terça-feira, 30 de setembro de 2014

Pequeno parágrafo sobre as cartas II


Da decisão sobre escrever uma carta não há voltas e, assim, o mundo, este palimpsesto amarelado de mapas do destino sem volta das palavras, é despejado em minhas mãos. Talvez, mesmo este parágrafo obtuso não seja mais do que uma carta endereçada a alguém que nunca o lerá. Todas as palavras são um desperdício quando escritas, mas, ao mesmo tempo, são também a única possibilidade de vida que nos resta, o meio angustiante de tentar cartografar os passos pela existência. As gotas de tinta que outrora manchavam minhas mãos a cada folha preenchida, agora penetram minha carne, invadem meu sangue e deglutem minhas esperanças e suspiros de ler as respostas que nunca tive e tampouco terei. Com a carta à metade, sinto o mundo se esvaindo a cada nova palavra, como quando leio alguns poemas hipnóticos que me perturbam o dia. E a tinta continua a invadir-me com fúria, e agora rompe minhas entranhas e me coloca em êxtase diante do impossível: dizer a quem quer que seja, ou que não seja, meu desejo de dizer. Nenhuma carta jamais o dirá e, talvez por isso, todas até agora escritas já o disseram... 

Imagem: Albrecht Dürer. Erasmo de Roterdã. 1526. National Gallery of Art, Washington. 

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Porra nenhuma


Não acredito em porra nenhuma!
Nem na porra que fecunda,
nem na porra imunda que escorre
pelas coxas de uma amada qualquer.

Nem na porra do saco de Urano,
saco este do céu lançado por seu filho,
Saturno, ao mar, logo após a castração.
Nessa porra com sangue e espuma que,
numa concha, gera o amor, Venus,
a bela deusa que não é mais do que
porra, sangue e espuma.

Não acredito em porra nenhuma,
porque fiar-se é aceitar a chantagem
de Ariadne e, tal como Teseu,
ser obrigado a voltar, ainda que
desejoso por tudo abandonar.

Imagem: Giorgio Vasari e Cristofano Gherardi. Castração de Urano. 1560. Afresco do Palazzo Vecchio, Florença.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Pequeno delírio em parágrafo XX


No dia, em todo dia, há um momento em que a luz se faz lúgubre som de revolta. Todas as cores e odores, os sonhos tolos de outrora, a manhã que prenuncia as vontades de uma liberdade perdida, tudo se faz som obtuso de revolta. Escuto os passos daqueles que já se foram e que não olharam para trás. Mas isso não é senão o eco da voz divina no latido de um cachorro, este mesmo que por mim acaba de passar correndo. Os homens cruzam-se pelas ruas e pensam ser monolitos duros no turbilhão da vida. Não percebem sua desgraça? Não conseguem ver que nenhum sentido é possível no latido daquele cão? Anjos com asas estilhaçadas agora escutam meus pensamentos: "Achas mesmo que qualquer luz lhe é permitida?", me perguntam. Evito esboçar respostas em sua língua, pois, de qualquer forma, não me escutariam. Continuo a passos lentos, aturdido pelo latido, mas já sem nenhum medo. E agora escuto outra voz, a de um poeta centenário, que, com ironia nos lábios, desdenhava das vozes angelicais: 

"así pasa la gloria del mundo
sin pena
             sin gloria
                          sin mundo
sin un miserable sandwich de mortadela."


Imagem: Lucas "the Elder" Cranach. Judite segura a cabeça de Holofernes. 1526-1530. Staatliche Museen, Kassel.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Pequena nota sobre os "coxinhas"



Uma dimensão da utopia, das mais utópicas, é a que Barthes lê em Sade: "A utopia sádica mede-se muito menos pelas declarações teóricas do que pela organização da vida cotidiana, pois a marca da utopia é o cotidiano; ou, ainda, tudo o que é cotidiano é utópico: horários, momentos de refeições, escolha de vestimentas, instalações imobiliárias, modos de conversar ou de comunicação...". No fluxo das horas, no irremediável e patético comportamento do homem médio, não há mais do que a singela e pura utopia. No não-lugar que é sua vida, na abstração em nome do programa da felicidade (sempre prescrito por preceitos, por demandas, por esperanças), instala-se o horizonte utópico chamado cotidiano: a forma pernóstica de desdenhar a urgência do pensamento e da luta diária contra as formas de destruição e cooptação da intensidade da vida. E nada mais cretino do que a maneira de portar-se do "coxinha"**, esse homem do cotidiano, incapaz de pensar e que dessa sua incapacidade vangloria-se (se vivo, certamente Pasolini daria ao "coxinha" os atributos que dera ao homem médio: um monstro, fascista, racista, sexista etc.). O "coxinha" nem ao menos se dá conta de seu sadismo (e, em certa medida, o "coxinha" também faz o papel de masoquista ao gozar com o fato de perceber que a lei - esta, personificada nessa fantasmática figura que é o cotidiano - goza ao humilhá-lo). Aliás, sequer percebe a utopia, em seu pior sentido, que é a organização de sua vida: uma vida da lei, da ordem, da estruturação sagrada da família - em suas dementes formas cripto-cristãs, católicas ou protestantes -, da estabilidade, do necessário, da completa e invariável falta de imaginação. Uma vida utópica e forjada nas certezas de que há uma felicidade plena a ser alcançada e que a alcançará tão logo cumpra todos os requisitos de passagem; ou seja, como sádico que é, deve organizar todos os procedimentos para, ao final, gozar até não poder mais (e a imagem do véu e grinalda e dos carrões ocupando suas garagens no presídio chamado condomínio de luxo são os amuletos de seu imaginário pobre e construído doutrinariamente pela TV, pelos espúrios jornalões e semanários e pelas subcelebridades das redes sociais). Com ardor do crente, o "coxinha" briga pelo cotidiano, afinal, é a única utopia (da qual, diga-se, não se dá conta) que lhe resta.