O primeiro problema que estes poemas colocam para seu
leitor é que eles se põem como “figuras e semelhanças extravagantes”
no contexto de uma experiência mística. Essa experiência é indicada pelo autor
com as palavras noite escura e teologia mística. Várias vezes, em sua
obra, João explica o que tais expressões querem dizer. “A contemplação por meio
da qual – é possível ler em SMC – o
intelecto tem a mais alta consciência de Deus chama-se teologia mística, isto
é, sabedoria secreta de Deus, pois ela está escondida do próprio intelecto que
a recebe. Por isso são Dionísio a chama raio de trevas e a respeito dela o
profeta Baruc diz: ninguém conhece suas estradas nem saberia concebê-las. É
certo que a inteligência, se quer unir-se a Deus, deve cegar-se para todas as
trilhas que poderia percorrer. Aristóteles diz que como os olhos do morcego
fazem em relação ao sol, que os imerge nas trevas, assim também nossa
inteligência faz em relação ao que há de mais luminoso em Deus, que, para nós,
são trevas absolutas. Ele diz também que quanto mais as coisas divinas são
altas e claras, tanto mais para nós são desconhecidas e obscuras.”
No relato de são João, com efeito, esse “conhecimento
experimental de Deus”, em que, segundo a opinião comum, consistiria o estado
místico, não apenas não se apresenta como uma iluminação, mas não é nem mesmo,
em sentido próprio, um conhecer. Aquilo de que nele se faz experiência não é
apropriação ou habitus, mas
desapossamento e alienação; não fulgor, mas ofuscamento; não um avançar em
clareza e riqueza, mas um aprofundar e um encalhar-se na cegueira e na
escuridão.
Por isso são João distingue a teologia mística (ou
negativa) da teologia escolástica (ou positiva) e, em um dos poemas aqui
traduzidos, opõe o oximoro do “saber sem saber” e do “não entender entendendo”
aos argumentos dos sábios. Para ele não pode haver uma gnose, uma ciência das
verdades místicas análoga à teologia positiva. Pelo contrário, ele toma tão a
sério o preceito evangélico segundo o qual “quem quer salvar a própria alma a
perderá” que leva seu método de desnudamento e expropriação até a refutação de
todo aspecto edificante e positivo do cristianismo (na geografia visionária da
sua montanha psico-cósmica, o Carmelo, o consuelo
e a ciencia cristãs jazem em
trilhas de imperfeições) e a afirmar que em Cristo nós devemos imitar o momento
da privação, do desgosto, da angústia, da lamma
sabachtani.
Um dos mais tenazes equívocos que recaem sobre a
experiência mística, o do esoterismo teosófico, segundo o qual ela seria uma
ciência ou doutrina secreta, é assim rejeitado desde o início, se “conhecimento
secreto” significa para João, acima de tudo, que “ele é escondido do próprio
intelecto que o recebe”. Também vale para João, sobre esse ponto, o que
Platão escreve na sétima carta a propósito de seu ensinamento filosófico:
“Sobre isso não existe, e jamais existirá, nenhum tratado meu, pois essa
absolutamente não é, como as outras, uma disciplina comunicável, mas, depois de
muitas discussões sobre tais problemas e de uma longa convivência, de modo
improvisado, como luz que se acende por uma faísca, ela nasce na alma e então
se alimenta de si mesma.”
Nessa perspectiva, os símbolos dos quais às vezes se
servem os místicos não aparecem como cifras de uma ciência secreta, mas, pelo
contrário, como mimese da opacidade cuja leitura própria consiste em
compreender que deles não há nenhuma leitura possível; e isso vale tanto, por
aquilo que deles nos é dado saber, para os simples objetos que comparecem nas
iniciações mistéricas da antiguidade quanto para os emblemas e as incôngruas
metáforas alquímicas, tanto para a ambígua espessura material dos rituais e das
imagens gnósticas como para os tropos poéticos nos quais são João procura fixar
suas estações na noite escura. Os símbolos, segundo a justa expressão de
Bachoen, “repousam em si mesmos”, saturados e cheios de nada, e não enviam para
nenhuma verdade escondida.
O paradoxo da teologia mística é, portanto, este:
que, enquanto é opacidade e desapossamento integral, a experiência final que
ela implica é aquela, puramente negativa, de uma presença que não se distingue
em nada de uma ausência; em sentido próprio, ela não é uma teologia (uma ciência de Deus), mas uma teo-alogia, que chega a uma incognoscibilidade última, ou, pelo
menos, a um conhecer apenas por opacidade e negação, a uma apropriação cujo
objeto é o próprio Inapropriável e que, por isso, não se substancia em um habitus doutrinal positivo, mas apenas é
passível de ser metaforizado e aludido por oximoros, catacreses e outras
“figuras e semelhanças extravagantes”.
A metáfora central da poesia de são João, a da “noite
escura”, alude, portanto, a esse caráter opaco e negativo da experiência
mística.
Também por essa imagem, como pelo próprio termo “teologia
mística”, o modelo de são João deve ser procurado no gênio ignoto que, sob o
nome de Dionísio Aeropagita, forneceu por século os motivos a toda teologia
negativa e a toda mistagogia, e cujos escritos foram considerados, durante todo
o medievo, como escrituras sagradas e transmitidos como herança, por meio da
versão de Marsilio Ficino, ao humanismo renascentista.
A “noite escura” de são João não é, entretanto,
apenas uma metáfora, mas também um camino,
um itinerário que, em seu gradus, delineia,
ainda que de modo negativo, uma doutrina das potências da alma e uma completa e
articulada psicologia. Como tal, ela tem duas partes: a primeira corresponde à
esfera sensitiva (noite dos sentidos) e é uma privação e mortificação de todos
os apetites que nascem dos cinco sentidos, cada um dos quais deve ser
obscurecido na sua potência específica para restituir à alma sua nudez
original. Quanto à segunda parte desse itinerário à sombra, a noite do
espírito, são João para ela retoma o elenco agostiniano das três potências da
alma (que santo Agostinho considerava, no De
Trinitate, como um reflexo da Trindade divina no homem): intellectus, memoria, voluntas. A cada
uma dessas “potências” corresponde, para são João, uma virtude teologal: a fé
ao intelecto, a esperança à memória, a caridade à vontade. Mas, com uma
audaciosa inversão da teologia positiva, as virtudes teologais são
compreendidas por são João como potências de ofuscamento e de negação e não
como instrumentos de edificação: “As três virtudes teologais produzem, cada uma
delas, o vazio nas potências da alma: a fé causa vazio e obscuridade no
intelecto; a esperança, na memória, o vazio de qualquer possessão; a caridade,
na vontade, vazio e nudez de qualquer afeto e gozo” (SMC, II, 6). Expondo-se à ação dessas virtudes nulificantes, cada
uma das potências da alma realiza assim o desapossamento integral das suas
“propriedades” (as apreensões pelo intelecto; as recordações pela memória; as
paixões ou afecções pela vontade) em que consiste a experiência da noite
escura.
Neste ponto, merece uma particular atenção o
tratamento que são João dedica à noite da memória, uma vez que será possível
colocar o problema, que a mim parece jamais ter sido afrontado, das relações
entre a experiência mística de são João e a literatura mnemotécnica que era
parte integrante da psicologia de seu tempo.
É certo que são João não podia ignorar a ars memorativa de que se fizeram
porta-vozes justamente duas grandes ordens religiosas: os dominicanos e os
franciscanos. Os capítulos (SMC, III, 2-15) nos quais ele guia a memória na noite escura “fora dos seus limites e
das suas coordenadas naturais, elevando-a para além de si própria, isto é, para
além de toda consciência distinta e toda apreensível possessão na soberana
esperança de Deus incompreensível”, podem ser, pelo contrário, considerados
como um verdadeiro tratado mnemotécnico invertido que, nas suas minuciosas
articulações, repete a catalogação mnemotécnica dos conteúdos da memória.
Enquanto a ars memorativa era, porém,
voltada à apropriação e ao senhorio de todos os conteúdos da memória, a técnica
de são João é voltada, de modo oposto, à sua expropriação. “O homem espiritual
– escreve ele (SMC, III, 2) – tenha
esta cautela: de todas as coisas que ouça, veja, sinta, deguste ou toque, não
faça arquivo nem as tome na memória, mas deixe-as de pronto cair em
esquecimento; e assim o faça, se necessário, com mesmo empenho que outros procuram
lembrar, de modo que não reste na memória notícia alguma ou figura dessas
coisas, como se jamais houvessem existido no mundo, deixando a memória livre e desembaraçada,
não a prendendo a nenhuma consideração, seja do alto ou do baixo, e deixando-a
livremente perder-se no esquecimento...”
A noite da memória não é, entretanto, tão oposta à
mnemotécnica como pode parecer à primeira vista. Na forma mágico-mística que a
ela deram Raimondo Lullo e Giordano Bruno, a mnemotécnica não era, na
realidade, voltada a uma mera rememoração de notícias e recordações registradas
na memória, mas, antes, por meio da manipulação de oportunas imagens de talismãs
ou selos, era ligada ao ordenamento e à unificação de todos os conteúdos
psíquicos em uma harmônica imagem e lembrança global, que equivalia a uma
presença psíquica absoluta, não mais exposta à labilidade e à dispersão das
lembranças e notícias individuais. Também a noite da memória visa, em certo
sentido, a uma liberação da memória das recordações e das informações que
poderiam “distraí-la” do seu fim próprio; mas enquanto a mnemotécnica, ao menos
por aquilo que nos é dado intuir de seu fim último, propunha-se a uma
apropriação global do si e a um reforço da presença psíquica, a noite da memória
visa, ao contrário, a uma memória mística, uma memoria dei que se sustenta sobre o esquecimento e não funda
nenhuma possessão ou habitus. São
João define esse uso místico da memória quando fala de uma memória transformada
em Deus, que não é mais disposição consciente e voluntária das recordações, mas
um improvisado e involuntário movimento da memória operado por Deus, um
recordar sem recordar que despedaça e ao mesmo tempo eleva a memória para além
de si própia. “Por isso – escreve ele em SMC,
III, 2 – as operações da memória, nesse estado, são todas divinas; porque
Deus possui as potências como Senhor absoluto, por meio da transformação destas
em Si; Ele próprio as move e divinamente as comanda segundo seu divino espírito
e sua vontade”. Nesse sentido, a memória mística de são João se assemelha mais
à memoire involontaire e às intermittences du coeur às quais Proust
confiava a evocação das impressões liberadas pelo tempo e a apreensão, no átimo
imponderável em que nele dura a extática epifania, da essência inacessível da
realidade.
O segundo problema que os poemas de são João colocam
a seu leitor é o da particular relação que liga a experiência poética moderna à
“noite escura” das experiências místicas. Por razões que seriam demasiado
longas para se reconstruir neste lugar, a poesia moderna (isto é, desde a
primeira revolução industrial em diante) apressadamente voltou ao longo do aventuroso
caminho que havia levado, por meio de um secular processo de laicização, do
ritual à literatura. Ela assim se colocou, com cada vez maior rigor, como o lugar
privilegiado, se não único, da experiência teofânica do Absoluto, chegando a
conceber a si própria como uma técnica para produzir epifanias, segundo a fórmula
que Pound compendiaria da maneira mais precisa ao escrever que “a grande arte
serve para suscitar ou para criar êxtases”. Nessa sua tensão mística, entretanto,
a poesia moderna acabou fatalmente por encontrar-se na situação paradoxal de
dispor de um ritual cindido de toda mitologia positiva, de uma liturgia à qual
não correspondia mais nenhuma teologia definida, uma espécie, para que
entendamos, de absoluta teologia negativa cujas experiências extáticas não
podiam conduzir a nenhuma reconhecível epifania do divino.
O frêmito de um novo nascimento divino que percorre a
poesia moderna, desde a evocação báquica de Brot
un Wein, de Hölderlin, até a epifania dionisíaca do canto II de Pound, não
resultou, com efeito, em nenhuma nominável figura do divino, e todos os
esforços dos poetas para chegar a uma nova e comum mitologia faliram.
Hölderlin, com sua nova Cristologia, talvez tenha se lançado até o limiar de um
novo anúncio teofânico, mas ele ainda permanece sempre o poeta da “ausência de
Deus que ajuda”, em cujos últimos hinos parece já se perfilar a terrífica
presença do anjo que impõe a morte na primeira Elegia de Duíno. Assim, na
aspiração novalisiana por uma transfiguração do mundo em Fábula (em que já
Hoffman via uma componente demoníaca), não está bem claro se o ritual da
iniciação noturna consegue garantir o mecanismo soteriológico e dar vida a uma
nova mitologia ou se esta permanece, ao contrário, uma experiência subterrânea puramente
individual e sem resgate. Não tiveram melhor êxito as tentativas de Blake de
reformular os nomes divinos à luz apocalíptica da revolução e o anúncio de
Yeats de um “segundo advento” suportado pela ambígua ideologia teosófica da
Blavatskij.
O Νέος
Διόνυσος da poesia moderna não é a Deusa
Branca em cujo culto Graves identificava a fonte da poesia (mesmo se tratando
da deusa que concede a morte iniciática, κόρη
ínfera ou Inanna-Salomé dos sete véus)
tampouco alguma outra divindade luminosa e nomeável (ainda que sob a proteção
de um senhal), mas uma presença
escura e ofuscante, inominável e ignominiosa, cuja epifania é necessariamente
rompida e balbuciante, e a propósito da qual não é nem mesmo possível dizer que
seja aparição divina ou emblema demoníaco. Como Rilke havia escrito numa carta
a Ilse Jahr, “o abismo entre nós e Deus é cheio do escuro de Deus, e quando
alguém o prova, deve calar-se e uivar nesse precipício (é mais necessário isso
do que o atravessar)”.
As lábeis epifanias à cuja evocação o poeta moderno
confia o próprio trabalho e salvação, são assim, no melhor dos casos, lampejos
de um distante amuleto em que restam por um átimo suspensos resquícios e
resíduos de um culto cujo sentido desapareceu ou ainda está por ser encontrado
(como no caso de Montale), ou, ainda, redução a entulhos ou fragmentos de mitos
e figuras divinas pertencentes à tradição (como no último Pound), ou alusão
paródica e fragmentada a rituais e símbolos dessignificados (como em Eliot ou
no Pound de Mauberley) e, em todo
caso, conjurações de um Inapreensível (seja da celeste-ínfera Beleza de
Baudelaire e de Rimbaud ou do Absoluto de Mallarmé, do Anjo de Rilke ou da
“cabeça de Medusa” de Celan) que se dissolve no instante em que se mostra, na
desesperada consciência de que a epifania poética não tem, por fim, outro
conteúdo para além de si mesma e do próprio inevitável naufrágio. Se tal
condição de opacidade da poesia moderna é o que funda a proximidade e a
atualidade
da palavra que diz a “noite escura” da experiência mística, ela assinala,
porém, também o limite que separa as duas experiências.
A teologia mística de são João ainda pressupõe, com
efeito, sempre a existência de uma teologia positiva e de uma Sagrada Escritura
a partir da qual extrair sua legitimidade e suas garantias. Ao contrário, a
poesia moderna não reconhece outra escritura sagrada senão ela própria. Por
isso, enquanto ela, por ser a única garantidora de si, devia fatalmente ser
conduzida a interrogar-se sobre os próprios limites e sobre sua adequação, e a
procurar em sua incessante autonegação, irônica e sacrificial, a única garantia
válida da própria autenticidade (o silêncio de Rimbaud e a question of consistency levantada por Laura Riding são apenas as
formas extremas desse processo), para são João o problema da adequação da
poesia à experiência mística não podia colocar-se nesses termos exatamente porque,
não tendo ainda a poesia adquirido um significado religioso em si e por si, e ainda
não tendo sido assumido o impossível trabalho de ser ao mesmo tempo o ritual e
a garantia da teofania, ele jamais havia acreditado em sua adequação. É por
isso que são João pode confiar à poesia um trabalho que a transcende sem
desesperar-se por ela; e isso explica também porque ele não teve necessidade de
recorrer às obscuridades e às agudezas, que
alguns anos depois deverão garantir a linguagem da poesia culterana, e pôde
assim fazer uso de uma linguagem relativamente ingênua, na qual é possível
apreender um eco das canções populares e das coplas e glosas castelhanas.
Tal fé na linguagem “ingênua” o poeta moderno não
pode reencontrar, salvo exceções, senão em má-fé. A alternativa que se
apresentava para isso ao tradutor que tivesse verdadeiramente compreendido dar
um equivalente moderno das experiências de são João, era ou a paródia do texto
ou sua redução a fragmentos. Preferiu-se, por razões óbvias, limitar-se a
oferecer nada mais do que um auxílio de leitura diante do texto em que, talvez
pela primeira vez de modo tão explícito, a experiência da poesia se saldava, ainda
que apenas como “figura e semelhanças extravagantes”, com a da soberana nudez
teopática na noite nupcial e transfiguradora.