Marcos Saiande Casado*
Eis que é chegado a crise e mais uma vez ela, a Filosofia, é atacada de maneira direta pelo governante eleito pelo povo brasileiro. Entre todos os saberes desenvolvidos pelas mulheres e homens mundo afora, a “amiga da sabedoria” é tradicionalmente a escolhida como símbolo alvo para se iniciar o movimento de contração do processo de autoconhecimento de uma sociedade.
As razões para que tal medida seja recorrente na sociedade brasileira são múltiplas. Desculpas como contenção de gastos, ausência de profissionais para a oferta de cursos de filosofia para o ensino básico, o não retorno financeiro imediato que a essa área do conhecimento humano possa ofertar a chamada economia de mercado, e, até mesmo, a acusação de ser um território no qual forças malignas operam e são capazes de doutrinar e de incentivar a mentalidade revolucionária nos jovens. Como diz o atual presidente da República: “[...] queremos uma garotada que comece a não se interessar por política”.
Nada de novo. A filosofia, essa perpétua idolatria da dúvida, sempre foi o alvo daqueles que ocupam o poder de maneira vil. Foi assim já com Sócrates, condenado pelas acusações de impiedade perante os deuses e de corrupção da juventude simplesmente porque praticava isso que chamamos de Filosofia. Foi assim na queima do “Emílio” de Rousseau na França pré-revolucionária. É assim no Brasil que persegue as obras de Paulo Freire e que considera os textos de Marx um veneno que corrói a ordem social.
Em verdade, o que se combate não é toda a Filosofia, mas aquela que é capaz de gerar mal-estar, de promover estranhamento, de provocar rebeliões. Como disse Sartre, um dos mais importantes filósofos contemporâneos, “de fato, o que há são filosofias”. Entre elas, é justamente aquela que está em “plena virulência”, que não “se apresenta nunca como uma coisa inerte, como a unidade passiva e já terminada do Saber” que se torna fonte de preocupação daqueles que dirigem o destino da nação.
Encontramos nas palavras escritas por M. Heidegger, em “Introdução à Metafísica”, aquilo que certamente é a provocação mais aguda que um pensador poderia fazer em favor da Filosofia. Nos diz o filósofo alemão: “Quando o mais afastado rincão do globo tiver sido conquistado tecnicamente e explorado economicamente; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com qualquer rapidez; quando um atentado a um Rei na França e um concerto sinfônico em Tóquio puder ser 'vivido' simultaneamente; quando tempo significar apenas rapidez, instantaneidade e simultaneidade e o tempo, como História, houver desaparecido da existência de todos os povos; quando o pugilista valer, como o grande homem de um povo; quando as cifras em milhões dos comícios de massa forem um triunfo, - então, justamente então continua ainda a atravessar toda essa assombração, como um fantasma, a pergunta: para que? Para onde? E o que agora? ...”.
Grosso modo, esse trecho nos diz que se há alguma finalidade para a Filosofia ela consiste, em concreto, em suspender nossas crenças, em semear o germe da desconfiança, de nos colocar suspensão.
A insubordinação e a capacidade de abrir buracos em sistemas de certeza é o que torna a Filosofia um campo que desde a sua origem desequilibra e instala o mal-estar, sobretudo, nos círculos que pretendem exercer o poder e o controle social. Diz o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica "[...] a semente socialista já tem 200 anos. Vai de derrota em derrota, mas não morre". A Filosofia, um pouco mais velha que o movimento socialista, com seus mais de 2.500 anos, também vai de derrota em derrota, mas não morre. Sempre encontra brechas para sobreviver, para fazer os homens e mulheres refletirem e cumprirem sua função primeira, isto é, ser o templo de louvor a dúvida.
* Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Imagem: Jan Davidsz de Heem. Estudante em seu escritório. 1628. Ashmolean Museum, Oxford.