Insurgência e
contrainsurgência, em tempos de neocolonialismo explícito e da acumulação
predatória como prática habitual de governo, deixam de expressar anomalias ou
excepcionalidades e passam a ser o cotidiano político de territórios ocupados –
como a América Latina conflagrada – dado que o próprio mundo hoje pode ser
novamente dividido entre impérios e áreas de ocupação colonial.
Esta hipótese
necessitaria de uma digressão histórica mais ampla, que aqui apenas resumirei:
se o capitalismo no séc. XIX até a primeira metade do séc. XX estava baseado na
mercadoria, e se a partir de 1970 passa a se ancorar na concorrência e no
capital humano, vide a interpretação foucaultiana, o capitalismo cibernético
contemporâneo, sob o terreno de quatro décadas de prevalência da
governamentalidade neoliberal, tem a acumulação predatória ou primitiva (ursprüngliche
Akkumulation), tal como chamada por Marx, como vetor principal de sua
disseminação e gestão.
Primitiva,
aqui, está muito longe de se referir a um momento originário em que o
capitalismo se implementa, abandonando as estruturas feudais. A acumulação
primitiva acompanhou as demais formas de acumulação no capitalismo (como a mais
valia extraída do lucro, da jornada de trabalho, etc.): é o conflito e a captura
incessante entre capital e não capital, o capital e seu fora. No séc. XVI
europeu, implicava os ilegalismos da grilagem e da destruição das propriedades
comunais, da separação violenta de vassalos e artesãos livres de seus meios de
subsistência. Como não mais retiram diretamente seu sustento dos locais onde
estão, pessoas despossuídas de seus meios de produção passam a depender de
patrões e de salários. Necessitam de mercados, vide o processo pré-industrial
de unificação em manufaturas das antigas tecelagens dispersas na Inglaterra, um
dos temas da análise marxiana. O capitalismo rompe com a propriedade privada constituída
a partir de meios próprios de produção. Para aqueles que não conseguem se
inserir no admirável mundo novo do trabalho assalariado, as leis sanguinárias
contra a pobreza[1].
Criar a artificialidade de um trabalhador disciplinado e, como consequência, um
mercado, exigiu muita violência real: o capital nasce escorrendo sangue e
lama por todos os poros. “Na
história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a
subjugação, o assassinato para roubar, em suma, a violência”.[2] E
nas vastas regiões do mundo em que a produção da vida acontecia de formas
distintas, o capitalismo implicou o regime de plantation, o tráfico
intercontinental de escravos. O colonialismo é sombra constante e ubíqua do
capitalismo.
No séc. XXI,
em tempos de automação, desindustrialização e financeirização do capital, a acumulação
gerada pela expropriação da mais valia extraída do trabalho não deixa de existir,
mas perde relevância estrutural. Sem os suportes produtivos que mantenham o
delírio dos ganhos especulativos, o capitalismo em seus estertores passa a
canibalizar tudo: não apenas uma nova modalidade de imperialismo colonial em
busca de recursos imediatos (água, petróleo, lítio, previdências públicas), mas
se expandem os regimes neo-escravocratas na era do “big data”. Tal
expansividade também vem acompanhada de uma dimensão intensiva (Karmy): todas as esferas da vida podem ser passíveis de capitalização, da
suposta “interioridade” geradora de dados cibernéticos às identidades
performadas nas redes sociais, da gestão farmacopornográfica das subjetividades
- “o complexo material e virtual que participa da indução de estados mentais e
psicossomáticos”[3]
(Preciado) - à financeirização das informações biométricas e do genoma de uma
população específica.
Diante de um
capitalismo sustentado justamente na captura daquilo que sempre está no limite
de superá-lo, instavelmente mantido na acumulação predatória e primitiva, as
lutas contemporâneas não se pautam apenas por melhores condições de vida das
classes trabalhadoras ou pela inclusão em um mercado que já não mais funciona
sob o modelo da regulação em prol de sua eventual manutenção: ficou para trás a
era das mercadorias e da necessidade de mercados quaisquer, localizados,
históricos, que satisfaçam e mantenham trabalhadores-consumidores. Em tempos de
acumulação predatória, as lutas que realmente importam, efetivas (wirklich),
no sentido benjaminiano do termo, são contra o próprio capitalismo. As
revoltas assumem uma dimensão insurrecional.
De outro
lado, como não mais se mascara institucionalmente no protocolo das garantias
que visavam salvaguardar uma dada consistência produtiva tutelando uma
“população trabalhadora”, a forma-Estado em nosso tempo assume uma configuração
semelhante à que teve no séc. XVI, com modalidades, intensidades e tecnologias especiais:
violência arbitrária e destruidora a fim de configurar, com traços de sangue e
fogo, novas e inauditas expropriações.
As antigas
colônias são reocupadas, os aparatos estatais destas tornam-se imediatamente
dispositivos para prevenir e rebelar revoltas “nativas”: máquinas coloniais de
ocupação territorial, recorrendo a meios militares e paramilitares de
contrainsurreição como regra habitual de gestão. Os diagramas da administração
colonial do presente operam de maneira distinta às representações do Estado
constitucional-parlamentar e possuem prevalência mesmo sob a vigência
fantasmagórica deste: ilegalidades, extermínios, desaparecimentos, suplícios
são resultados habituais de um poder ocupante e predatório.
Insurgência e
contrainsurgência são, portanto, as duas intensidades políticas e
governamentais que dão inteligibilidade às revoltas mais recentes que
atravessam nosso continente conflagrado.
Limiares
I. Insurreição.
A mobilização rebelde no Chile não se
limitou a uma pauta contra o aumento das tarifas no metrô, mas abrange a
exigência da derrubada da totalidade das instituições herdadas do regime
genocida de Pinochet, como a Constituição de 1980. A resposta tipicamente
contrainsurreicional surgiu com a decretação do Estado de Emergência e do toque
de recolher. Uma resposta que significou a exposição ut patet das
entranhas do Estado chileno como um todo: violência sanguinária para a
manutenção das fortunas de rentistas, tendo como capitães-do-mato Pinochet ou,
recentemente, o empresário Piñera.
II. Contrainsurreição.
Desde 2005 Angela Merkel é chanceler da principal potência europeia. O primeiro
mandato de Evo Morales iniciou-se um ano depois, em 2006. Morales foi deposto
recentemente em um golpe de Estado envolvendo o exército boliviano e as forças
policiais do país, com iniciativa dos EUA e apoio incondicional de seu mais
recente satélite, o estado brasileiro, que também sofreu um golpe de Estado no
ano de 2016. Até então Alemanha e Bolívia poderiam ser comparadas: eram as
economias com melhores índices em seus respectivos continentes, com líderes
longevos respaldados por mandatos populares. O desapreço neocolonial pelo
ritual democrático ficou explícito na forma como os celerados que atualmente
administram o novo Brasil colônia apressaram-se em reconhecer a autocracia
racista e neopentecostal que assumiu na Bolívia ou na maneira como pouco tempo
antes trataram as eleições argentinas: a vitória incontestável do peronista
Fernandez, imediatamente reconhecida pelo oponente de direita Macri, ambos
candidatos do quadrante neoliberal, foi assim descrita pelo chanceler Ernesto
Araújo: “as forças do mal estão celebrando. As forças da democracia estão
lamentando pela Argentina, pelo Mercosul e por toda a América do Sul.” Até
mesmo os slogans do Império pagante são copiados, sem nenhuma
inventividade.
III. Parte da
esquerda institucional e progressista não percebeu a ruptura de paradigma
governamental: supôs que seus postulados sociais-democratas e sua visão
pró-mercado, com programas neoliberais expressos, inibiriam golpes de estado,
tal como vistos no continente nos anos 60 e 70. Em um modelo
contrainsurreicional e neocolonial, inclusive a social-democracia é vista como
inimiga. A estratégia não fica limitada a ganhar da esquerda em eleições, mesmo
que manipuladas. O objetivo é neutralizá-la justamente nas potenciais ativações
e politizações de massas. Para tal intento mobiliza-se a guerra de informações
– milhões aplicados na atuação cibernética - e o extermínio ou a perseguição armada
(policial, militar ou paramilitar) em sentido estrito.
IV.
Na impossibilidade de cumprimento das promessas teológicas de um discurso
neoliberal baseado na precariedade do empresariado de si, o neopentecostalismo apresenta-se
como técnica governamental bruta da automutilação e da expiação contínua e sem
misericórdia. Se, na hipótese weberiana, a ascese intramundana do
protestantismo e a emergência do capitalismo moderno estiveram imbricados - o
protestantismo como teologia e, simultaneamente, ética da gestão capitalista (a
teoria da predestinação e a ideia puritana da profissão como vocação são,
respectivamente, conceitos e âmbitos de pesquisa da sociologia weberiana)[4] - o
neopentecostalismo, ao contrário, é o próprio vazio da gestão alçado a elemento
teológico normativo e normalizador. O neopentecostalismo é a sacralização da
administração sem nenhuma inscrição mundana e sem resquícios de uma ética. Na
era do fim do emprego e da apropriação predatória, esta técnica governamental
imperial aplicada aos miseráveis – estejam eles nas periferias ou nos
condomínios de luxo – promete continuamente a reconciliação com a própria
destruição. Mas no sentido de uma justificação e despolitização do
injustificável, não de uma alegria niilista. É o empreendedor cuja prática
ascética é a destruição de si. É o martírio despido de qualquer resquício
cristão: martiriza-se para um líder de cartel, um gangster que vista um terno e
porte uma bíblia, um político oportunista. É a técnica que permite, mesmo na ocasião
da catástrofe e após o fim das hegemonias, que pessoas sigam um líder e se
comportem como governados integrais: uma pastoral da pastoral. O nada
possui abismos e matizes: o neopentecostal, assim como o fascista, cultua a
despossessão de si e dos demais, sem redenção ou expiação. O dinheiro puro é o totem sobre o qual gravita
o capitalismo rentista e as religiões niilistas de obediência pura, como o
neopentecostalismo, são um componente estratégico da contrainsurgência
contemporânea.
V. Sem as
lutas que interrompam a catástrofe, o Brasil bolsonarista encaminha-se para se
tornar a maior autocracia neopentecostal do planeta.
VI. O
capitalismo neocolonial engendra novamente a urgências das forças de libertação
e autodefesa. Processos de subjetivação política rebelde e combatente, que fazem
de seus territórios sua potência guerreira, com outras formas de vida e organização,
inseparáveis. Não apenas em um sentido defensivo, porém. “Quanto ao
imperialismo ianque, não vale somente estar decidido à defesa, é necessário
atacá-lo em suas bases de sustentação, nos territórios coloniais e neocoloniais
que servem de base para seu domínio no mundo.” (Ernesto Che Guevara, Passagens
da Guerra revolucionária: Congo). Porém, no tempo de um imperialismo que se
agencia nas próprias infraestruturas do mundo – o Império tornando-se o próprio
meio onde atuamos (Tiqqun) – o ataque a tais bases não fica restrito a
bloqueios, sabotagens e interrupções à logística imperial. Da deserção ao “eu”
capturado e monetizado à fuga e indisponibilidade aos dispositivos de captura
cibernética; da defesa de territórios e proliferação guerreira de outras
temporalidades à derrubada de sátrapas, como Bolsonaro e asseclas. As bases de
sustentação do imperialismo no mundo contemporâneo tornaram-se móveis e
versáteis, cotidianizaram-se. O ataque a tais bases, em um sentido guevarista
extemporâneo do termo, exige a antecipação a tais movimentos, devir
cotidiano.
VII. Che Guevara foi capturado e morto por Rangers
norte-americanos e pelo Exército boliviano, em La Higuera em 9 de outubro de
1967. Para confirmar a morte do "principal inimigo do imperialismo
norte-americano nas Américas”, suas mãos foram amputadas e levadas para os EUA.
Em 5 de julho de 2008 uma escultura de Che criada por Féliz Durán foi inaugurada
em El Alto, populosa cidade acima de La Paz, em comemoração aos 80 anos do
guerrilheiro argentino assassinado na Bolívia. Desde 10 de novembro de 2019,
data do golpe de estado, juntas vecinales da região promovem protestos e
bloqueios. A logística que mantém a capital está bloqueada. Milhares de juntas
estão presentes em todo o país. As lutas insurgentes não se interrompem, pois
não são travadas apenas em prol da expulsão do colonizador. Se a regra é a
governamentalidade predatória, a rebeldia torna-se uma condição elementar de
existência comum. Rexistências.
imagem: Alberto Valdes (EFE)
[1] “Expulsos pela
dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de
suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela
manufatura emergente como a mesma rapidez como que fora trazido ao mundo. Por
outro lado, os que foram repentinamente arrancados de seus modos de vida
tampouco conseguiram se ajustar à disciplina da nova situação. Converteram-se
massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição,
mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o
surgimento, em toda a Europa ocidental, no final do séc. XV e ao longo do séc.
XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual
classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes
fora imposta, em vagabundos e paupers” MARX, K. O Capital. vol. I. Trad. Rubens
Enderle. São Paulo: Boitempo Editorial, p. 805-806.
[2] Op. Cit. p. 786. Marx falará de um implacável vandalismo
expropriatório, que hoje se dirige sobretudo aos povos originários: “(...) a
expropriação dos produtores diretos é consumada com o mais implacável
vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente
execráveis. A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada,
por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, com suas condições
de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na
exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre” Op. Cit. p. 831.
[3] “O verdadeiro
motor do capitalismo atual é o controle farmacopornográfico da subjetividade,
cujos produtos são a serotonina, o tecnosangue e os hemoderivados, a
testosterona, os antiácidos, a cortisona, o tecnoesperma, os antibióticos, o
estradiol, o tecnoleite, o álcool, o tabaco, a morfina,a insulina, a cocaína,
os óvulos vivos, o citrato de sildenalfil (viagra) e todo o complexo material e
virtual que participa da indução de estados mentais e psicossomáticos de
excitação, relaxamento e descarga, e também no controle total e onipotente.
Nessas condições, o dinheiro se torna uma substância psicotrópica significante
e abstrata. O sexo é o corolário do capitalismo e da guerra, o espelho da
produção.” PRECIADO, P. B. Texto Junkie. Sexo, drogas e
biopolítica na era farmacopornográfica. trad. Maria Paula Gurgel
Ribeiro. São Paulo: n-1 edições. p. 42.
[4] “Mas
é precisamente isso que, ao homem pré-capitalista, parece tão inconcebível e
enigmático, tão sórdido e desprezível. Que alguém possa tomar como fim de seu
trabalho na vida exclusivamente a ideia de um dia descer à sepultura carregando
enorme peso material em dinheiro e bens parece-lhe explicável tão-só como
produto de um impulso perverso: a auri sacra fames.” WEBER, Max. A Ética
protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos M. de Macedo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 63.