quarta-feira, 26 de março de 2008

O Intruso (III)

Mas, mesmo sendo a intrusão uma tentativa tosca de sutura do caos primordial e louco do mundo extenso irremediável, delimitação sedentária de tocas obscuras para o abrigar-se da covardia, anomalia frente ao devir ininterrupto e renovador do ser, ela, no parque temático da administração total forjada como forma de vida única no presente, tornou-se a regra suprema, o dever inabalável: Seja! Faça! Torne-se! Construímos aquários nos longínquos do oceano. Tornamo-nos presas fáceis, dóceis, domesticadas, dos poderes que, até isso!, já interiorizamos e corporificamos. Tal configuração (a despeito da abissal contingência que nos lançou até aqui) faz com que seja cada vez mais arriscada a opção do nomadismo. Amiúde o viajante correrá riscos efetivos (e não metafóricos) de ver a provisória tenda destruída e sua vida exterminada pelo mais banal dos indivíduos em qualquer esquina. Os dispositivos de controle prescindem hoje de aparatos solenes, institucionalizados. Qualquer cretino fará o trabalho sujo. Não precisará ser persuadido nem mesmo receber recompensas para isto.
Bastaria uma pequena olhadela pelo satélite: o terreno do mundo, no sentido literal do termo, está sitiado. Em seu lugar: terrenos domésticos e sedentarização. Espera-se a morte na plácida calma do minifúndio. Porém, há os deslocados, os sedentários sem casa, os Ulisses na busca por suas Ítacas. Os nômades, por seu turno, repudiam casas e Ítacas por chegar. Querem é andar por entre os lotes e escombros, arrebentar e pular cercas, embaralhar demarcações, dormir a céu aberto. Nem senhores, nem exilados Ulisses. São os raros.

terça-feira, 25 de março de 2008

O Intruso (II), Glosa.


Talvez aquilo que comumente chamamos de “próprio”, “individual”, não seja nada mais que a cega obstinação deste intruso. Obstinação no estabelecimento de um poder de ser, de propriedade: uma prótese de essência. Porém, este frágil e mitômano intruso, aquilo que os psicanalistas captarão como o ego, é um Prometeu desde sempre fadado ao insucesso. Se há uma propriedade do ser, uma “singularidade”, esta só se manifesta em um “substrato” de impropriedade, de alheamento, dispersão, de extravio. “Ser” é apenas assumir esta impropriedade com um próprio. Inessencialidade que não perde seu “não-caráter” de vagueza: expõe-se como mero estilo, manerie. Como dirá um sábio numa tonalidade quase zen “não um ser que é deste modo ou de outro, mas um ser que é o seu modo de ser”.


Imagem. Jacob Jordaens. "A prisão de Prometeu". Óleo sobre tela, c.1640, 245 x 178 cm. Museu Wallraf-Richartz, Colónia

sábado, 22 de março de 2008

O intruso


A intromissão me parece inevitável. Estamos sempre intrometidos. Somos intromissão. O desejo intrometido de sempre permanecer instalado no coração, no interior das coisas. Não queremos nunca o fora. Não podemos nos deixar levar por um pesar que nos carregue para fora de nós mesmos. É estranho. Parece-me que aquilo que outrora era "eu" não passa de cacos. Cacos de uma sujeito cheio de si. Este "eu" frágil e desajeitado é como uma redoma. Ele nos fecha, nos encerra num sentido. Sentimo-nos puro sentido de si. Intrometidos neste meio disforme - formado - que o "eu" carrancudo mascara. É estranho. A leveza de se deixar arrastar é inevitável. Vamos pra fora, saímos. É impossível firmar-se no centro, no suposto estável interior envidraçado que nos engloba. Saímos quase sempre, ainda que pretendamos o interior.
Que fraude é a nossa vida. Desde sempre "nela" nos intrometemos para dizer "nossa vida". Que difícil assumir, carregar o fardo da imanência constante. Somos esta merda que pensamos ser! Será?! Que facilidade para a fragilidade da nossa existência. Sim, torna-se fácil. Na verdade, a ilusão de fechamento que nos oferecemos é sempre a proposta da nossa frágil intromissão ao nosso "eu". A deriva é constante e extremamente angustiante, apesar de freqüentemente lançarmos nossas malditas âncoras de estabilidade. Parece-me, cada vez mais, que esta saída - fácil, mas às vezes nem tanto - é a intromissão número 1. Isso. Intrometemos nossa âncora no mar que deveria nos levar adiante, para um além-aquém constante e marcamos com nossos dejetos o nosso quintalzinho de mar. Assinamos na instabilidade das águas com nossa pena putrefata. Estagnamo-nos. É como o busto da praça sobre o qual defecam as aves.
Ainda assim, construímos nosso mundo como se outro não fosse possível. Marcamos com a insignia da impossibilidade tudo aquilo que só é possível que carreguemos como possibilidade. A possibilidade constante de ir, vagar, flanar torna-se o estanque impossível, presa fácil do poder. No áureo tempo do impossível, no qual até a vida torna-se "nossa" e impossível de ser vivida (apenas sobrevivida), não nos resta melhor sorte do que o confronto com o impossível, fazendo dele o possível de todo instante. Não programas que apagam a possibilidade instantânea em vista de um possível futuro, mas um agora pleno de possibilidade; a expiação já cumprida do tempo condenado e o esquecimento de todo pretenso tempo redimido - a plena constatação de nossa condição: somos intrusos.


sexta-feira, 14 de março de 2008

Trabalho final


Aos bandoleiros ainda por aqui...


Uma máquina de morte letal
Que me exponha ao absoluto eu
Prestes a se extinguir

No patíbulo: da forca da guilhotina ou da fogueira
Deixei os restos daquele transgressor
Que outrora seguia em meus devaneios

Está sepultado na poeira da estrada
Espalhado aos quatro cantos
Pelos ventos que cruzam o mundo

Apenas na morte e no esquecimento
Realizou seus obscuros desígnios
De travessias desmedidas

Agora queda io:
À espera fúnebre da máquina que me matará
Bovinamente covarde para a experiência do suicídio

O eu absoluto sem o bandoleiro
É névoa opaca suplicando pelo indolor desastre
Besta sacrifical na pira banal do cotidiano

Ordinariamente comum no não diverso
Cinzentamente descolado de todas as cores



Eis que alcanço minha meta-tanásica
É lenta, lógica, letal
Encontrei-a em minhas horas de lazer

É esta vida que levo
Desgraçadamente para o trabalho
Desgraçadamente em retorno do trabalho

Meu quinhão de suicídio diário
Meu beijo orgiástico nas deusas de Saturno
Morto que ainda vive, procria, diverte-se

Queda io: vaga incolor da nulidade burocrática
Flama tempestuosa que morreu inerme
Ficção de lei que degolou seu fora

Fora-da-lei é tão-somente zumbido choroso de vento
Na lei primordial de morte e desespero
Que se tornou meu túmulo mundano

Queda io: desfocada foto do nada que sou
Desfigurado boneco da organização soberana
Guardião zeloso do extermínio que tudo assola

Pira que queima eficaz e abstratamente...
Degola quase prazerosa...
Enquanto não me cai a cabeça:
Encontrei-as em meus dias sob o sol.

Encontrei-me em meus dias sob o sol:
Anjo da boa-nova do progresso
Servo pentecostal do Deus que se chama Nada
Nulidade vazia e contínua de meu espelho

Ainda louvarei o bandoleiro expurgado aos ventos
E a ele darei meu testemunho de memória
Merecerá uma estátua
E a merda dos pombos

Até que sobrevenha a Noite das noites
Dama de hálito pestilento.
A máquina trabalhou eficazmente!

Até lá também estarei aos ventos.

Se algo restar desse mundo.


(Mas que isso não passe de uma pilheriaprofecia)

domingo, 2 de março de 2008

Chronos


... o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo do espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória...



Raduan Nassar. Lavoura Arcaica. 3º Ed. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 99.
Foto: Roberto Linsker (da Exposição Mar de Homens).