Para minha destinatária impossível.
Querida, confesso que escrevo depois de ter revisto meus postais. Almond Blossoms, do Van Gogh, sobretudo. Aquele fundo azul esverdeado, como que a mostrar o limite entre o céu e o mar, entre a minha consciência desperta e meus devaneios em sonho. Pensei nos livros que talvez tu me deste, nas fotos que talvez tiramos juntos, nas noites que talvez dormimos juntos. As flores da minha imaginação é que desabrochavam, e as minhas cartas imaginárias que escrevo sem cessar começaram a inundar com vozes os espaços onde as flores se mostravam. Querida, neste fim de semana li algumas notícias de um naufrágio e imaginei-me nas águas ao redor de uma ilha deserta. Não cheguei a encostar em tal ilha, não cheguei nem mesmo a perceber se se tratava de uma ilha deserta ou não. Aliás, nenhuma ilha é deserta a não ser que nela haja alguém que assim o diga. E se assim o é, que dizer da deserção? Há sempre uma voz que clama do deserto, querida; há sempre a solidão da voz que se separa de quem a pronuncia para, tornada outra e exterior ao falante, lembrar aquele que a pronunciou de que está só. Naufraguei, querida, na minha solidão à borda do deserto, no azul esverdeado das quase flores. De lá - ou seria daqui? - é que escrevo. E esta é minha condenação: traçar mapas e desenhar cartas para alguém que nunca as lê, para alguém que é sempre um alguém, para uma indeterminação da solidão. Querida, sinto por ter que contar sobre essas impressões. Não gostaria de partilhá-las com ninguém, mas desse ao menos que é alguém não há como me furtar. Não digo que não te conheço; não digo que não sei quem és. A tua impossibilidade me toca assim como uma voz insistentemente clama do deserto. Estamos sós depois do naufrágio, querida, e não nos resta mais que breves notas imaginárias. E em vão é que tento enviá-las a ti.
Do seu remetente impossível.
Imagem: Benedetto Bordone. Mapa mundi. 1528. British Library, London.
Do seu remetente impossível.
Imagem: Benedetto Bordone. Mapa mundi. 1528. British Library, London.
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