segunda-feira, 14 de setembro de 2015
Estudo sobre o sonho I
Existo na forma selvagem
de uma pluma, de candura de vento
soprado do paraíso,
de danças de mulheres nuas
na história universal dos sonhos.
Existo tal qual cão solto
em pátio de luzes e sombras,
alegrias de vidas passadas
a preencher o mundo,
onde já não vivo.
Volto ao lugar do adeus
no voo das asas de um pássaro
e me encontro à beira da memória,
na fábula que um dia
era o nome da vida dos homens.
Imagem: Paul Gauguin. Hina te Fatou. 1893. Museum of Modern Art, New York
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
Adeus a Paulo L.
Toninho Vaz me contou que você morreu um tanto esquecido, meu velho. Abandonado por uma poetisa na fria Curitiba, sua verdadeira lenda se mantém apenas na memória dos velhos beberrões que ainda perambulam pelos bares sujos próximos da rodoferroviária. Não sei se há algum vivo, nem estes botecos, que antes eram muito mais sujos. Nem seu compadre Ivo está aí para afiançar estas histórias. Tudo isso antes de você mudar para Tibagi, onde terminou seus dias, talvez mirando os campos gerais. Bandido que sabia latim, você sempre esteve mais próximo de João Antônio que de Jaime Lerner.
Em um tempo em que o fracasso está fora de moda, sua imagem foi estilizada: seus óculos, seu bigode e roupas maneiras fazem a cabeça da moçada. O haikai sem o corte do samurai. A aura da transgressão sem a revolução da forma. O provincianismo, que você sempre demoliu, hoje é autossuficiente e presunçoso. É um tempo estranho de pastiches e bundões devidamente empacotados. Lucram com seu nome, ele está publicado em uma editora de peso, muito distante das edições artesanais que encalharam em seu sótão de madeira. Suas canções são cantadas em caros saraus e bares da moda, com caras cervejas artesanais da moda. Sem o Blindagem - a propósito, a banda continua, mesmo sem Ivo, em algum auditório mambembe do interior.
Adeus ao poeta da Curitiba oficial, o poeta da pedreira e do hipsterianismo. Que este cadáver seja enterrado.
Restam: a flor no asfalto do terminal Guadalupe, poucas casas de madeira, o último bar aberto na madrugada gelada, um assovio de vento na cruz do pilarzinho e uma vontade de lutar.
Imagem: Ovídio Vieira, 1983.
Imagem: Ovídio Vieira, 1983.
quarta-feira, 9 de setembro de 2015
Monograma XV - Jean-Luc Nancy
Lentamente, discretamente, o “impossível” se tornou uma categoria predominante de nosso pensamento a partir de um momento que podemos datar na virada do século passado [séc. XIX]. Em 1873 Rimbaud escreve “o Impossível” para falar de uma perda irreparável ocorrida nos “pântanos ocidentais”. Em 1899, depois do anúncio da condenação de Dreyfus, Zola escreve “estou no terror sagrado do homem que vê o impossível se realizar”. Entre o para sempre perdido e o demasiado real em que se crê, toda a obra de Proust compõe uma longa variação da aproximação e apreensão do impossível. Bataille, um pouco mais tarde, escreve que “toda vida profunda é carregada de impossível”. Esse fardo não é mais a gravidade pantanosa nem a espessura terrificante: ele tem o peso da profundidade, de uma profundidade que nenhum fundo encerra e tampouco sustenta. Uma profundidade leve, em suma, de uma leveza sem frivolidade. Nem drama, nem imprudência, mas um como ajustar a preocupação sem acalmá-la nem atormentá-la.
Eis como “impossível” não significa “não possível” (irrealizável) mas estranho à economia do possível e do impossível, do cálculo de uma (in)viabilidade, como se diz hoje em dia. O possível sempre é uma projeção extraída do real dado, diz Bergson. O “impossível” em relação a isso não acompanha o dado.
Exemplo: enquanto reivindicamos “um pai, uma mãe” para nos opor ao casamento para todos, acompanhamos o dado de uma suposta naturalidade; quando a favor desse casamento nos contentamos em convocar uma igualdade abstrata de direitos, remetemos a uma outra suposta naturalidade. De ambos os lados nos esquecemos de que se tratam de profundas transformações de sociedade e que, na história humana, as relações de parentesco tomaram e tomarão várias formas muito diferentes não endossadas por nenhuma “natureza” e que, portanto, em direito, nenhum “possível” nelas se delimita.
Os exemplos são numerosos tanto no que diz respeito à referência preguiçosa ao dado quanto à maneira – também preguiçosa ou mesmo partidária – a partir da qual escolhemos o que queremos considerar como “dado” (“natural” ou “divino”, “racional” ou “razoável”...). Podemos mensurar o possível e o impossível de um sistema de ensino no estado em que estava há cinquenta anos. Podemos mensurar o possível e o impossível de uma democracia em relação ao que representamos ter sido sua efetividade passada (Atenas, por exemplo...). Acreditamos mensurar o possível e o impossível em fontes de energia nas quantidades e nas formas dadas de seu consumo. Mensuramos o que nomeamos “humanismo” em relação ao que já carregou esse nome (e o que não o carregou?). E o próprio “homem”, homo sapiens sapiens, nós o imaginamos dado quando mal ele é buscado (o homem dos “direitos humanos”, por exemplo).
Pensar fora do possível é pensar o inédito, o inaudito – o que toda existência carrega com ela e que, entretanto, jamais é dado, depositado, seja para ser conservado ou para ser reformado. O mundo não é para ser mudado: ele está por ser criado.
É isso que muito bem disse Kamel Daoud, no Le Quotidien d’Oran, por ocasião da visita do presidente francês à Argélia: “A guerra é uma história de mortos. As desculpas são uma história de velhos. [...] E eu, eu sou uma história nova.”
Trad.: Vinícius N. Honesko
Imagem: Horts Faas. Criança carrega rifle com mãe próximo ao Palácio Bastilha em Oran, Argélia. 1962.
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