segunda-feira, 25 de março de 2013

Carta impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, confesso que escrevo depois de ter revisto meus postais. Almond Blossoms, do Van Gogh, sobretudo. Aquele fundo azul esverdeado, como que a mostrar o limite entre o céu e o mar, entre a minha consciência desperta e meus devaneios em sonho. Pensei nos livros que talvez tu me deste, nas fotos que talvez tiramos juntos, nas noites que talvez dormimos juntos. As flores da minha imaginação é que desabrochavam, e as minhas cartas imaginárias que escrevo sem cessar começaram a inundar com vozes os espaços onde as flores se mostravam. Querida, neste fim de semana li algumas notícias de um naufrágio e imaginei-me nas águas ao redor de uma ilha deserta. Não cheguei a encostar em tal ilha, não cheguei nem mesmo a perceber se se tratava de uma ilha deserta ou não. Aliás, nenhuma ilha é deserta a não ser que nela haja alguém que assim o diga. E se assim o é, que dizer da deserção? Há sempre uma voz que clama do deserto, querida; há sempre a solidão da voz que se separa de quem a pronuncia para, tornada outra e exterior ao falante, lembrar aquele que a pronunciou de que está só. Naufraguei, querida, na minha solidão à borda do deserto, no azul esverdeado das quase flores. De lá - ou seria daqui? - é que escrevo. E esta é minha condenação: traçar mapas e desenhar cartas para alguém que nunca as lê, para alguém que é sempre um alguém, para uma indeterminação da solidão. Querida, sinto por ter que contar sobre essas impressões. Não gostaria de partilhá-las com ninguém, mas desse ao menos que é alguém não há como me furtar. Não digo que não te conheço; não digo que não sei quem és. A tua impossibilidade me toca assim como uma voz insistentemente clama do deserto. Estamos sós depois do naufrágio, querida, e não nos resta mais que breves notas imaginárias. E em vão é que tento enviá-las a ti.

Do seu remetente impossível.

Imagem: Benedetto Bordone. Mapa mundi. 1528. British Library, London.   

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