O homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque nunca esquece de nada. Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina, simultaneamente condição e função de seu hábito impecável, um instrumento de referência e não de descoberta. A apologia de sua memória – “lembro-me como se fosse ontem...” – é também seu epitáfio e também indica a expressão exata de seu valor. Não pode lembrar-se de ontem, na mesma medida em que não se pode lembrar de amanhã. Pode apenas contemplar o dia de ontem, pendurado para secar juntamente com o feriado estival de maior índice de precipitação pluviométrica que se tem registrado, pouco adiante no varal. Porque sua memória é um varal, e as imagens de seu passado são roupa suja redimida, criados infalivelmente complacentes de suas necessidades de reminiscência. (...)
Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi registrado por nossa extrema desatenção e armazenado naquele último e inacessível calabouço de nosso ser; para o qual o Hábito não possuía a chave – e não precisa possuir; pois lá não encontrará nada de sua útil e hedionda parafernália de guerra. Mas aqui, nesse ‘gouffre interdit à nos sondes’, está armazenada essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor, por que acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz da vulgaridade, a fina essência de uma divindade cuja disfazione sussurrada afoga-se na vociferação saudável de um apetite que abarca tudo, a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e cal. (...) Desta fonte profunda, Proust alçará seu mundo. Sua obra não é um acidente, mas seu salvamento o é.
BECKETT, Samuel. Proust. (Tradução Arthur Nestrovisky). São Paulo: Cosac & Naify, 2003. pp. 29-31.