domingo, 31 de março de 2013

Consolação, Desolação




Jean-Luc Nancy
No Prefácio que escreve para o volume intitulado Chaque fois unique, la fin du monde[1], coleção de despedidas que pronunciou para seus amigos mortos, Jacques Derrida sublinha como o “adeus” não deve saudar mais do que “a necessidade do não-retorno possível, o fim do mundo como fim de toda ressurreição”. O “adeus”, em outros termos, não deve por nada significar uma citação diante de Deus, mas, ao contrário, uma despedida definitiva, um abandono irremissível tanto do outro, morto, no seu esfacelamento, quanto do sobrevivente à privação rigorosa de toda esperança em qualquer sobrevida, seja ela do outro ou mesmo, finalmente, do próprio sobrevivente, eu que saúdo o outro e que um outro saudará em outro momento.
Essa necessidade se liga àquela segundo a qual é preciso, em cada morto, reconhecer o fim do mundo e não simplesmente o fim de um mundo: não uma interrupção momentânea no encadeamento dos mundos possíveis, mas o aniquilamento sem reservas nem compensação “do único e irrepetível mundo” “que faz de cada vivente um vivente único e irrepetível”. É preciso dizer “adeus” sem retorno, na certeza implacável de que o outro não retornará e jamais voltará.
Uma saudação[2] “digna desse nome” recusa, portanto, toda salvação. Saúda a ausência absoluta de salvação ou, ainda, “renuncia de antemão à saudação”, como Derrida já tinha escrito em Le Toucher, Jean-Luc Nancy[3]. Do mesmo modo que ele me dirigia essa saudação despedindo a saudação, ele mais uma vez dirige para mim a advertência desse “livro de adeus”. Ele especifica, com efeito, que a “ressurreição” deve ser recusada, não somente “no sentido comum, que eleva e faz caminhar corpos que voltam à vida, mas também a anastasis sobre a qual fala Jean-Luc Nancy[4]”. Esta última, de fato, “continua, ainda que com o rigor de certa crueldade, a consolar. Ela postula que a existência de algum Deus e que o fim de um mundo não seria o fim do mundo”.

1

Quero da minha parte saudar aqui essa saudação, e não recusar a recusa que ela carrega, mas tentar esclarecê-la de outro modo, desde que seja possível levar a tal matéria alguma luz e que não seja necessário, ao contrário, manter os olhos fechados, definitiva e obstinadamente fechados para tudo o que não revela uma noite e um sono sem amanhã nem despertar. Abertos, por consequência, para a noite, na noite e enquanto eles mesmos noturnos: olhos que veem o fim do mundo, não representado diante deles, mas neles desencadeando o aprofundamento da visão e o tato da noite mesma. A noite contra os olhos como outros olhos que impediriam e obscureceriam neles toda possibilidade de visão, de intencionalidade, de direção, de orientação e de apelação fora do adeus sem retorno.
Para que minha saudação seja digna de seu nome, é preciso saudar sem salvação, mas é preciso saudar. O nome “saudação” designa a direção, o convite ou injunção em vistas do ser-salvo. O salvo (salvus) é o que permanece inteiro, ileso, intacto. O salvo não é portanto o salvado, subtraído à ferida ou à nodoa que nele teria sido feita, mas é aquilo (ou aquele, ou aquela) que permanece intacto, fora de alcance. Aquele que nunca foi ferido. Assim o morto leva consigo, como se diz, o mundo irrepetível e único que ele foi. Ele leva assim o mundo inteiro, pois sempre um mundo é tão somente irrepetível, único e completamente intacto. Solus, salvus: só há saudação do único, ou o único é o desolado por excelência: devastado, desertificado, deixado ao isolamento total (desolari).
Da mesma maneira que a palavra “consolação” apenas tem a ver com a palavra “desolação” por uma assonância (solor, “confortar”, é estranha a solus), assim também não pode haver consolação da desolação, se consolar significa aplacar a dor, restaurar um possível, reencontrar a presença e a vida daqueles que estão mortos. Ao contrário, tudo deve “consolar” no sentido de fortificar a desolação, de tornar a sua duração intratável e intangível. Tocar o intacto, eis o que a morte nos oferece, e isso significa que o morto desaparece no isolamento absoluto de sua morte intocável, mesmo que o vivo que o saúda permaneça nesta borda em que nenhuma outra borda faz frente, nenhuma margem se aborda e nenhum contato é possível (nem sensível, nem inteligível, nem imaginário) com o intacto. É exatamente isso que a saudação saúda: a saudação toca o intocável, sob a forma de uma direção que lhe confirma sua desaparição, que de alguma maneira lhe dá novamente sua ausência fechada, e o mundo nela terminado. Dizer adeus, Derrida o diz no seu “Adeus” a Levinas (p. 252), é “chamá-lo pelo seu nome, chamar seu nome”. A saudação saúda o outro no intacto intocável de sua insignificante propriedade, seu nome já submerso na não-significância que é aquela do nome próprio e, por ele ou nele, a cada vez, do mundo em totalidade. Saudando o nome e o não[5] colocado neste nome, a saudação o desola e se desola: eu estou só, cada vez absolutamente só diante desse isolamento, essa isolação do outro “diante” da qual, estritamente falando, não posso mais me sustentar, que não posso tocar sem desfalecer, privado desse sentido mesmo e, nele, de todo sentido.
A partir disso, resta que a saudação saúda e que, assim o fazendo – não fazendo nada, entretanto, não produzindo nada, apenas desolando –, dirige-se e invoca, chama, anuncia inclusive, ou, pela primeira vez, convoca, declara e proclama algo, mais exatamente, alguém. Desse modo, não importa o que queira e o que pretenda fazer, ele não pode nem consolar nem consolar-se. Ele [Derrida] fortifica a desolação, e tal confortar, que o arrasa e deixa sem voz, para ele não é o de menos, mas sim o é muito mais a incapacidade que nele gera a passagem de uma voz, a de sua saudação àquilo que não se deixa saudar. Dezesseis vezes modulada por dezesseis mortos, a saudação de Derrida (aliás, outras saudações, a cada vez que alguém está aí para dizer “adeus” – e sabemos que terrível tristeza reina quando não há ninguém, e sabemos por um saber enojado qual horror se estende aí onde se encontra recusada, com toda saudação, a própria tumba, que é a estela da saudação) – tal saudação ainda salva, seja o que for. Não salva nada do abismo, mas saúda o abismo salvo. Então, o abismo assim preservado, desolado e declarado na desolação, o abismo impossível de ser fechado assim como de ser sondado, dá à saudação a dignidade – estranha, insuportável, em lágrimas – do mundo que se afunda. Ao mesmo tempo, a saudação dá ao mundo abismado sua dignidade de mundo. Ao nome próprio privado de sentido, dá a totalidade de sentido, a inverificável e manifesta verdade que “o mundo”, a cada vez, quer dizer.

2

O que a anastasis quer designar, no ensaio que fiz[6] para desconstruir ou para desviar o valor entendido como “ressureição”, não é nada mais do que esse restabelecimento (anastasis), esse levantamento (não “liberação”) do sentido abismado em verdade lançada, chamada, anunciada e saudada. A verdade só pode ser saudada, a cada vez, e jamais salvada, pois não há nada a salvar, nada a fazer sair das profundezas da morte: mas isso mesmo se saúda, a cada vez, na oração fúnebre, que não é um ornamento, mas um elemento necessário da estrutura ou do acontecimento chamado “morrer”. Por tal oração, por tal saudação, “a morte” – esta suposta entidade, coisa ou sujeito, à qual Hegel só concede o nome com a condição: “se nós quisermos nomear assim essa nulificação [néantité]” – encontra-se saudada enquanto morrer próprio deste, desta, daquele ou daquela que foi aqui ou lá (que foi o mundo aqui ou lá) e não é nada mais nem será em nenhum lugar nem em nenhum tempo. No seu morrer, cada um é saudado por si mesmo na própria medida em que este “si mesmo” se desola, intacto, e que não volta a si, que não nos volta e nem nos voltará. Não voltando, jazendo em efígie [gisant], restitui-se em verdade saudada.
Essa saudação não opera nenhum retorno sub-reptício. Se a desolação consola dessa maneira tão pouco confortante como perfeitamente irrecusável, isso não é por uma maquinação dialética que converteria a perda em ganho. Não é pela operação fantástica que a religião parece maquinar-se[7] a fim de se apoderar de uma credulidade pronta a absorver a salvação. Na própria religião não é certo que a representação da saudação jogue, em última instância, o papel consolador que se crê, talvez de modo um tanto quanto rápido, poder lhe dar um efeito de ilusão. Por certo não será aberrante pensar que nunca um crente verdadeiro morreu ou viu morrer um outro com a imaginação pueril de uma passagem contínua para um outro mundo, completamente similar a este, mas somente isento de sofrimentos. É seguro que as religiões, como as metafísicas, não cessam de fazer valer uma captação salvadora e uma consolação confortante. Entretanto, “Deus”, ou o “outro mundo”, jamais nomeia de maneira muito clara uma continuidade, quanto mais uma continuação desse mundo através de uma passagem furtiva. A tumba não é uma passagem, é um não-lugar que abriga uma ausência. A fé jamais consiste – e isso, sem dúvidas, em toda forma religiosa – em fazer-se crer em algo sob o modo em que se faz crer que amanhã se terá felicidade. A fé, por definição, só pode consistir em dirigir-se ao que passa e nulifica [anéantit] toda crença, todo cômputo, toda economia e toda salvação. A fé consiste, como o sabem os místicos sem nela colocar nenhuma exaltação, em dirigir-se ou em ser dirigida ao outro do mundo, que não é “outro mundo” senão no sentido de outro que o mundo, aquele que a cada vez acaba sem remissão.
“Deus” designa apenas essa alteridade na qual a alteração do mundo, de todo o mundo, faz-se absoluta, sem apelo e sem evocação. E é o sem-apelo que apela e evoca, a cada vez, o dirigir-se aos mortos. Tal dirigir-se é saudação. É muito depreciativo representar a humanidade como se a imensa maioria de nossos semelhantes (e, sem dúvidas, será preciso extrapolar, variando os termos, até aos animais) passasse a vida – ou ainda, sua morte, como se queira dizer – desconhecendo mais ou menos conscientemente, mais ou menos inconscientemente, o real intratável do morrer. De maneira mais sutil e infinitamente mais digna, cada um sabe algo do não-saber que lhe compete e que lhe interdiz, com um rigor extremo, pretender se apropriar de algum modo de um objeto nomeado “morte”, uma vez que tal objeto permanece sem consistência (na verdade, ele é que é fantástico) enquanto o sujeito que morre e aquele que, saudando-o, a ele se dirige aí onde nenhum dirigir-se chega, saúdam-se sem se salvar. Eles partilham a anastasis cuja elevação ou retidão corta perpendicularmente o esfacelamento irrecuperável do corpo em pó. Não há nenhuma sobrevida, nenhum ressurgir, nenhuma revivescência. Mas “ressurreição”, no sentido de elevação da saudação, do adeus: a partida é seu próprio anúncio, não revela nada, não leva a nenhum segredo, não opera nenhuma taumaturgia ou transfiguração. Em um sentido, não há nada a dizer desse último dizer, dessa oração na qual apenas a saudação brilha, o tempo de algumas palavras em um soluço, com um brilho negro. A oratio é o discurso ou a prece, é o discurso enquanto prece. A prece não é nem demanda nem tráfico de influências, ela é tanto súplica quanto louvor. Ela é louvor suplicante: ao mesmo tempo e toda vez ela celebra e deplora, ela pede uma remissão e declara o irremissível. É isso que se torna o discurso, uma vez que o mundo liquidado não mais permite encadear nenhuma significação. Neste momento, e toda vez, a prece sem espera e sem efeito forma a anastasis do discurso, a saudação se erige e se dirige ao ponto exato em que não resta nada a dizer.
É insuportável: como não se inclinar diante do fato de que os viventes não cessam de a suportar e de a saudar, fazendo dela, inclusive e em última análise, sua razão de viver, a único factum rationis absolutamente irrecusável e o impensável sem o qual nada morreria, isto é, viveria?
Quem viveria, por fim, sem praticar, ainda que sem o saber, isso que designo aqui por uma citação retirada à força e colocada fora de contexto: “um hino, um louvor, uma prece” voltados ao outro da vida presente na vida mesma, “uma imploração de elevação [surrection], de ressureição[8]”, tal que é ela mesma, a imploração, a ressurreição?
Quem, de resto, evocava uma música (senão a música mesma) graças à qual “o eu mesmo, morto mas elevado por tal música, pela vinda irrepetível desta música, aqui e agora, num mesmo movimento, o eu mesmo morria dizendo sim à morte e de pronto ressuscitaria, dizendo, renasço, mas não sem morrer, renasço postumamente, o mesmo êxtase unindo nele a morte sem retorno e a ressurreição, morte e nascimento, saudação desesperada do adeus sem retorno e sem salvação, sem redenção, mas saudação à vida do outro vivente no signo secreto e silêncio exuberante de uma vida superabundante[9]” – quem, senão Derrida, o mesmo ou um outro? E o que é uma vida superabundante senão a vida simplesmente – sim, na sua própria brevidade –, enquanto excede tudo o que podemos reconhecer e saudar, enquanto se excede e morre, assim se confiando e nos confiando à superabundância e à exuberância?

A exuberância não é nada mais do que a exatidão da vida assim que a existência a ela se rende. A exatidão é uma palavra que a mim se quis creditar tê-la “ressuscitado[10]”. É demasiado associar a taumaturgia um simples tropismo lexical. Mas digamos simplesmente que sem supor Deus nem salvação, jamais nos falta, mortos ou vivos, uma língua para eterna e imortalmente saudarmos um ao outro, uns aos outros. Tal saudação, sem nos salvar, ao menos nos toca e, ao nos tocar, suscita essa turbação estranha de atravessar a vida para nada – mas não exatamente em pura perda.    

Jean-Luc Nancy. Consolation, désolation. In.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 147-153. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Piero della Francesca. Ressureição. (detalhe) 1463-65. Pinacoteca comunale, Sansepolcro.                  




[1] Paris, Galilée, 2003.

[2] Salut, em francês, designa tanto “saudação” quanto “salvação”. Desse modo, para que não se perca a força do jogo de significações elaborado por Nancy com a ambiguidade do termo, é preciso ler, na tradução, a presença constante do horizonte de “salvação” que se encontra em discussão. (N.T.)

[3] Paris, Galilée, 2000.

[4] La reference va à J.-L. Nancy, Noli me tangere, Paris, Bayard, 2003.

[5] Nancy joga com a homofonia de nom (nome) e non (não). (N.T.)

[6] Noli me tangere, op. cit.

[7] Como contraponto à “machination dialectique”, Nancy utiliza aqui o verbo “machiner”, que em português encontraria uma tradução mais literal em “aparelhar-se”. Entretanto, como é comum nos jogos de palavras de Nancy, preferi manter uma tradução que pode soar estranha, mas que, de algum modo, mantém o jogo do autor. 

[8] J. Derrida, Mémoires d’aveugle, Paris, Réunion des musees nationaux, 1990, p. 123.

[9] Id., “Cette nuit dans la nuit de la nuit…”, communication à propos de La Musique en respect de Marie-Louise Mallet (Paris, Galilée, 2002), publiée dans Rue Descartes, Paris, PUF, novembre 2003, p. 124-125.


[10] Le toucher, Jean-Luc Nancy, op. cit., p. 17.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Western





O western é a paródia moderna dos épicos gregos
o herói desenraizado e a hostilidade estrangeira
é preciso vencer as bestas, outros irreconhecíveis
dominar o mito, silêncio assombrante da noite natural
o antigo testamento foi ainda povoado por personagens épicos  
Sansão, Noach, Davi, o incomparável Jó
e imperdoáveis bad guys and girls, Caim, Golias, Dalila
além de imensos desertos de areia e água, mares ante e pós diluvianos
o épico é a metáfora da centralidade avassaladora do mundo e da natureza
os mortais são estes frágeis cujas virtudes se testam por intempéries destruidoras
e instantes kairológicos de decisão
o herói sabe-se, de antemão, irremediavelmente perdido
por mais que não se resigne a isso

é com o novo testamento que tudo se inverte
digladia o herói frágil e complacente (que dá a outra face para um novo e injusto murro)
tão-somente consigo
será herói apenas na medida em que se reconheça
nos insondáveis espelhos interiores da fé
como vil-vilão pecador
o cristianismo é a grande metáfora da ilusão narcísica
sujeitos que superam a própria morte, o mundo é uma mera provação
de exilados filhos de Eva
exílio que não se encerra com o beijo da amada ou com o aconchego de uma casa
não termina com as delícias mundanas e fugazes do mel, do vinho e do sexo
mas em algo desconhecido, o imponderável vazio da escatologia
o antigo herói épico retorna envergonhado na imagem do filho pródigo

o herói foi jogado às margens da tradição, ressurgindo apenas
como paródia obscena e diversão fútil de sedentários
far west
prefiro os anti-heróis
não apenas Quixote e Bloom
mas o malandro que precisa sobreviver numa metrópole hostil
o pequeno heroísmo de los olvidados de Buñuel
e o desespero heroico e vão dos personagens de Bolaño
os cenários mexicanos algumas léguas para além do western
da falsa fronteira do western
pois o pseudo herói do western é o sedentário em busca de territórios fixos
povoamentos, colônias de uma sordidez respeitável
ele ainda está no Ocidente ralo, médio, conformado
e não nas margens proliferadas em arrabaldes inóspitos
de onde pode surgir, a qualquer tempo, a face bandoleira de Pancho Villa
   
o heroi, hoje, talvez viva em um pequeno casebre ao sul da Etiópia
ou ganhe a vida com pequenos tráficos em um bairro perdido de Porto Príncipe


(Imagem - John Ford, Stagecoach, 1935.)

segunda-feira, 25 de março de 2013

Carta impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, confesso que escrevo depois de ter revisto meus postais. Almond Blossoms, do Van Gogh, sobretudo. Aquele fundo azul esverdeado, como que a mostrar o limite entre o céu e o mar, entre a minha consciência desperta e meus devaneios em sonho. Pensei nos livros que talvez tu me deste, nas fotos que talvez tiramos juntos, nas noites que talvez dormimos juntos. As flores da minha imaginação é que desabrochavam, e as minhas cartas imaginárias que escrevo sem cessar começaram a inundar com vozes os espaços onde as flores se mostravam. Querida, neste fim de semana li algumas notícias de um naufrágio e imaginei-me nas águas ao redor de uma ilha deserta. Não cheguei a encostar em tal ilha, não cheguei nem mesmo a perceber se se tratava de uma ilha deserta ou não. Aliás, nenhuma ilha é deserta a não ser que nela haja alguém que assim o diga. E se assim o é, que dizer da deserção? Há sempre uma voz que clama do deserto, querida; há sempre a solidão da voz que se separa de quem a pronuncia para, tornada outra e exterior ao falante, lembrar aquele que a pronunciou de que está só. Naufraguei, querida, na minha solidão à borda do deserto, no azul esverdeado das quase flores. De lá - ou seria daqui? - é que escrevo. E esta é minha condenação: traçar mapas e desenhar cartas para alguém que nunca as lê, para alguém que é sempre um alguém, para uma indeterminação da solidão. Querida, sinto por ter que contar sobre essas impressões. Não gostaria de partilhá-las com ninguém, mas desse ao menos que é alguém não há como me furtar. Não digo que não te conheço; não digo que não sei quem és. A tua impossibilidade me toca assim como uma voz insistentemente clama do deserto. Estamos sós depois do naufrágio, querida, e não nos resta mais que breves notas imaginárias. E em vão é que tento enviá-las a ti.

Do seu remetente impossível.

Imagem: Benedetto Bordone. Mapa mundi. 1528. British Library, London.   

quarta-feira, 13 de março de 2013

Coisa em si


a impossível coisa em si kantiana
não designa um fora da representação
monstruosidade, inominável, Deus
mas os limites potenciais do pensamento
nunca foges de ti
estás condenado ao antropomorfismo
até os sonhos são demasiadamente humanos
nem a pedra bruta está fora
até a miséria é pensável
mas também estes volumes de nimbos no céu
e as tardes de maio, quando começa a anoitecer

um turista na vida é obsedado por estes monstros
das coisas em si o gozo da coisa em si
os turistas e suas hóstias com códigos de barras
os metafísicos estão por todos os lados
o eternamente mesmo do nada devorando tudo
plástico, lixo, filas, conclaves, contas a pagar
o animal humano tornando-se coisa em si
a impossível espectralidade encarnada
parida por um deus vazio
ao som de máquinas de cartão de crédito
agências de viagens das coisas em si
o calvário é aqui
sem redenção
mas há muitas gargalhadas nos parques temáticos

ser à toa
ser pagão
não pagar dízimos
não se ensimesmar

terça-feira, 12 de março de 2013

O nome de Deus em Blanchot



Esse título não é uma provocação, nem recobre uma empreitada insidiosa de captação. Não se trata de tentar arrastar Blanchot para o lado dessa nova correção (portanto, indecência) política que toma a forma de um “retorno à religião”, tão enfermo e insípido como todos os “retornos”.
Trata-se somente de considerar isto: o pensamento de Blanchot é tão exigente, vigilante, inquieto e alerta ao ponto de não ter acreditado que deveria se firmar naquilo que se impunha, no seu tempo, como uma correção ateia ou como um bom tom de profissão antirreligiosa. Entretanto, não é que esse pensamento tenha ficado preso, ao que quer que seja, numa profissão ou numa confissão de sentido inverso. Blanchot, seguramente, afirma um ateísmo, mas o afirma somente para melhor conduzir à necessidade de afastar ao mesmo tempo e conjuntamente tanto o ateísmo quanto o teísmo.
(Isso acontece num texto maior de A Conversa Infinita, “O ateísmo e a escritura. O humanismo e o grito”, no qual o ateísmo é associado à escritura. Retornarei a isso sem, entretanto, citar nem analisar tal texto ou nenhum outro: no espaço e no contexto dessa nota não se trata de empreender uma análise. Contento-me com alusões a alguns topoi blanchotianos a fim de esboçar uma direção para um trabalho que virá mais tarde.)
Descartar juntos o ateísmo e o teísmo é considerar antes de tudo o ponto pelo qual o ateísmo do Ocidente (ou o duplo ateísmo do monoteísmo: aquele que ele suscita e que contém) até aqui jamais opôs ou substituiu Deus por outra coisa que não uma figura, instância ou Ideia da pontuação suprema de um sentido: de um fim, de um bem, de uma parousia – isto é, uma presença cumprida e, singularmente, a presença do homem. É por tal razão que a associação do ateísmo à escritura – associação provisória e prévia à deposição conjunta de pretensões teístas e ateias – tem como meio encadear o ateísmo ao lado de um ausentar do sentido que, é verdade, até aqui não foi capaz nenhuma figura notável do ateísmo (a não ser, por um lado, essa figura tão próxima a Blanchot que é a ateologia de Bataille – a respeito da qual não direi mais nada aqui).
O “sentido ausente”, expressão algumas vezes riscada por Blanchot, não designa um sentido cuja essência, ou a verdade, encontrar-se-ia na ausência. Esta última, de fato, seria transformada ipso facto num modo da presença não menos consistente do que a presença mais segura, mais existente [étante]. Mas um “sentido ausente” faz sentido na e por sua própria ausência, de modo que, por fim, não pode deixar de “fazer sentido”. É assim que a “escritura” designa, em Blanchot – e nessa comunidade de pensamento que o liga a Bataille e Adorno, a Barthes e Derrida –, o movimento de exposição a essa fuga do sentido que retira do “sentido” a significação para lhe dar o sentido mesmo dessa fuga – um impulso, uma abertura, uma exposição incansável que, em consequência, inclusive não “foge”, que foge a fuga tanto quanto a presença. Nem o niilismo nem a idolatria de um significado (e/ou de um significante). Eis aqui a aposta de um “ateísmo” que deve retirar de si mesmo a posição da negação que profere, e a certeza de toda espécie de presença substitutiva àquela de Deus – isto é, àquela do significante da absoluta significação ou significabilidade.
Ora, então temos que se o texto de Blanchot é isento de qualquer interesse pela religião (além do fato de que uma cultura cristã e, precisamente, católica aparece aqui ou ali de maneira notável, isso que deverá ser examinado mais tarde), por outro lado, o nome de Deus não está simplesmente ausente: de modo preciso, poderíamos afirmar que sustém nesse texto o lugar muito particular de um nome que foge e que entretanto volta, que se encontra a cada vez (com pouca frequência, mas o bastante para que o notemos) firmemente afastado, e logo evocado no seu próprio afastamento, como o lugar ou como o índice de uma forma de intriga da ausência do sentido.
(Mais uma vez, se está completamente fora de questão aqui entrar nos textos, eu simplesmente sugiro que releiamos rapidamente tanto Thomas l’Obscur – primeira e segunda versão – quanto L’Entretien infini e L’Écriture du désastre, ou ainda Le dernier à parler, para neles verificar de maneira mais ou menos formal a presença do nome de Deus – talvez, ainda que somente latente – e os aspectos manifestamente diversos, complexos, isto é, enigmáticos de seu papel ou de seu teor.)
Se o nome de Deus vem no lugar de uma ausência do sentido, ou como na linha de fuga e na perspectiva ao mesmo tempo infinita e sem profundidade de campo dessa mesma linha de fuga, é antes de tudo porque esse nome não diz respeito a uma existência, mas, precisamente, à nomeação – que não seria nem a designação nem a significação – dessa ausência. Não há aí, portanto, a justo título, nenhuma “questão de Deus” que deveria ser colocada como a questão ritual da existência ou da não-existência de um ente supremo. Semelhante questão se anula por si mesma (sabemos disso desde de Kant, aliás, bem antes dele), já que um ente supremo deveria ainda se encontrar em dívida com o seu ser ou com o próprio ser em alguma instância ou em alguma potência (termos evidentemente muito impróprios) impossível de organizar na ordem dos entes.
É por isso que o dom mais precioso da filosofia consiste, para Blanchot, não, inclusive, numa operação de negação da existência de Deus, mas num simples desvanecimento, numa dissipação dessa existência. O pensamento só pensa a partir daí.
Blanchot não coloca nem autoriza nenhuma “questão de Deus”, mas, para além disso, ele coloca e sabe que essa questão não se coloca. O que quer dizer que ela não é uma questão e que ela não responde ao esquema da demanda por uma atribuição no ser (“o que é?” ou “há?”). Deus não é julgado por meio de uma pergunta. Isso não quer dizer que ele depende de uma afirmação que responderia antecipadamente à questão. E tampouco de uma negação. Não é questão de há ou não há Deus. De modo muito diverso, a questão é que há, ou ainda, que se pronuncia o nome de Deus. Esse nome responde a uma deposição da questão, seja a questão do ser (o quê?), a questão da origem (por meio de quê?) ou a questão do sentido (por que?). Se toda questão visa um “quê”, um algo, o nome de deus responderia à ordem, ao registro ou à modalidade daquilo que não é, ou ainda, daquilo que não tem nenhuma coisa.
Nesse sentido, aliás, esse nome em Blanchot às vezes rodeia palavras como “ser” (tal como retomada de Heidegger) ou “neutro”. Tampouco para elas é possível colocar a pergunta, uma vez que já está nelas deposta. Mas são palavras (conceitos) enquanto “Deus” é um nome (sem conceito). O nome de Deus deve, portanto, representar aqui outra coisa que um conceito e, mais precisamente, ele deve carregar e tornar mais agudo um traço próprio ao nome como tal: à extremidade e à extenuação da significação.
Sem dúvidas, com esse nome acontece o mesmo que com o de Thomas, que poderíamos qualificar de herói epônimo da escritura blanchotiana. No relato intitulado Thomas l’Obscur, no correr do qual o nome de Deus aparece e opera em distintas retomadas, o nome de Thomas às vezes se encontra designado como “a palavra Thomas”. A palavra thauma, em grego, significa a maravilha, o prodígio, o milagre. Enquanto conceito, “Thomas” apresenta o milagre ou o mistério do nome enquanto nome.

O nome de Deus é dito por Blanchot, às vezes, “demasiado imponente”. Essa qualificação mesclada de temor e reverência abre duas interpretações. Ou esse nome impõe-se muito porque ele pretende impor e se impor como a pedra angular de um inteiro sistema do sentido, ou ele é majestoso e temido na medida em que revela a não-significância dos nomes. No segundo caso, esse nome nomeia uma potência soberana do nome por meio do qual ele faz signo – o que difere totalmente de significar – em direção a essa ausência do sentido tal que nenhuma ausência daí possa vir suprir uma presença supostamente perdida ou recusada. “Deus” não nomearia então nem o Deus sujeito do sentido, nem a negação deste último em favor de um outro sujeito do sentido ou ainda do não-sentido. “Deus” nomearia aquilo – aquele ou aquela – que, no nome, escapa à própria nomeação, mesmo que esta possa sempre confinar o sentido. Assim, esse nome des-nomearia o nome em geral enquanto persiste em nomear, isto é, em chamar. O que é chamado e em direção a que é chamado não é de modo algum uma outra ordem senão aquela que Blanchot designa por vezes como “o vazio do céu”. Mas o chamado a tal vazio, e nele, coloca nesse nome uma espécie de pontuação última – ainda que sem última palavra... – a esse abandono do sentido que forma por sua vez a verdade de um abandono ao sentido enquanto que este último se excede. O nome de Deus assinalaria ou proferiria esse chamado.

Na conjunção do ateísmo e da escritura, Blanchot reúne, no mesmo texto e no mesmo título, aquele do humanismo e do grito. O humanismo do grito seria o humanismo abandonando toda idolatria do homem e toda antropoteologia. Se não é exatamente no registro da escritura, também não é naquele do discurso – mas o grito. Precisamente, “ele grita no deserto”, escreve Blanchot. Não é por acaso que retome a distinta fórmula do profetismo bíblico. O profeta é aquele que fala por Deus e de Deus, aquele que anuncia aos outros o chamado e a lembrança de Deus. Nenhum retorno à religião se insinua dessa maneira: ao contrário, tenta extrair da herança do monoteísmo seu traço essencial e essencialmente não religioso, o traço de um ateísmo ou daquilo que poderíamos nomear um ausenteísmo além de toda posição de um objeto de crença ou de descrença. Quase apesar dele, e como no limite extremo de seu texto, Blanchot não cedeu ao nome de Deus – ao inaceitável nome de Deus – pois soube que era ainda preciso nomear o chamado inominável, o chamado interminável à inomeação [innomination].

Jean-Luc Nancy. Le nom de Dieu chez Blanchot. in.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 129-133. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Sandro Botticelli. João Batista. por volta de 1480. Galleria degli Uffizi, Firenze.
   

segunda-feira, 11 de março de 2013

Chantagem das palavras


Quem é chantageado pelas palavras não tem outra opção senão imaginá-las em outras relações. Fortis imaginatio generat casum. Criar o acontecimento mais do que esperar por seu acontecer: talvez a forma de quem escreve ou, no limite, de quem fala. A memória que nos afaga a cabeça cansada - ah, perversa Mnemosyne! - pode também ser memória de nada e, portanto, imaginação. E talvez aqui esteja a beleza da criação dos fatos: não há deus que se ponha em alerta contra a irrupção do presente; não há forma capaz de refrear a força da vida imaginativa; não há redenção possível ao condenado à existência. Porém, a maldição (o mal dizer) cria outras formas e a todo instante procura nos reter nas formas preestabelecidas das causas e efeitos. É a prisão da palavra oficial, desses atos perlocutórios do poder espectral da era espetacular: a todos, inter-diz-se a imaginação. Como espectros de um sem-sentido, os homens caminham novamente rodeados por um único Sentido, servos de um deus sem rosto e enclausurados nas mais tacanhas grades de sua auto-entrega às máquinas de lembranças. O culto a Mnemosyne jamais foi tão forte e, ao mesmo tempo, tão vazio. Não há nenhuma dimensão de morte heroica - aquilo pelo que os antigos gregos jogavam suas imaginações em risco - nem uma perspectiva niilista que dê acesso a um presente criado: há tão somente o fracasso de quem sucumbe ao peso das palavras, como se fossem a derradeira e última verdade divina...

Imagem: Aby Warburg. Paineis do atlas Mnemosyne - 1924-1929.

sábado, 9 de março de 2013

Pequeno delírio em parágrafo VIII


As palavras não nos abandonam. Voltam-se para nós como canhões carregados e prontos para lançar sua onda de destruição. Elas, as palavras, aparecem como em sonhos, em acessos que nos tomam sem que possamos delas tomar posse. Vazias, como alforjes, nos aprisionam num regime impossível, num plano de espectros em que memórias e expectativas não são mais do que nosso reflexo arredio num espelho convexo qualquer. Deturpamo-nos e elas, nossos vazios mais plenos de sentido, acabam por nos deglutir sem nenhuma piedade. Embebidos de palavras soltamos nossos corpos nas impossíveis formas que criamos com os vazios. Nada, nada resta dos empreendimentos do homem. E a certeira mira nos alvos da imortalidade faz-se vaidade, vanidade. Às faces vazias, contornos suaves; aos contornos suaves, palavras vazias, e não há retorno. Abandonados à sorte das palavras, aos nomes que nomeiam sem piedade, vemos vir a próxima onda a apagar nossos reles traços, nossa tola história...

Imagem: Livro das horas, 1290. Stadtbibliothek, Nuremberg.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Amor em tempos de cólera - sobre Amour (II)



ao Khôra, pois é preciso politizar até a ontologia. 


P. O mundo tem remédio?
R. O mundo está vivo, e nada vivo tem remédio, e essa é nossa sorte.

(Da última entrevista de Roberto Bolaño) 


Mesmo a ontologia é atravessada pela história. Até a natureza: a inexorabilidade do tempo e dos eventos atravessa a physis, remodela-a, adultera-a, não há pureza nas fusões múltiplas do vivo. Não há remédio contra o tempo.

Nenhuma ética, como espaço dos nomoi, pode fundar-se em categorias ontológicas. Não há natureza humana, nem habitações definitivas. Nada escapa à história.

Assisti Amour, de Haneke, alguns meses antes da escrita deste texto. Escrevê-lo tardiamente demonstra minha hesitação. O filme é desconcertante.

A morte é, como diria Ariés, o grande tabu do tempo presente. O moribundo, ao contrário de ser a autoridade que carrega uma verdade, ouvida como parábola ao pé de um leito de morte, é hoje lançado em casas de repouso, em clínicas vigiadas, em UTI's. A visão de uma figura fugidia, que não estará mais, é perturbadora para olhos que sobrepujam suas próprias rugas. Nunca as cirurgias e tratamentos estéticos contra os efeitos do tempo sobre a pele foram tão disseminadas, a cultura contemporânea consegue mesclar, de forma catastrófica, o mito da jovialidade supostamente infinita e o conservadorismo político mais necrosado. 

Os enterros deixaram de ser cerimônias públicas para tornarem-se ritos assépticos e impessoais que nos incomodam, as cinzas (do cremado, outra prática recorrente) precisam ser jogadas para debaixo do tapete - ou da grama.

A morte saiu de uma proximidade que acompanhava nossas respirações, onde estava ao lado de nossos esquecimentos e sonos - terna - para tornar-se a sombra desconhecida dos filmes de terror mais sanguinários.

A claustrofobia domina o filme. Não apenas pelos limites da casa. Mas pelos rituais. A gentileza extrema com que Anne e Georges se tratam, mesmo na mais completa intimidade, é uma frágil fortaleza, um ritual sobrevivente sem o mundo que lhe deu suporte - o das práticas aristocráticas de uma autossuficiente classe média parisiense, cada vez mais acuada.

Este descompasso fica explícito em detalhes: a porta arrombada, a dificuldade para agendar um mínimo serviço doméstico, o aluno "globetrotter" da ex-professora de piano, uma filha e um genro acanalhados em meio à crise econômica, a enfermeira violenta, o enterro de um amigo (assistido por Georges - nunca saímos, como espectadores, dos limites desta casa) ministrado por um padre idiota e ao som de Yesterday.    

Não vejo ética alguma ali, talvez apenas no gesto limítrofe da eutanásia feita por Georges, mas a espectralidade de um mundo absolutamente privado (no sentido grego, privus), não político, a mera vida em sua mitologia asfixiante e brutal. O mundo externo é este espaço indômito e confuso onde Georges, ao fim do filme, lança-se para também encontrar a morte, ou a pomba incomodativa que, ao entrar, desmorona uma alucinação fechada.

Como é viver entre os escombros? É possível habitar ruínas? Os interiores podem defender alguém da barbárie e da catástrofe? A resposta do filme é negativa.

A experiência da morte não mais é ritualizada, porém, justamente por sua denegação, prolifera em todos os espaços da cultura contemporânea, como violência, como trauma, como medo assustador que faz com que sucumbamos a uma indústria tanatológica de fármacos e dispositivos médicos que apenas mantém a sobrevida.

A cena do pesadelo de Georges é a metáfora desta interioridade asfixiante, ilhada.

Supus que magrebinos famintos, tão presentes na cidade de Paris, estivessem ocupando o antigo condomínio. Ou, em uma interpretação delirante, que a cidade estava tomada por  barricadas. Mas Haneke é fiel ao insustentável, é rigoroso na exposição de uma tragédia doméstica. Não nos dá chance de fuga. Também nos percebemos, ao fim, emparedados. 

(Apenas uma exterioridade política pode arejar o mofo de oikia claustrofóbicas).         


Imagem: Cabeça de Medusa - Michelangelo Merisi Caravaggio (1598)


A necessidade de combater a desumanização operada pelo neocapitalismo


Quais perspectivas o senhor pensa que são oferecidas no futuro próximo à Itália, perspectivas em sentido político, naturalmente?
Tenho dito que sou um político miserável, no sentido estrito da palavra, e que, portanto, o meu juízo é pessoal; poderia dizer que a minha psicologia e o meu modo de ser e sentir me fazem ver, no geral, um futuro obscuro não somente no que diz respeito à Itália, mas à Europa em geral. É um futuro trágico que se pinta diante dos meus olhos, um futuro feito de homens reduzidos a autômatas desumanizados pela sociedade neocapitalista. Acabo por me dar conta de que a minha visão é extremamente pessimista, mas com frequência me desespero com a possibilidade de defender-nos desse perigo.
O senhor pensa que o marxismo esteja à altura de oferecer a única solução a tal problema?
Começo a temer que a solução marxista esteja hoje colocada sine die. Não tanto por que o comunismo não esteja à altura de afrontar e resolver os problemas da sociedade humana, quanto pelo fato de não ter tempestivamente percebido o fato novo e violento da evolução do capitalismo desde a fase imperialista até a moderna e tecnocrata. Hoje, todos nós vemos, certas previsões de Lenin sobre a matéria foram em parte frustradas pela nova situação que está sendo criada (veja a China). Mas há o risco de que o não ter se dado conta no momento oportuno, e o não ter reagido quando ainda era possível, tenha permitido ao antigo capitalismo realizar de modo ileso a própria transformação no assim chamado neocapitalismo e de ser, hoje, quase inatacável. Parece-me, além disso, que o impulso revolucionário que o comunismo tinha, por exemplo, na época da Resistência, tenha sido perdido. Aquela carga e força foram, portanto, grandes ilusões que animaram a Resistência. Mas hoje, de fato, o próprio Khruschchev não dá a impressão de querer agir nos partidos comunistas em sentido revolucionário, e é por isso que só posso aprovar e pensar ser justa a linha política indicada pelo memorandum de Togliatti.
Mas o senhor crê poder reconhecer em outro lugar a existência daquele impulso revolucionário que o partido comunista italiano e também a Rússia teriam perdido?
Sim, poderia talvez dizer que tenho algumas tentações filochinesas, mas, de outro lado, o mundo chinês é para mim completamente desconhecido e de dificilíssima compreensão, infinitamente distante. Assim, também quando digo que aparentemente reconheço neles uma maior ânsia revolucionária, a minha valoração permanece abstrata e, em consequência, também tal tentação filochinesa não pode ser definida um fato concreto. Sem contar que os chineses continuam a se inspirar em Stalin, algo que em absoluto não posso aceitar. Mas, enfim, à parte tais considerações, o que mais me preocupa, na Itália e na Europa, é o não conseguir ver quando e como o neocapitalismo poderá deixar um espaço a uma ação revolucionária.
O senhor pensa na possibilidade de um encontro com outras forças, com os católicos, por exemplo?
É preciso distinguir entre os clérigos e os espíritos verdadeira e autenticamente religiosos. Com estes últimos, com os católicos evangélicos, parece-me que seja possível encontrar um inimigo comum, identificável no materialismo ateu e desumanizador que está na base do neocapitalismo e que é a síntese de tudo o que é condenado pelo Evangelho.
O senhor não crê que ao lado da possiblidade de um encontro desse gênero exista o risco de um outro e muito diverso acordo entre marxismo e catolicismo, isto é, um compromisso voltado à negação da liberdade e ao autoritarismo, duas tendências sempre potencialmente presentes nas duas ideologias?
É verdade que essas tendências existem: os católicos com seu dogmatismo e os comunistas, por uma inversão muito similar, podem ameaçar a liberdade, mas nenhuma negação da liberdade é tão implacável como a que é encarnada pelo capitalismo. Tal capitalismo tão caro, que me perdoem, aos liberais. Daqui nasce provavelmente a minha clara oposição ao liberalismo, a esta ideologia tão típica da burguesia. Porque todos os males do mundo se identificam, para mim, na burguesia, compreendendo naturalmente não o indivíduo singular, mas a classe no seu conjunto e naquilo que ela representa. Uma oposição e uma aversão que nascem em mim, primeiro, de acordo com os esquemas clássicos da doutrina marxista, isto é, como uma oposição à classe que detém todos os privilégios e que luta apenas para defendê-los e para desfrutar e manter subjugada a classe trabalhadora. E, por fim, por uma reação instintiva de burguês desiludido. De fato, deveria dizer que tal reação foi cronologicamente a primeira e que foi sobre ela que depois em mim se consolidou a lição marxista. O ideia, por exemplo, da propriedade privada, que a burguesia e o liberalismo não conseguem e não poderiam jamais renunciar, é, para mim, a matriz de todo o mal da humanidade, daquele egoísmo que está desde sempre na raiz das divisões entre os homens. 
O senhor pensa ser possível modificar a natureza do homem que já está há milênios plasmada por hábitos dessa concepção da sociedade?
Sem dúvidas. Mesmo se naturalmente deverão passar lustros, decênios ou mesmo centenas de anos. Mas creio na possibilidade concreta de tal regeneração. Por exemplo, a sociedade russa pode ter vícios superficiais similares àqueles das sociedades capitalistas, mas não tem aqueles de fundo e constitucionais. É certo que para chegar a isso acontecem grandes sacrifícios e o povo russo, por exemplo, realizou tantos e duríssimos. Mas foram sacrifícios implícitos na escolha revolucionária realizada no início. Foram, portanto, sacrifícios aceitos de modo livre, como quem aceita sacrificar alguns anos da própria vida em vista de um bem a ser atingido.

Pier Paolo Pasolini. La necessità di combattere la disumanizzazione operata dal neocapitalismo. In.: Pier Paolo Pasolini. Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Arnoldo Mondadori, 1999 (6ª Ed. 2012). a cura di Walter Siti e Silvia De Laude. pp. 1576-1579. 

A entrevista foi publicada no número VIII do periódico "Energie Nuove", em setembro de 1964 (mês em que foi exibido pela primeira vez o "Evangelho segundo Mateus", na Mostra de Veneza)

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.