Jean-Luc Nancy
No Prefácio que escreve para o volume
intitulado Chaque fois unique, la fin du
monde[1], coleção de despedidas que pronunciou
para seus amigos mortos, Jacques Derrida sublinha como o “adeus” não deve
saudar mais do que “a necessidade do não-retorno possível, o fim do mundo como
fim de toda ressurreição”. O “adeus”, em outros termos, não deve por nada significar
uma citação diante de Deus, mas, ao contrário, uma despedida definitiva, um
abandono irremissível tanto do outro, morto, no seu esfacelamento, quanto do
sobrevivente à privação rigorosa de toda esperança em qualquer sobrevida, seja
ela do outro ou mesmo, finalmente, do próprio sobrevivente, eu que saúdo o
outro e que um outro saudará em outro momento.
Essa
necessidade se liga àquela segundo a qual é preciso, em cada morto, reconhecer
o fim do mundo e não simplesmente o fim de um mundo: não uma interrupção
momentânea no encadeamento dos mundos possíveis, mas o aniquilamento sem
reservas nem compensação “do único e irrepetível mundo” “que faz de cada
vivente um vivente único e irrepetível”. É preciso dizer “adeus” sem retorno,
na certeza implacável de que o outro não retornará e jamais voltará.
Uma
saudação[2]
“digna desse nome” recusa, portanto, toda salvação. Saúda a ausência absoluta
de salvação ou, ainda, “renuncia de antemão à saudação”, como Derrida já tinha
escrito em Le Toucher, Jean-Luc Nancy[3]. Do mesmo modo que ele me dirigia essa
saudação despedindo a saudação, ele mais uma vez dirige para mim a advertência
desse “livro de adeus”. Ele especifica, com efeito, que a “ressurreição” deve
ser recusada, não somente “no sentido comum, que eleva e faz caminhar corpos
que voltam à vida, mas também a anastasis
sobre a qual fala Jean-Luc Nancy[4]”.
Esta última, de fato, “continua, ainda que com o rigor de certa crueldade, a
consolar. Ela postula que a existência de algum Deus e que o fim de um mundo não seria o fim do mundo”.
1
Quero
da minha parte saudar aqui essa saudação, e não recusar a recusa que ela
carrega, mas tentar esclarecê-la de outro modo, desde que seja possível levar a
tal matéria alguma luz e que não seja necessário, ao contrário, manter os olhos
fechados, definitiva e obstinadamente fechados para tudo o que não revela uma
noite e um sono sem amanhã nem despertar. Abertos, por consequência, para a
noite, na noite e enquanto eles mesmos noturnos: olhos que veem o fim do mundo,
não representado diante deles, mas neles desencadeando o aprofundamento da
visão e o tato da noite mesma. A noite contra os olhos como outros olhos que impediriam
e obscureceriam neles toda possibilidade de visão, de intencionalidade, de
direção, de orientação e de apelação fora do adeus sem retorno.
Para
que minha saudação seja digna de seu nome, é preciso saudar sem salvação, mas é
preciso saudar. O nome “saudação” designa a direção, o convite ou injunção em
vistas do ser-salvo. O salvo (salvus)
é o que permanece inteiro, ileso, intacto. O salvo não é portanto o salvado,
subtraído à ferida ou à nodoa que nele teria sido feita, mas é aquilo (ou
aquele, ou aquela) que permanece intacto, fora de alcance. Aquele que nunca foi
ferido. Assim o morto leva consigo, como se diz, o mundo irrepetível e único
que ele foi. Ele leva assim o mundo inteiro, pois sempre um mundo é tão somente
irrepetível, único e completamente intacto. Solus,
salvus: só há saudação do único, ou o único é o desolado por excelência: devastado, desertificado, deixado ao
isolamento total (desolari).
Da
mesma maneira que a palavra “consolação” apenas tem a ver com a palavra
“desolação” por uma assonância (solor, “confortar”,
é estranha a solus), assim também não
pode haver consolação da desolação, se consolar significa aplacar a dor,
restaurar um possível, reencontrar a presença e a vida daqueles que estão
mortos. Ao contrário, tudo deve “consolar” no sentido de fortificar a
desolação, de tornar a sua duração intratável e intangível. Tocar o intacto,
eis o que a morte nos oferece, e isso significa que o morto desaparece no
isolamento absoluto de sua morte intocável, mesmo que o vivo que o saúda permaneça
nesta borda em que nenhuma outra borda faz frente, nenhuma margem se aborda e
nenhum contato é possível (nem sensível, nem inteligível, nem imaginário) com o
intacto. É exatamente isso que a saudação saúda: a saudação toca o intocável,
sob a forma de uma direção que lhe confirma sua desaparição, que de alguma
maneira lhe dá novamente sua ausência fechada, e o mundo nela terminado. Dizer adeus, Derrida o diz no seu “Adeus” a
Levinas (p. 252), é “chamá-lo pelo seu nome, chamar seu nome”. A saudação saúda
o outro no intacto intocável de sua insignificante propriedade, seu nome já
submerso na não-significância que é aquela do nome próprio e, por ele ou nele,
a cada vez, do mundo em totalidade. Saudando o nome e o não[5] colocado neste nome, a saudação o desola
e se desola: eu estou só, cada vez absolutamente só diante desse isolamento,
essa isolação do outro “diante” da qual, estritamente falando, não posso mais me
sustentar, que não posso tocar sem desfalecer, privado desse sentido mesmo e,
nele, de todo sentido.
A
partir disso, resta que a saudação saúda e que, assim o fazendo – não fazendo
nada, entretanto, não produzindo nada, apenas desolando –, dirige-se e invoca,
chama, anuncia inclusive, ou, pela primeira vez, convoca, declara e proclama
algo, mais exatamente, alguém. Desse modo, não importa o que queira e o que
pretenda fazer, ele não pode nem consolar nem consolar-se. Ele [Derrida] fortifica
a desolação, e tal confortar, que o arrasa e deixa sem voz, para ele não é o de
menos, mas sim o é muito mais a incapacidade que nele gera a passagem de uma
voz, a de sua saudação àquilo que não se deixa saudar. Dezesseis vezes modulada
por dezesseis mortos, a saudação de Derrida (aliás, outras saudações, a cada
vez que alguém está aí para dizer “adeus” – e sabemos que terrível tristeza
reina quando não há ninguém, e sabemos por um saber enojado qual horror se
estende aí onde se encontra recusada, com toda saudação, a própria tumba, que é
a estela da saudação) – tal saudação ainda salva, seja o que for. Não salva
nada do abismo, mas saúda o abismo salvo. Então, o abismo assim preservado,
desolado e declarado na desolação, o abismo impossível de ser fechado assim
como de ser sondado, dá à saudação a dignidade – estranha, insuportável, em
lágrimas – do mundo que se afunda. Ao mesmo tempo, a saudação dá ao mundo
abismado sua dignidade de mundo. Ao nome próprio privado de sentido, dá a
totalidade de sentido, a inverificável e manifesta verdade que “o mundo”, a
cada vez, quer dizer.
2
O
que a anastasis quer designar, no
ensaio que fiz[6]
para desconstruir ou para desviar o valor entendido como “ressureição”, não é
nada mais do que esse restabelecimento (anastasis),
esse levantamento (não “liberação”) do sentido abismado em verdade lançada,
chamada, anunciada e saudada. A verdade só pode ser saudada, a cada vez, e
jamais salvada, pois não há nada a salvar, nada a fazer sair das profundezas da
morte: mas isso mesmo se saúda, a
cada vez, na oração fúnebre, que não é um ornamento, mas um elemento necessário
da estrutura ou do acontecimento chamado “morrer”. Por tal oração, por tal
saudação, “a morte” – esta suposta entidade, coisa ou sujeito, à qual Hegel só
concede o nome com a condição: “se nós quisermos nomear assim essa nulificação
[néantité]” – encontra-se saudada enquanto
morrer próprio deste, desta, daquele ou daquela que foi aqui ou lá (que foi o
mundo aqui ou lá) e não é nada mais nem será em nenhum lugar nem em nenhum
tempo. No seu morrer, cada um é saudado por si mesmo na própria medida em que
este “si mesmo” se desola, intacto, e que não volta a si, que não nos volta e nem
nos voltará. Não voltando, jazendo em efígie [gisant], restitui-se em verdade saudada.
Essa
saudação não opera nenhum retorno sub-reptício. Se a desolação consola dessa
maneira tão pouco confortante como perfeitamente irrecusável, isso não é por
uma maquinação dialética que converteria a perda em ganho. Não é pela operação
fantástica que a religião parece maquinar-se[7]
a fim de se apoderar de uma credulidade pronta a absorver a salvação. Na
própria religião não é certo que a representação da saudação jogue, em última
instância, o papel consolador que se crê, talvez de modo um tanto quanto rápido,
poder lhe dar um efeito de ilusão. Por certo não será aberrante pensar que
nunca um crente verdadeiro morreu ou viu morrer um outro com a imaginação
pueril de uma passagem contínua para um outro mundo, completamente similar a
este, mas somente isento de sofrimentos. É seguro que as religiões, como as
metafísicas, não cessam de fazer valer uma captação salvadora e uma consolação
confortante. Entretanto, “Deus”, ou o “outro mundo”, jamais nomeia de maneira
muito clara uma continuidade, quanto mais uma continuação desse mundo através
de uma passagem furtiva. A tumba não é uma passagem, é um não-lugar que abriga uma
ausência. A fé jamais consiste – e isso, sem dúvidas, em toda forma religiosa –
em fazer-se crer em algo sob o modo em que se faz crer que amanhã se terá
felicidade. A fé, por definição, só pode consistir em dirigir-se ao que passa e
nulifica [anéantit] toda crença, todo
cômputo, toda economia e toda salvação. A fé consiste, como o sabem os místicos
sem nela colocar nenhuma exaltação, em dirigir-se ou em ser dirigida ao outro do mundo, que não é “outro mundo” senão
no sentido de outro que o mundo,
aquele que a cada vez acaba sem remissão.
“Deus”
designa apenas essa alteridade na qual a alteração do mundo, de todo o mundo, faz-se absoluta, sem apelo
e sem evocação. E é o sem-apelo que apela e evoca, a cada vez, o dirigir-se aos
mortos. Tal dirigir-se é saudação. É muito depreciativo representar a
humanidade como se a imensa maioria de nossos semelhantes (e, sem dúvidas, será
preciso extrapolar, variando os termos, até aos animais) passasse a vida – ou
ainda, sua morte, como se queira dizer – desconhecendo mais ou menos
conscientemente, mais ou menos inconscientemente, o real intratável do morrer.
De maneira mais sutil e infinitamente mais digna, cada um sabe algo do
não-saber que lhe compete e que lhe interdiz, com um rigor extremo, pretender
se apropriar de algum modo de um objeto nomeado “morte”, uma vez que tal objeto
permanece sem consistência (na verdade, ele é que é fantástico) enquanto o
sujeito que morre e aquele que, saudando-o, a ele se dirige aí onde nenhum
dirigir-se chega, saúdam-se sem se salvar. Eles partilham a anastasis cuja elevação ou retidão corta
perpendicularmente o esfacelamento irrecuperável do corpo em pó. Não há nenhuma
sobrevida, nenhum ressurgir, nenhuma revivescência. Mas “ressurreição”, no
sentido de elevação da saudação, do adeus: a partida é seu próprio anúncio, não
revela nada, não leva a nenhum segredo, não opera nenhuma taumaturgia ou
transfiguração. Em um sentido, não há nada a dizer desse último dizer, dessa
oração na qual apenas a saudação brilha, o tempo de algumas palavras em um
soluço, com um brilho negro. A oratio é
o discurso ou a prece, é o discurso enquanto prece. A prece não é nem demanda
nem tráfico de influências, ela é tanto súplica quanto louvor. Ela é louvor suplicante:
ao mesmo tempo e toda vez ela celebra e deplora, ela pede uma remissão e
declara o irremissível. É isso que se torna o discurso, uma vez que o mundo
liquidado não mais permite encadear nenhuma significação. Neste momento, e toda
vez, a prece sem espera e sem efeito forma a anastasis do discurso, a saudação se erige e se dirige ao ponto
exato em que não resta nada a dizer.
É
insuportável: como não se inclinar diante do fato de que os viventes não cessam
de a suportar e de a saudar, fazendo dela, inclusive e em última análise, sua
razão de viver, a único factum rationis
absolutamente irrecusável e o impensável
sem o qual nada morreria, isto é, viveria?
Quem
viveria, por fim, sem praticar, ainda que sem o saber, isso que designo aqui
por uma citação retirada à força e colocada fora de contexto: “um hino, um
louvor, uma prece” voltados ao outro da vida presente na vida mesma, “uma
imploração de elevação [surrection],
de ressureição[8]”,
tal que é ela mesma, a imploração, a ressurreição?
Quem,
de resto, evocava uma música (senão a música mesma) graças à qual “o eu mesmo,
morto mas elevado por tal música, pela vinda irrepetível desta música, aqui e
agora, num mesmo movimento, o eu mesmo morria dizendo sim à morte e de pronto
ressuscitaria, dizendo, renasço, mas não sem morrer, renasço postumamente, o mesmo
êxtase unindo nele a morte sem retorno e a ressurreição, morte e nascimento,
saudação desesperada do adeus sem retorno e sem salvação, sem redenção, mas
saudação à vida do outro vivente no signo secreto e silêncio exuberante de uma
vida superabundante[9]” –
quem, senão Derrida, o mesmo ou um outro? E o que é uma vida superabundante
senão a vida simplesmente – sim, na sua própria brevidade –, enquanto excede
tudo o que podemos reconhecer e saudar, enquanto se excede e morre, assim se
confiando e nos confiando à superabundância e à exuberância?
A
exuberância não é nada mais do que a exatidão da vida assim que a existência a
ela se rende. A exatidão é uma palavra que a mim se quis creditar tê-la
“ressuscitado[10]”.
É demasiado associar a taumaturgia um simples tropismo lexical. Mas digamos
simplesmente que sem supor Deus nem salvação, jamais nos falta, mortos ou
vivos, uma língua para eterna e imortalmente saudarmos um ao outro, uns aos
outros. Tal saudação, sem nos salvar, ao menos nos toca e, ao nos tocar, suscita essa turbação estranha de
atravessar a vida para nada – mas não exatamente em pura perda.
Jean-Luc Nancy. Consolation, désolation. In.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 147-153. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Piero della Francesca. Ressureição. (detalhe) 1463-65. Pinacoteca comunale, Sansepolcro.
[1] Paris, Galilée, 2003.
[2] Salut, em
francês, designa tanto “saudação” quanto “salvação”. Desse modo, para que não
se perca a força do jogo de significações elaborado por Nancy com a ambiguidade
do termo, é preciso ler, na tradução, a presença constante do horizonte de
“salvação” que se encontra em discussão. (N.T.)
[3] Paris, Galilée, 2000.
[4] La reference va à J.-L. Nancy, Noli me tangere, Paris, Bayard, 2003.
[5] Nancy joga com a homofonia de nom (nome) e non (não).
(N.T.)
[6] Noli me
tangere, op. cit.
[7] Como contraponto à “machination dialectique”, Nancy
utiliza aqui o verbo “machiner”, que em português encontraria uma tradução mais
literal em “aparelhar-se”. Entretanto, como é comum nos jogos de palavras de
Nancy, preferi manter uma tradução que pode soar estranha, mas que, de algum
modo, mantém o jogo do autor.
[8] J. Derrida, Mémoires
d’aveugle, Paris, Réunion des musees nationaux, 1990, p. 123.
[9] Id., “Cette nuit dans la
nuit de la nuit…”, communication à propos de La Musique en respect de Marie-Louise Mallet (Paris, Galilée,
2002), publiée dans Rue Descartes, Paris,
PUF, novembre 2003, p. 124-125.