quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Pequena nota sobre os "coxinhas"



Uma dimensão da utopia, das mais utópicas, é a que Barthes lê em Sade: "A utopia sádica mede-se muito menos pelas declarações teóricas do que pela organização da vida cotidiana, pois a marca da utopia é o cotidiano; ou, ainda, tudo o que é cotidiano é utópico: horários, momentos de refeições, escolha de vestimentas, instalações imobiliárias, modos de conversar ou de comunicação...". No fluxo das horas, no irremediável e patético comportamento do homem médio, não há mais do que a singela e pura utopia. No não-lugar que é sua vida, na abstração em nome do programa da felicidade (sempre prescrito por preceitos, por demandas, por esperanças), instala-se o horizonte utópico chamado cotidiano: a forma pernóstica de desdenhar a urgência do pensamento e da luta diária contra as formas de destruição e cooptação da intensidade da vida. E nada mais cretino do que a maneira de portar-se do "coxinha"**, esse homem do cotidiano, incapaz de pensar e que dessa sua incapacidade vangloria-se (se vivo, certamente Pasolini daria ao "coxinha" os atributos que dera ao homem médio: um monstro, fascista, racista, sexista etc.). O "coxinha" nem ao menos se dá conta de seu sadismo (e, em certa medida, o "coxinha" também faz o papel de masoquista ao gozar com o fato de perceber que a lei - esta, personificada nessa fantasmática figura que é o cotidiano - goza ao humilhá-lo). Aliás, sequer percebe a utopia, em seu pior sentido, que é a organização de sua vida: uma vida da lei, da ordem, da estruturação sagrada da família - em suas dementes formas cripto-cristãs, católicas ou protestantes -, da estabilidade, do necessário, da completa e invariável falta de imaginação. Uma vida utópica e forjada nas certezas de que há uma felicidade plena a ser alcançada e que a alcançará tão logo cumpra todos os requisitos de passagem; ou seja, como sádico que é, deve organizar todos os procedimentos para, ao final, gozar até não poder mais (e a imagem do véu e grinalda e dos carrões ocupando suas garagens no presídio chamado condomínio de luxo são os amuletos de seu imaginário pobre e construído doutrinariamente pela TV, pelos espúrios jornalões e semanários e pelas subcelebridades das redes sociais). Com ardor do crente, o "coxinha" briga pelo cotidiano, afinal, é a única utopia (da qual, diga-se, não se dá conta) que lhe resta.       

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