sábado, 31 de março de 2012

Kafka defendido dos seus intérpretes



Sobre o inexplicável circulam as mais variadas lendas. A mais engenhosa - que foi encontrada pelos atuais guardiões do Templo ao remexerem nas velhas tradições - explica que, sendo inexplicável, ele permanece como tal em todas as explicações que dele são e continuarão a ser dadas durante os séculos. Exatamente essas explicações constituem a melhor garantia da sua inexplicabilidade. O único conteúdo do inexplicável - aqui está a sutileza da doutrina - consistiria no comando - verdadeiramente inexplicável -: "explica!" Não podemos escapar dessa ordem, porque ela não pressupõe nada de explicável, mas é ela mesma o único pressuposto. O que quer que se responda ou não se responda - portanto, até o silêncio - será de todo modo significativo, conterá uma explicação.
Os nossos ilustres pais - os patriarcas -, não encontrando nada para explicar, procuraram em seus corações como poderiam exprimir este mistério e não encontraram, para o inexplicável, nenhuma expressão mais adequada do que a própria explicação. O único modo - eles argumentaram - para explicar que não há nada para explicar é dar explicações disso. Qualquer outra atitude, compreendido o silêncio, agarra o inexplicável com mãos demasiadamente desajeitadas: somente as explicações o deixam intacto.
Entre os patricarcas, que foram os primeiros a formular esta doutrina, ela andava, no entanto, inseparavelmente conjugada a um codicilo, que os atuais guardiões do Templo, ao contrário, deixaram cair. Ele especificava que as explicações não seriam eternamente duradouras e que um dia, que chamavam "dia da Glória", elas iriam colocar fim às suas danças ao redor do inexplicável.
De fato, as explicações são apenas um momento na tradição do inexplicável: o momento que o guarda, deixando-o inexplicado. Privadas de conteúdo, as explicações exaurem assim a sua tarefa. Mas no ponto em que, mostrando a própria vacuidade, elas o deixam ir, também o inexplicável vacila. Inexplicável, na verdade, eram apenas as explicações, e para explicá-las é que foi inventada a lenda. Aquilo que não era para ser explicado está perfeitamente contido naquilo que não explica mais nada.


Giorgio Agamben. Kafka difeso dai suoi interpreti. In.: Idea della prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 127-128. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Hieronymus Bosch. A morte e o avarento. 1490. National Gallery of Art, Washington.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ausência



Por pouco
e a minha mãe teria casado
com o senhor Zbigniew B. de Zduńska Wola.
Se tivessem uma filha – não seria eu.
Talvez com a memória para nomes, rostos
e canções ouvidas uma só vez – melhor que a minha.
Distinguindo sem erro um pássaro do outro.
Com excelentes notas de física e química,
de polonês nem tanto,
mas escrevendo poemas às escondidas,
logo muito melhores que os meus.

Por pouco
e naquela mesma época meu pai teria casado
com a senhorita Jadwiga R. de Zakopane.
Se tivessem uma filha – não seria eu.
Talvez mais teimosa e intransigente.
Saltando sem medo na água funda.
Suscetível ao que comove as massas.
Vista em vários lugares ao mesmo tempo,
poucas vezes com um livro, muito mais com a bola,
jogando com meninos nos pátios e ruas.

As duas poderiam ter se encontrado
na mesma escola e na mesma classe,
mas sem afinidades,
nenhum parentesco,
e na foto da turma, bem afastadas entre si.

Fiquem aqui, meninas
– diz o fotógrafo –,
as pequenas na frente, as mais altas atrás.
E sorrisos bonitos quando eu der o sinal.
Verifiquem ainda,
não falta ninguém?

– Sim, senhor, estamos todas aqui.





Wislawa Szymborska




(Tradução Henryk Siewierski - poema publicada na revista Piauí, n. 66. Imagem: Larry Towel, México, 1994).

sábado, 24 de março de 2012

De-lírios e sábados



Um estalo e nada mais. Toda febre advinda da plurissignificação das palavras, toda agonia diante da impossibilidade de cultivar qualquer fala, de falar qualquer palavra para além da palavra, fazia parte agora de um mesmo encontro intermitente, que não parava de acontecer. Ininterrupta, a voz alheia soava agora como um sopro em meio a um sonho qualquer, em meio ao suor que não cessava de ser suado, num espaço não menos real que o desperto. Sonhos de uma noite de verão que acabava de acabar. Sonhos com um rosto pelo qual, mal desperto, o meu eu de outrora pudesse se apaixonar ao primeiro olhar... Shakespeare não teria razão em pensar diferentemente: o despertar como novo olhar, como possibilidade de encanto, de salto para além do bom sonho (aliás, sonho de uma noite de verão, um sonho desperto, não poderia ser senão "o sonho de um desperto", de alguém que olha no momento mesmo em que a distinção entre vigília e sono transformar-se-ia em "conversas fiadas"). Estalados estão agora os olhos, como esferas de fogo que escapam às águas que tentam apagá-las. Traduzir os sonhos aos despertos seria uma tarefa necessária, não fosse tal tarefa inócua, não fossem os despertos sonâmbulos. Os alforjes vazios chamados palavras agora pululavam desde a sua posição intermitente, desde a sua figuração como objetos palpáveis para os poetas (claro, sempre ingênuos poetas...). O sonho continua e a vigília agora é tarefa do vigário; o incômodo com as pálpebras que insistem em se mover sem que nem ao menos alguém consiga fazê-las parar; as palavras que insistem em sair da ebriedade destes dedos que, incontroláveis, parecem tomar seus próprios rumos; a voz de Gil Scott-Heron como que a fazer do sono o eterno sonâmbulo; as frases mal construídas; o desprezo pelo tempo; o tempo desprezado reagindo; a ação interrompida pelo sonho... o delírio saturnino que, em cada piscar, traz a imagem düreriana para fazer as vezes do tempo que perdi - desperto ou em sonho -, mas que não cesso de reencontrar, mesmo não querendo... Nada mais, apenas minha cabeça a rolar, pelas mãos da própria mandante de meu assassínio, mesmo que não tenha vindo para anunciar ninguém (tampouco vingar alguém), senão a própria impossibilidade de qualquer anúncio, todos estes que, agora, pelos meus poros, saem para o mundo...

Imagem: Caravaggio. Judite cortando a cabeça de Holofernes. 1598. Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma

quinta-feira, 22 de março de 2012

Ética masoquista


Em 1963, em um célebre ensaio, Jacques Lacan propõe uma leitura paralela de Kant e Sade na qual o objeto da lei e o objeto do desejo reprimido são identificados. Podemos nos perguntar, como Gilles Deleuze sugerira cinco anos depois, se a subversão da lei kantiana não tinha sido realizada por Sacher-Masoch de modo mais eficaz do que por Sade. O virtuoso kantiano e o masoquista coincidem, de fato, precisamente nisto: ambos encontram o seu elemento próprio unicamente no dever e na humilhação, isto é, na execução de um comando. Nesse sentido, a ética kantiana - e, com esta, grande parte da ética moderna - é essencialmente masoquista. À primeira vista, todavia, o masoquista e o virtuoso kantiano diferem-se porque enquanto para este o comando não contém nenhum prazer, aquele encontra na humilhação o seu prazer. Não basta dizer, entretanto, que o masoquista tem prazer em ser humilhado pelo comando da lei; é preciso acrescentar que o masoquista tem prazer no fato de que a lei tem prazer em humilhá-lo. O masoquista, de fato, não tem prazer na dor e na humilhação, mas ao procurar no sádico um prazer que consiste em infligir dor e humilhação. O masoquista - e nisto consiste a sutileza da sua estratégia - faz gozar a lei (personificada pelo sádico) e somente desse modo atinge o prazer. A lei é mantida e o seu comando seguido com zelo, mas ela não tem em si nada mais de respeitável, porque o seu comando contém o prazer. Enquanto a operação do homem de Sade se volta imediatamente contra a lei enquanto tal, a do masoquista é voltada contra o respeito, minando e destruindo a sua base. Vitória efêmera, todavia, mostrada eficazmente pelas modernas massas masoquistas que, não respeitando o líder que aclamam, exatamente por isso não podem dizer-se livres. A queda do líder, que abre para elas a possibilidade de vilipêndio, é também a sanção da sua servidão.

Giorgio Agamben. Opus Dei. Archeologia dell'ufficio. Homo sacer, II, 5. Torino: Bollati Boringhieri, 2012. p. 135. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Salò o le 120 Giornate di Sodoma. (1975). Direção: Pier Paolo Pasolini.


sábado, 17 de março de 2012

Saber ver


Jamais se pode dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver. Para saber duvidar do que se vê é preciso ainda saber ver, ver apesar de tudo. Apesar da destruição, do esfacelamento de todas as coisas. É preciso saber olhar como olha um arqueólogo. E é por meio de tal olhar - de tal interrogação - sobre o que vemos que as coisas começam a nos olhar desde seus espaços enterrados [enfouis] e seus tempos evadidos [enfuis]. Caminhar hoje em Birkenau é deambular por uma paisagem pacífica que foi discretamente orientada - balizada por inscrições, explicações, em suma, documentada - por historiadores desse "lugar de memória". Como a história terrificante que teve este lugar como teatro é uma história passada, gostar-se-ia de crer nisto que se vê agora, isto é, que a morte se foi, que os mortos não estão mais aqui.
Mas é exatamente o contrário o que se descobre pouco a pouco. A destruição dos seres não significa que eles se foram para outro lugar. Eles estão aqui, exatamente aqui: nas flores dos campos, na seiva das bétulas, neste pequeno lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Lago, água dormente que exige do nosso olhar um alerta máximo a cada instante. As rosas colocadas pelos pelegrinos sobre a superfície da água flutuam ainda e começam a apodrecer. As rãs saltam por toda parte assim que me aproximo da borda do lago. Abaixo estão as cinzas. Aqui é preciso compreender que se caminha no maior cemitério do mundo, um cemitério cujos "monumentos" são apenas os restos dos aparelhos precisamente concebidos para o assassinato de cada um separadamente e de todos ao mesmo tempo.
Os "conservadores" desse muito paradoxal "museu de Estado" se depararam também com uma dificuldade inesperada e dificilmente manejável: na zona ao redor dos crematórios IV e V, à margem da mata de bétulas, a própria terra faz constantemente ressurgir os traços dos massacres de massa. A lixiviação das chuvas, em particular, faz ressurgir incontáveis lascas e fragmentos de ossos à superfície do solo, de modo que os responsáveis pelo lugar se viram obrigados a colocar terra para recobrir essa superfície que recebe ainda o chamado do fundo, que vive ainda do grande trabalho da morte.

Georges Didi-Huberman. Écorces. Paris: Minuit, 2011. pp. 61-62. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Lago das cinzas em Birkenau.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Tempo e palavra


As palavras são alforjes carregados com a matéria do tempo - e o vai e vem inusitado dos significados, bem como o espaço vazio dentro delas, às vezes é, ao mesmo tempo, a única matéria sólida e insólita que podemos tocar. Desse toque surgem as expectativas das reminiscências e as perspectivas de futuro e um jogo incauto que leva quem nele entra às portas de um delírio fantasmático, que nada mais é que a constante e única experiência que nós, seres de palavras, fazemos do presente. Esse jogo de azar - que, como diria Benjamin, tem o fascínio de liberar as pessoas da espera - é o mesmo que experimentava Blanqui - como lembra o mesmo Benjamin - escrevendo desde sua cela em Fort du Taureau: "O universo inteiro é composto de sistemas estelares. Para criá-los, a natureza tem apenas cem corpos simples a sua disposição. Apesar da vantagem prodigiosa que ela sabe tirar desses recursos, e do número incalculável de combinações que eles oferecem à sua fecundidade, o resultado é necessariamente um número finito, como o dos próprios elementos; para preencher sua extensão, a natureza deve repetir ao infinito cada uma de suas combinações originais ou tipos. / Todo astro, qualquer que seja, existe portanto em número infinito no tempo e no espaço, não apenas sob um de seus aspectos, mas tal como se encontra em cada segundo de sua duração, do nascimento à morte. Todos os seres distribuídos em sua superfície, grandes ou pequenos, vivos ou inanimados, partilham o privilégio dessa perenidade. / A terra é um desses astros. Todo ser humano é, pois, eterno em cada um dos segundos de sua existência. O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes. Assim para cada um. / Todas essas terras se abismam, uma após a outra, nas chamas renovadoras, para delas renascer e recair ainda, escoamento monótono de uma ampulheta que se vira e se esvazia eternamente a si mesma. Trata-se do novo sempre velho, e do velho sempre novo." As palavras, também elas, esses vazios alforjes elegantes, entram no jogo de azar da existência humana. Perdidos em meio ao vazio das palavras, nós, viciados jogadores, cremos não esperar enquanto jogamos, mas, ao perceber o movimento do jogo, irremediavelmente sabemos que tempo e palavra são as medidas de nossa eterna espera.

Imagem: Pieter Bruegel. O triunfo da morte. (detalhe). 1562. Museo del Prado, Madrid.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Cascas



Coloquei três pequenos pedaços de cascas sobre uma folha de papel. Olhei. Olhei pensando que olhar talvez me ajudaria a ler algo que jamais foi escrito. Olhei as três pequenas lascas de casca como as três letras de uma escritura antes de todo alfabeto. Ou, talvez, como o começo de uma carta escrita, mas a quem? Dou-me conta de que as dispus espontaneamente sobre o papel branco no sentido mesmo em que vai minha língua escrita: cada "letra" começa à esquerda, aí onde enfiei minhas unhas no tronco da árvore para dela retirar a casca. Em seguida, ela se desdobra à direita, como um fluxo infeliz, um caminho rompido: esse desdobramento estriado, esse tecido da casca que se rasga muito cedo.
São estas as três lascas extraídas de uma árvore, há algumas semanas, na Polônia. Três lascas de tempo. Meu próprio tempo nestas lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler; um pedaço de presente, aí, sob meus olhos, sobre uma página branca; um pedaço de desejo, a carta por escrever, mas a quem?
Três lascas cuja superfície é cinza, quase branca. Já datada. Característica da bétula. Ela se descama em espirais, como os restos de um livro queimado. Sobre a outra face, ela é ainda - no momento em que escrevo - rosa como carne. Ela aderia tão bem ao tronco. Ela resistiu à pegada de minhas unhas. As árvores também valorizam sua pele. Imagino que, com a passagem do tempo, estas três lascas de casca ficaram cinza, quase brancas, dos dois lados. Eu as conservarei, as armazenarei, as esquecerei? E se sim, em que envelope de minha correspondência? Em que prateleira de minha biblioteca? O que pensará meu filho assim que ele se deparar com estes resíduos quando eu já estiver morto?

Georges Didi-Huberman. Écorces. Paris: Minuit, 2011. pp. 9-10 (Trad.: Vinícius N. Honesko)

Imagem: Foto tirada por Didi-Huberman na sua viagem a Birkenau, em junho de 2011.

terça-feira, 6 de março de 2012

Tiqqun de la noche


Se um prefácio inteligente - ou, como se diz, "autônomo" - não deve tratar de nada e reduzir-se, no máximo, a uma espécie de falso movimento, uma boa nota ou posfácio pode ser apenas o que mostra como o autor não tem absolutamente nada a acrescentar ao seu livro.
A nota é, nesse sentido, o paradigma do tempo do fim, no qual a última coisa que pode vir à mente de uma pessoa sensata é acrescentar algo ao já feito. Mas exatamente essa arte de falar sem dizer nada e de agir sem fazer - ou, caso se queira, de "recapitular", de desfazer e de salvar o todo - é o que há de mais difícil.
O autor dessa nota se dá conta perfeitamente - como quem quer que escreva em italiano sobre filosofia primeira ou política - de ser um sobrevivente. Ou ainda, exatamente essa consciência o distingue daqueles que pretendem escrever hoje sobre tais assuntos. Ele sabe que não apenas "a possibilidade de despertar a existência histórica de um povo" dissolveu-se já há um tempo, mas que até mesmo a própria ideia de um chamamento de um povo ou de uma tarefa histórica assimilável - de uma klesis ou de uma "classe" - deveria ser repensada do começo ao fim. Essa condição de sobrevivente - de escritor sem destinatário ou de poeta sem povo - não lhe autoriza nem o cinismo nem o desespero. Ao contrário, o tempo presente, como tempo que vem depois do último dia, como tempo em que nada pode acontecer porque o novissimo está de todo modo em curso, parece-lhe o mais maduro, o único verdadeiro pleroma dos tempos. O próprio de tal tempo - do nosso tempo - é que, a um certo ponto, todos - todos os povos e todos os homens da terra - encontraram-se em posição de resto. Isso implica, observando-se com mais atenção, uma generalização sem precedentes da condição messiânica, na qual o que de início era apenas uma hipótese - a ausência de obra, a singularidade qualquer, o bloom - tornou-se realidade. Exatamente porque era dirigido a esse não-sujeito e a essa "vida sem forma" e a esse shabbath do homem - isto é, a um público que por definição não podia recebê-lo - é que se pode dizer que o livro não falhou no seu objetivo e não perdeu, portanto, nada da sua inatualidade.
No sábado, como é notório, devemos nos abster de toda melakhà, de toda obra produtiva. Esse ócio, essa inoperosidade central é, para o homem, uma espécie de alma suplementar ou, caso se queira, a sua verdadeira alma. Um ato de pura destruição, todavia, uma atividade que tivesse um caráter perfeitamente destrutivo ou descriativo, equivaleria à menuchà, ao ócio sabático e, como tal, não seria proibido. Não o trabalho, mas a inoperosidade e descriação são, nesse sentido, o paradigma da política que vem (que vem não significa futura). A redenção, o tiqqun que está em questão no livro, não é uma obra, mas uma espécie particular de vacância sabática. Ela é o insalvável que torna possível a salvação, o irreparável que deixa advir a redenção. Por isso, no livro, a pergunta decisiva não é "o que fazer?", mas "como fazer?", e o ser é menos importante do que o assim. Inoperosidade não significa inércia, mas katargesis - isto é, uma operação em que o como substitui integralmente o o quê, em que a vida sem forma e as formas sem vida coincidem em uma forma de vida. A exposição dessa inoperosidade era a obra do livro. Ela coincide perfeitamente com esta nota.

Giorgio Agamben. Tiqqun de la noche. In.: La Comunità che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001. pp. 91-93. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Francisco Goya. Velho no balanço (desenho). 1824-28. Hispanic Society of America, New York.


segunda-feira, 5 de março de 2012

Pequeno Parágrafo sobre tempos faltantes



Senti-me caindo fora do tempo, em terras soltas, onde espectros que outrora rezavam junto a mim suas orações harmônicas e melódicas - ritmadas pelo tempo - agora calavam-se e davam-me as costas tranquilamente. Agora, ainda assim há um agora, ainda consigo ater-me, com sarcasmo, aos ignominiosos resquícios de uma memória perfumada, cheia de cartas não escritas e outras tantas não respondidas, repleta de imagens sedosas e de um silêncio musical. Mas o agora do tempo faltante, desse lugar obtuso e cheio de silêncio lúgubre, é também o único nada de onde tudo brota (e as fantasias dos teólogos que clamam por uma creatio ex nihilo agora, neste agora, só me fazem rir). E como cair onde nem mesmo o onde é ou pode ser dito? Como cantar a criação no lugar que é só o ponto final da queda? Só agora, num outro agora já condenado, dou-me conta de que tudo - o tudo que provém do nada - estava escrito nas costas dos fantasmas que de mim agora se afastavam. O agora, então, é apenas a questão do saber que em breve não conseguirei mais ler tais inscrições, e que o tempo não será mais o das palavras, mas somente o das sombras por estas mesmas palavras deixadas como que a pairar nestas terras soltas. E, agora - não sei mais em qual -, só me restam as palavras, a palavra, que nunca serão minhas mas provêm, como as sombras, da pena da poeta:

A palavra
só irá
arrastar consigo outras palavras,
a frases frases.
O mundo bem queria
definitivamente
impor-se,
estar já dito.
Não o digam.

Palavras, sigam-me!
Para que nada seja definitivo
- nem esta ânsia de palavras
nem o dito e o contradito!"

domingo, 4 de março de 2012

Somewhere out of the world



"Sejam como passantes!" - Evangelho de Tomás

O Bloom aparece inseparavelmente como produto e causa da liquidação de todo ethos substancial, sob o efeito da irrupção da mercadoria no conjunto das relações humanas. Ele próprio é, portanto, o homem sem substancialidade, o homem tornado realmente abstrato, por ter sido de fato extirpado de qualquer meio, despossuído de todo pertencimento e, em seguida, jogado na errância. Assim o conhecemos como esse ser indiferenciado "que não se sente em casa em nenhum lugar", como esta mônada que não é de nenhuma comunidade no mundo "que engendra somente átomos" (Hegel). Naturalmente, admitir a universalidade do estatuto de pária, de nosso estatuto de pária, seria fazer luto por excessivas mentiras convenientes, tanto para aqueles que pretendem se integrar a essa "sociedade" quanto para os que a ela se integram com a pretensão de criticá-la. A famosa doutrina das "novas-classes-médias" ou, alternativamente, da "vasta-classe-média", corresponde já há meio século à negação de nossa bloomitude, ao seu travestimento. Gostaria-SE assim de recapturar em termos de classe social a dissolução acabada de todas as classes sociais. Pois o Bloom é também o neo-burguês de hoje, a quem falta tão pateticamente a certeza de sua burguesia, como ao proletário que não tem mais atrás de si os vestígios de um proletariado. No limite, ele é o pequeno-burguês planetário, o órfão de uma classe que nunca existiu. De fato, como um indivíduo resultava da decomposição da comunidade, o Bloom resulta da decomposição do indivíduo, ou ainda, para ser mais claro, da ficção do indivíduo - o indivíduo burguês só existiu nas autoestradas e ainda há acidentes -. Mas seria um equívoco sobre a radicalidade humana que o Bloom expõe se ele fosse representado sob a espécie tradicional do "desenraizado". O sofrimento ao qual expõe então toda ligação verdadeira tomou proporções tão excessivas que ninguém pode mais nem mesmo se permitir a nostalgia de uma origem. Além disso, foi-lhe necessário, para sobreviver, o morrer em si. Assim, o Bloom é o homem sem raízes, o homem que tem o sentimento de estar em casa no exílio, que se enraizou na ausência de lugar e para quem o desenraizamento não evoca mais o banimento, mas, ao contrário, uma situação ordinária. Não é o mundo que ele perdeu, mas o gosto do mundo que teve de deixar atrás de si.

Tiquun. Théorie du Bloom. Paris: La Fabrique, 2000. pp. 49-50. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko).

Imagem: Jean-Baptiste-Siméon Chardin. Oração antes da refeição. (detalhe) 1740. Musée du Louvre, Paris.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Lutero e a tradução do sagrado


De 1522 a 1534 Lutero realiza a primeira tradução completa da Bíblia em língua alemã. Nos mesmos anos ele escreveu um Sendbrief vom Dolmetschen (Carta sobre a tradução) no qual expõe os princípios fundamentais da sua teoria da tradução e as regras que ele mesmo tinha procurado seguir e que todo futuro tradutor deveria procurar seguir. É notório que a tradução de Lutero assinala, por assim dizer, o nascimento da língua alemã moderna. Mas é necessário não esquecer que também o seu Sendbrief vom Dolmetschen constitui uma contribuição importante à teoria da tradução em relação a qual, no âmbito da cultura alemã, podem ser aproximados em questão de importância talvez somente as notas de Goethe ao Divan e as considerações de Walter Benjamin em torno ao que ele mesmo disse ser “a tarefa do tradutor”. É necessário não esquecer, em suma, que, ao menos no caso da cultura alemã, um complexo de circunstâncias históricas fez coincidir em um único momento tanto a estreia literária da língua moderna quanto uma das provas mais profundas e mais ricas de consequências da reflexão sobre o próprio conceito de tradução.
Lutero escrevia no século XVI e dedicava as suas reflexões acima de tudo, senão exclusivamente, não à tradução em geral, mas à tradução do que considerava texto sagrado, a própria palavra de Deus. Para nós, laicos, e laicos do século XX, é extremamente difícil colocar-se naquela dimensão temporal e cultural ao ponto de perceber na sua atualidade específica e única, na sua originária forma viva, a experiência de Lutero tradutor e teórico da tradução. Podemos, no entanto, recuperar ao menos um indício da audácia dessa experiência confrontando as palavras do Sendbrief com aquelas propostas pelos calvinistas de Genebra, em 1535, à sua tradução da Bíblia para o francês.
Os calvinistas genebreses escrevem:
No que diz respeito aos hebraísmos, traduzimos palavra por palavra aqueles que têm uma sua particular evidência, que não podem ser de outro modo bem expostos na nossa língua e que todavia não são em relação a esta tão distantes ao ponto de torná-la obscura.
Diz, ao contrario, Lutero:
Não é preciso pedir às palavras latinas para ensinar-vos como se pode falar o alemão. Deve-se dirigir à mãe na casa, às crianças na rua, ao homem comum no mercado, observar como a sua boca fala e traduz respeitando o seu ensinamento, porque somente então eles vos compreenderão e terão a sensação de que estais falando alemão.
Seria temerário a partir disso deduzir que Lutero nutrisse menor respeito do que os calvinistas pela sacralidade do texto por traduzir, ou que os calvinistas se abandonassem mais do que Lutero à intervenção de Deus, que lhes teria iluminado segundo lhes agradasse – como eles afirmam – na sua atividade de tradutores. Para Lutero, o ditado da Bíblia não era menos palavra de Deus do que para os calvinistas; e, não menos do que os calvinistas, Lutero confiava no socorro iluminador de Deus enquanto realizava a sua tradução. Ao contrário, poder-se-ia talvez procurar verificar historicamente se existiram diferenças de caráter social entre as modalidades e os objetivos do apostolado calvinista e aquelas do apostolado luterano, já que é possível que a insistência de Lutero sobre a necessidade de dispor de uma Bíblia percebida como palavra de Deus em alemão pela “mãe na casa”, pelas “crianças na rua”, pelo “homem comum no mercado”, implicasse o desejo de fazer chegar a palavra de Deus, superando os obstáculos culturais, às pessoas que estivessem nos estratos mais baixos da escala social, enquanto a tradução calvinista, com os seus hebraísmos “traduzidos palavra por palavra”, teria sido acessível a pessoas de condições sociais um pouco mais elevadas e de formação cultural um pouco mais erudita.
Certo sim é que a tradução da Bíblia de Lutero, nas suas intenções sempre, e quase sempre nos fatos, deu a quem quer que a leu ou a escutou a “impressão de que lhes [eles mesmos] falava alemão”; enquanto a tradução dos calvinistas genebreses, menos do que discorrer no leito das locuções de língua francesa familiares a todo estrato social, acabou por impor a adoção, por parte das pessoas de mais modesta ou de nenhuma formação erudita, de hebraísmos (e grecismos) jamais ouvidos antes e destinados a sobreviver com as conotações imprecisas daquela particular matriz, quando também passaram a fazer parte da linguagem cotidiana de comunidades para as quais eventos e locuções profanas eram constantemente entrelaçados com eventos e locuções sagradas. Em resumo, no calvinismo dos países de língua francesa as locuções adquiridas peculiarmente da tradução genebresa da Bíblia conservaram sempre, ou por muito tempo, as características de citações de uma linguagem heterogênea em relação àquela cotidiana. Não por acaso, no mais, uma tradição crítica que possui um fundo de verdade faz remontar somente ao século XVII, e a um autor católico, e não calvinista, como Pascal, a estreia do francês moderno. E não por acaso, repetimos, exatamente a Pascal: portanto, a um católico, sim, mas a um católico que traduziu na linguagem cotidiana as asperezas dos hebraísmos e dos grecismos da Bíblia genebresa, assim como – por assim dizer – traduziu na própria experiência do catolicismo componentes relevantes da experiência calvinista. Essa homogeneidade entre língua sagrada e língua cotidiana, promovida por Pascal, foi então o pressuposto, não muito remoto, graças ao qual as afinidades de ideologia e de experiência religiosa entre Rousseau e o pietismo alemão encontraram o seu correspondente nas afinidades entre a linguagem rousseauniana e aquela que Langen definiu o “Wortschatz”, o “patrimônio lexical”, de matriz luterana, do pietismo alemão. Tanto o “Wortschatz” de Rousseau quanto o do pietismo alemão são compostos não por vocábulos costumeiros das ocasiões cotidianas e profanas, que, de acordo com o uso que deles se faz, dos tempos e dos lugares em que ressoam, adquirem conotações ou ecos sagrados.
Lutero, portanto, e nisso se revela um aspecto da sua originalidade, exerceu a integração imediata da língua apropriada ao sagrado com a língua, alemão, apropriada ao profano, reconhecendo nesta última a absoluta disponibilidade objetiva para tornar-se veículo da palavra de Deus; e o fez colocando as bases de uma teoria da tradução que seria revelada tão determinante no âmbito da cultura alemã ao ponto de adquirir – configurada na prospectiva dos históricos e dos linguistas modernos – as características de única e antiga contraparte suficientemente autorizada da correlação teórico-prática de Voss, de Goethe, de Schlegel, de Tieck, de Hölderlin, ou, em tempos já mais próximos a nós, de George, de Rudolf Pannwitz, de Karl Kraus e de Walter Benjamin.
Dissemos: integração imediata de uma língua apropriada ao sagrado com uma língua apropriada ao profano. Se invertemos os termos, isto é, pensarmos uma integração imediata de uma língua apropriada ao profano com uma língua apropriada ao sagrado, encontramo-nos diante de uma situação em que, segundo um exemplo citado frequentemente pelo meu mestre Karoly Kerényi, estava, quase por acaso, Sir George Grey, um funcionário da administração colonial britânica nomeado em 1845 governador da Nova Zelândia. Sir George publicou em 1855 um volume dedicado, como diz o titulo, à “mitologia polinésia e à antiga história tradicional da população da nova Zelândia”. Não era habitual, podia até parecer uma extravagância, que um governador colonial se dedicasse a pesquisas do gênero. No prefácio do seu livro, de fato, Sir George readquire o aprumo do funcionário britânico, explicando ter empreendido tal obra não tanto por razões eruditas quanto por que lhe tinha sido necessário para cumprir escrupulosamente o seu mandato, isto é, para entender-se bem com aqueles que define “os súditos indígenas de Sua Magestade”. Aconteceu isto: na sua chegada à Nova Zelândia, Sir George simplesmente recorrera aos intérpretes, mas tinha se dado conta de que desse modo teria sido dificilíssimo conversar com os indígenas. Então, tinha afrontado a dificuldade de estudar pessoalmente a língua dos indígenas. Nova desilusão: mesmo assim não conseguia compreender com clareza os discursos dos chefes indígenas com os quais tinha necessariamente que lidar.
Constatei – ele escreve – que esses chefes, para explicar oralmente ou por escrito as suas opiniões ou intenções, citavam ou aludiam a antigos poemas ou provérbios fundados sobre um antigo sistema mitológico; e enquanto as partes mais importantes das suas comunicações estavam revestidas de tal forma metafórica, os interpretes tornavam-se impotentes e conseguiam somente de passagem (quando o conseguiam) traduzir os poemas ou explicar as alusões.
Sir George, que durante cerca de dez anos pôs-se então a recolher e a compreender os matérias das traduções mitológicas neozelandesas, delas constituiu uma espécie de corpus e somente neste ponto teve a percepção de conseguir verdadeiramente entender-se com os seus interlocutores. Naturalmente as suas conversas com os chefes indígenas eram sobretudo de caráter diplomático e versavam sobre questões de governo da colônia: portanto, sobre argumentos absolutamente profanos. Quis debruçar-me por um momento sobre a autojustificação que Sir George expõe no prefácio exatamente por que não há dúvidas sobre os objetivos da sua pesquisa no âmbito da mitologia neozelandesa. Ele, se não ocasionalmente, não fez objeto das suas conversas com os indígenas as suas experiências religiosas, mas sim apenas os problemas profanos colocados por serem eles “os súditos indígenas de Sua Majestade Britânica”. E não há dúvida de que, estudando a mitologia neozelandesa, ele permanecesse absolutamente estranho à experiência da sacralidade que acompanhava, para os indígenas, as imagens mitológicas evocadas. Ele quis operar a integração imediata de uma língua apropriada ao profano, isto é, o inglês das suas ordenações, dos seus regulamentos, da sua própria forma mentis de funcionário de governo, com uma língua apropriada ao sagrado, isto é, a língua neozelandesa usada pelos seus interlocutores: língua apropriada ao sagrado, plena de evocações mitológicas, e, nisso, profundamente diversa da artificiosa língua neozelandesa que se podia aprender ignorando-se as tradições e poemas; e também língua viva, falada, operante na sua inteireza de estratos semânticos.
Se, como dissemos, Lutero realizou a tradução de uma língua portadora do sagrado e não mais falada (ou somente artificiosamente falada), como aquela da Bíblia, em uma língua profana e falada, Sir George Grey realizou a tradução de uma língua profana em uma língua portadora do sagrado. Essa simetria poderia não parecer tal a quem objetasse que, no caso de Lutero, houve uma instituição de uma relação entre uma língua não falada (a da Bíblia) e uma língua falada, enquanto no caso de Sir George Grey a relação foi instituída entre duas línguas faladas (o inglês do século XIX e o neozelandês). Mas é preciso observar que de fato a simetria existe, porque a distância histórico-cultural entre o inglês do século XIX e o neozelandês é homóloga à distancia entre o silêncio da língua da Bíblia no século XVI e o ressoar da língua alemã “na casa”, “na rua” e “no mercado” naquele mesmo século.
A simetria entre o caso de Lutero e o de Sir George Grey, colocando em evidência as atuações de duas relações em sentido inverso entre língua mitológica portadora do sagrado e língua profana, pede algumas reflexões sobre as relações entre tradução e mitologia. No primeiro caso, o de Lutero, pode-se dizer que a língua profana permitiu a atualização de imagens mitológicas e sagradas, enquanto no segundo caso, o de Sir George Grey, a língua mitológica e sagrada permitiu a atualização de imagens profanas. Lutero propunha-se a fazer ressoar a própria palavra de Deus, mesmo quando se exprimia de modo a dar aos alemães a impressão de que lhes estava falando em alemão; Sir George Grey propunha-se a cumprir escrupulosamente o seu mandato profano, quando também se exprimia, ou deixava que os outros se exprimissem, de modo que os neozelandeses tivessem a impressão de ouvir e de fazer ressoar a sua língua mitológica e sagrada. A mitologia exprimiu-se em língua profana; a profanidade se exprimiu em língua mitológica. Em ambos os casos realizou-se uma tradução. Em ambos os casos a relação em que consistiu a tradução pode-se configurar, acima de tudo, como uma relação dialética entre mitologia-sacralidade e profanidade; e resta ver se no âmbito de tal relação aparentemente dialética houve verdadeiramente um momento de síntese: se, isto é, Lutero e Sir George Grey cumpriram verdadeiramente aquela que, nas suas intenções, era, como dissemos, uma integração.
O problema que agora queremos circunscrever não é, entretanto, imediatamente aquele, específico, dos êxitos das operações de Lutero e de Sir George Grey como tradutores, mas sim aquele, muito mais amplo, da eventualidade de que toda tradução estabeleça uma relação entre dois âmbitos linguísticos cuja estranheza inicial seja homóloga à estranheza entre uma língua mitológico-sagrada e uma língua profana. Nosso objetivo imediato é, no entanto, afrontar esse problema, ou, ainda, essa hipótese de trabalho, à luz e no âmbito da documentação que pertence à cultura alemã. Essa escolha de campo não é ocasional ou excessivamente arbitrária, se se pensa que exatamente na cultura alemã se colocam algumas dentre as contribuições mais significativas à teoria da tradução na Europa moderna. Partimos de Lutero, e é notória a importância que tiveram, também fora da Alemanha, a experiência e a reflexão teórica de Lutero tradutor. Depois de Lutero nomeamos Hölderlin, Tieck, Schlegel e, portanto, acenamos a um arco de experiências e reflexões teóricas de tradutores que passa pelo Romantismo alemão; e também aqui é notório o peso que tiveram as doutrinas e as provas alemãs no quadro heterogêneo dos Romantismos europeus. O arco se concluía com Walter Benjamin, de quem também é notória a importância, europeia, como pensador e teórico da filosofia da linguagem.
No mais, o fato de que nos voltemos especificamente para a cultura alemã para afrontar a teoria da tradução dentro de uma problemática tal que envolva tradução e mitologia, é também motivado por algumas precisas razões inerentes à história da língua alemã. Expondo brevemente essas razões, solidárias com alguns dos elementos mais substanciais e enigmáticos da filologia germânica, começaremos a entrar, ao mesmo tempo, no coração dessa problemática.
Nota do Organizador: O texto inédito que aqui apresentamos, graças à cortesia de Marta Rossi Jesi, conservou-se entre as cartas de Jesi numa pequena pasta com 9 paginas datilografadas (formato 28cm X 22cm), numeradas, com poucas correções e acréscimos colocados a mão, sem titulo. Como outros já publicados no número monográfico, organizado por G. Agamben e A. Cavalletti, da revista Cultura Tedesca (12, 1999), e assinaladamente na quinta seção dos inéditos, o ensaio faz parte dos materiais selecionados para a reconstrução do volume, projetado por Jesi por volta da metade dos anos setenta e nunca terminado, Traduzione e duplicità dei linguaggi. Para uma datação aproximativa podemos nos referir ao “Prefácio” de Esoterismo e linguaggio mitológico, escrito em junho de 1976, no qual Jesi anuncia a publicação do trabalho em curso. (Andrea Cavalletti)

Furio Jesi. Lutero e la traduzione del sacro. In.: Nuova corrente, 56, (Genova: 2009). pp. 175-182. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Ilustração de Lucas Cranach "o Velho", na tradução da Bíblia de feita por Lutero. 1522. British Library, London.

Dialética na imobilidade



O que distingue as imagens das essências da fenomenologia é seu índice histórico. (Heidegger procura em vão salvar a história para a fenomenologia, de maneira abstrata, através da “historicidade”). Estas imagens devem ser absolutamente distintas das categorias das ‘ciências do espírito’, do assim chamado habitus, do estilo, etc. O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma determinada época, mas sobretudo que elas só se tornam legíveis numa determinada época. E atingir esta ‘legibilidade’ constitui uma determinado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo o presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. (Esta explosão, e nada mais, é a morte da intentio, que coincide com o nascimento do tempo histórico autêntico, o tempo da verdade). Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não-arcaicas. A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura.



BENJAMIN, Walter. Passagens. (Organização Willi Bolle; Tradução Irene Aron, et. al.). Belo Horizonte/São Paulo : Editora UFMG/Imprensa Oficial, 2006. Livro N. p. 504-505. Imagem: "Le saut dans le vide"; fotomontagem de Harry Shunk de uma performance de Yves Klein na Rua Gentil-Bernard, Fontenay-aux-Roses, Outubro 1960.