
dessa turbulência. Penso que, apesar da abundância das obras e dos textos, isso
dissimulou mal uma fraqueza teórica e uma organização consensual sobre a
questão da destruição: a exposição Iconoclash
atraiu o mundo, queria fazer sorrir e ser ao mesmo tempo muito epicurista e
agradável, pois o projeto dizia respeito a um grupo de pessoas talentosas e
cúmplices, as quais tinham estabelecida uma colaboração de longa data. Nada de
conflitual, não podendo dar à manifestação sua dimensão verdadeiramente
política. Por certo é muito excitante para Bruno Latour, que é de uma grande
inteligência filosófico-especulativa, dizer que se tornou o curador que preside
eventos de cultura e de arte que cobrem, cada vez mais, todos os campos: a
religião, a ciência, a arte. É um poder. Mas ele estava proibido de falar do
Islam em Iconoclash. O assunto é
demasiado delicado! Enquanto poderíamos, ao contrário, ter feito uma seção
extremamente interessante – sem indignidade, por outro lado – para dizer que
era agora ou nunca o momento de produzir um espaço de reflexão positiva sobre a
interdição e a destruição. Mas os responsáveis tinham medo de que os
terroristas chegassem a Karlsruhe! Isso não desqualifica o que foi mostrado,
mas devo dizer que a ambição da empresa revela um desejo de cobrir uma
totalidade. Hoje as exposições são eventos no mercado da comunicação cultural.
As ideias circulam, os objetos deixam-se reconhecer, mas não é certo que o pensamento
tenha tido tempo de se renovar verdadeiramente. Em muitos casos, a publicação
programática de um conceito não contribui ao avanço do pensamento. Entretanto, estamos
contentes por ter visto objetos admiráveis que jamais teríamos podido ver de
outro modo, pois se encontram do outro lado do mundo ou são desconhecidos da
maior parte das pessoas... E mesmo se o objeto parece incongruente nesse lugar,
e se o curador da exposição decidiu fazer dela algo completamente diferente,
podemos nos contentar por tê-la visto.
O historiador pode fazer várias ligações, pode se tornar expert das
articulações entre as imagens: por exemplo, entre os magníficos quadros do
século XV que estavam em Iconoclash. Não
tenho nada contra, mas, torná-los solidários a um sistema é esquecer que eles
excedem tal sistema. E quando eles são co-extensivos ao sistema, eles não são
mais operantes. É por isso que as exposições temáticas são tomadas por um
paradoxo interno: serem obrigadas a justificar a co-extensividade do conceito
aos objetos que são apresentados e, se os objetos forem muito bem escolhidos,
eles excedem em muito o projeto. Assim, eles fazem aparecer o caráter
inoperante.
O que acho mais interessante, como modo de reunião dos objetos, é a
exposição das coleções de alto nível. Somos convidados a seguir um olhar
colecionador que pôde, durante uma vida, comprar coisas: tentamos entrar na
história de um olhar, apreender o fio de uma sensibilidade com suas aberturas,
seus riscos, seus transbordamentos. Vi a exposição da doação Daniel Cordier, em
Toulouse, onde está tudo o que ele acumulou durante sua vida: pode ter aí um
tronco de árvore, um objeto das Novas Hébridas, um talismã, um objeto da vida
quotidiana, um quadro de Matta, desenhos de Henri Michaux. História de um olhar
que se exerce em toda uma vida. Há obras de arte no meio de tudo aquilo que uma
vida pôde recolher de bonito, de surpreendente, de improvável ou de
inquietante.
Finalmente, eu me permitiria
colocar-lhe uma última questão concernente à fotografia. No seu livro Image, icône, économie a senhora fala da
fotografia a fim de colocá-la em paralelo com a imagem aquiropita (a imagem que não é feita pela mão do homem). A
senhora assinala que, uma vez que todo gesto fotográfico coloca a questão da
impressão, a invenção da fotografia foi acolhida como confirmação da
possibilidade de produzir a imagem
aquiropita pelo artefato e de fabricar as impressões fetiches, tais como o
Santo Sudário e o Véu de Verônica. A senhora poderia indicar qual a natureza da
relação entre essas imagens supostamente “verdadeiras” e a demanda de veracidade
da fotografia documental?
A questão da impressão é muito ligada ao fato de que o texto ao qual você
faz alusão é consagrado à construção do Santo Sudário de Turim. Portanto, a uma
fotografia de tipo impressa e na qual se joga com a impressão fotográfica e a
impressão de um corpo real. Dizendo que a fotografia, que já é uma impressão,
tinha fotografado uma impressão que, ela mesma, era o negativo de uma
fotografia. É, verdadeiramente, a fotografia sobreposta, em uma perspectiva
indicial da fotografia. Hoje, a maior parte da produção fotográfica é digital,
portanto, não mais indicial. Ela é por pixels, segundo um sistema binário, e
permite todas as manipulações.
No que diz respeito à veracidade da fotografia, ainda na época em que era
indicial, era já uma arte do falso, no sentido do simulacro habitado pela
crença do espectador. As imagens não têm realidade ontológica. Eu disse há
pouco, mesmo antes de falarmos sobre fotografia: o estatuto do eikon é uma aparência. Assim, o fato de que a fotografia possa ser uma
punção em um estado do mundo não dá a prova desse estado do mundo por causa da
fotografia.
Para compreender melhor, remeto a um filme de Jean Eustache que se chama Les photos d’Alix. Esse filme, absolutamente
genial, consiste em mostrar uma jovem fotógrafa que mostra a um jovem, filho de
Jean Eustache, fotos que ela tirou. Ela diz o que há, a data, a hora, o lugar,
a estação, os nomes, quem são as pessoas que vemos na foto. Há, portanto, uma
relação com o real: compreendemos que ela tirou essas fotografias em Londres,
há três meses, de noite etc.. Mas quando vemos a foto, não vemos nada correspondente
àquilo que ela diz. No início, há uma correspondência um pouco vaga, mas a
credibilidade cresce. Em seguida, progressivamente, no correr dos 18 minutos e
18 fotos, estamos no fim do filme e vemos um quarto, uma escrivaninha diante de
uma janela, o que há sobre a escrivaninha, uma lâmpada, um espelho. Ela diz:
“ah, esta foto eu tirei há três meses em Fez, é um pôr-do-sol em Fez”. “Podemos
reconhecer Fez”, dirá ela, e vemos a escrivaninha e a janela etc..
Esse filme mostra bem que a foto remete a estados do mundo. Em um
momento, ela diz “eis uma foto”: vemos que tal foto é tirada dentro de um
carro, o condutor é então tomado pelas costas, há o retrovisor e, no
retrovisor, vemos longe ao fundo. “Esta é uma lembrança da infância, é a foto
de meu pai, enfim, de meu padrasto, tal como eu sempre o vi; viajávamos juntos,
era os Estados Unidos, entre São Francisco e não sei mais onde, enfim, era os
Estados Unidos; eu estava atrás, via suas duas grandes mãos no volante e só
via, de seu rosto, aquilo que se mostrava no retrovisor. É uma lembrança da
infância.” E ela diz: “É uma lembrança da infância mas não como as crianças
delas se lembram, e é por isso que esta foto é uma lembrança. Enfim, é a foto
que fiz recentemente, de uma lembrança que tive.” Pouco a pouco percebemos que
estamos vendo uma foto de infância, mas não como são as fotos de infância: ela
fotografou há um mês uma lembrança da infância. Não vemos nem seu pai nem os
Estados Unidos: a foto está na provocação da palavra à cegueira que exige a
composição do olhar. O objeto que vemos flutua entre eles como um espectro de
um mundo que não existe mais, de sua infância, de um pai que não está mais aí,
de um país: não vemos por que, sobre essa foto, ela tem necessidade de dizer
que foi há anos, nos Estados Unidos, uma vez que fora há um mês, na memória
dessa viagem que fez com seu pai. Esse filme é uma obra-prima sobre a
desrealização do olhar em face da imagem.
Aliás, o que ela diz, tecnicamente, sobre os objetos é verdade. Por
exemplo, em certo momento, vemos uma foto como duas botas, como as de Van Gogh.
Antes que as vejamos, vemos a fotógrafa dizer “bem, é uma foto que tirei em
Londres, em um pub, gosto muito dos pubs”, e, de pronto, vemos a foto que
mostra, ao lado das botas, um vazio. Ela diz: “eu estava em pé, com esses dois
homens; com este – ela mostra um sapato –, com este eu perdi contato, o outro é
ainda um amigo, gosto muito da atmosfera dos pubs”. Ela conta uma história. E
então, repentinamente, diz: “o que me importava nessa foto era, efetivamente,
trabalhar com a falta de foco na parte de baixo – que está desfocada – e com
essa luz branca – de fato, tudo está branco – que descia desde o canto – e
também aí, realmente, há uma luz branca –, é uma lembrança da Inglaterra”. Sem
parar, estamos entre o que vemos e o que ela diz mas não vemos: a referência ao
quadro de Van Gogh e o que ela mostra ao jovem, o que ela faz entender ao
mostrar-lhe. Essa mudança do que damos a ver, do que damos a entender, do que
fazemos crer, é o regime da fotografia, compreendido neste o da fotografia
documental.
O que dizemos, o que escrevemos, o que contamos, de modo intrínseco faz
parte daquilo que fazemos ver. Se mostramos a foto sem dizer nada, sem palavra,
como um material bruto, nós a damos à visão de um outro sem construir uma
relação entre o ver e o fazer ver por meio da palavra e da partilha da crença.
A foto não prova o real, mas ela sempre coloca em jogo, como toda imagem, a
relação de confiança e de crença que um olhar tem em relação a um outro olhar.
No meu trabalho sobre o fotojornalismo, dou uma grande importância ao que
é dito do país e do momento em que uma foto foi tirada, àquilo que me dão a
ver, à razão pela qual tal foto fora tirada, e ao que ela pode significar para
quem a tirou. Em muitos casos, penso ser a foto inútil, desinteressante ou
excessiva, pois não se dirige mais a mim como alguém que partilharia a
possibilidade de construir, ao mesmo tempo, o que ela quer dizer. Ainda que
tenha necessidade de um efeito real, a imagem o excede, e é sobre tal excesso
que se constrói a liberdade do outro, a quem nos endereçamos. Mas se essa
liberdade é deixada, é preciso ver sobre qual base de partilha: há aí um
caminho dos regimes de crença diferentes que podem ir da credulidade à
confiança, e da confiança a uma necessidade de liberdade.
Acabo de escrever um texto em que homenageio Sophie Ristelhueber, pois penso
que em seu trabalho sobre o Iraque e a Palestina – no qual não vemos nem a
guerra, nem o guerreiros, nem as vítimas – ela não mostra cenas, nem teatraliza
o conflito. Pelo contrário, é o que ela não mostra que faz ver e, portanto,
compreender. Ela se considera totalmente oposta às fotos do fotojornalismo: não
é uma reportagem, é um objeto político e, ao mesmo tempo, suficientemente
artístico, pois ela compõe, trabalha, ela faz as coisas não importa como.
Acho que isso nos esclarece também sobre o que temos direito de exigir
dos fotojornalistas que trabalham demasiadamente, como na revista Choc, por exemplo, em que vemos até onde
pode ir a obscenidade na apreensão do real. A obscenidade do real pode ser algo
lamentavelmente trivial: é a pretensão de tudo mostrar, em vez de retirar.
Assim, como diz Comolli para o cinema documentário: “quando vou fazer um
documentário, começo por me perguntar sobre o que não vou mostrar. Começo
decidindo o que não mostrarei.” Começamos pela retirada, depois vemos o que
deixamos a ver: construímos o fora de campo. E para a fotografia é o mesmo: é
preciso sempre construir seu fora de campo.
Imagem: Basílica de San Vitale, Ravenna.