Entrevista de Giorgio a Franco Marcoaldi
Em que acreditamos? Quais são as crenças civis, religiosas, políticas, científicas sobre as quais se estrutura a sociedade? A resposta mostra-se particularmente difícil em um mundo como o nosso, o qual vê as crenças tradicionais – objeto de uma constante erosão – transformarem-se em substitutivas, com a consequente propagação das mais diversas formas de superstição. Ou ainda, pelo contrário, o triunfo de um ceticismo e de uma indiferença que beiram o niilismo.
Tentaremos tratar da questão "crer, crença" afrontando-a desde diversos pontos de vista. E, para isso, pediremos a ajuda de um filósofo italiano de fama internacional: Giorgio Agamben. "Em nossa cultura existem dois modelos de experiência da palavra. O primeiro modelo é de tipo assertivo: dois mais dois são quatro, Cristo ressuscitou no terceiro dia, os corpos caem segundo a lei da gravidade. Esse gênero de proposições é caracterizados pelo fato de que dizem respeito sempre a um valor de verdade objetivo, à dupla verdadeiro-falso. E podem ser submetidas a verificação graças a uma adequação entre palavras e fatos, enquanto o sujeito que as pronunciam é indiferente ao êxito.
Existe, no entanto, um outro e imenso âmbito da palavra, do qual parece que nos esquecemos e que remete, para usar a intuição de Foucault, à ideia de “veridição". Nele, valem outros critérios, que não respondem à separação dura entre verdadeiro e falso. Nele, o sujeito que pronuncia certa palavra se coloca em jogo naquilo que disse. Melhor ainda, o valor de verdade é inseparável de seu pessoal envolvimento."
O sentido profundo do crer deveria ser procurado especificamente nesse segundo modelo?
Certamente. Mesmo se, ao longo do tempo, o triunfo do primeiro modelo, o assertivo, tem de fato apagado o segundo. Causam-me risos os confrontos, hoje muito em voga, entre crentes e não-crentes: verdadeiros diálogos entre surdos, visto que padres e cientistas partilham de visões opostas em relação ao mesmo modelo de verdade. Pouco importa que se discuta sobre leis físicas ou teológicas, que naturalmente elidem-se entre si. Trata-se, em todo caso, de proposições assertivas. A confusão entre aquilo que se pode crer, esperar e amar e aquilo que somos obrigados a considerar verdadeiro, hoje, nos paralisa.
Quando teria sido apagado o segundo tipo de experiência com a palavra?
Na tradição do Ocidente, foi Aristóteles a afirmar que a filosofia deve se ocupar apenas das proposições que podem ser verdadeiras ou falsas. Ainda que existisse, e exista, uma outra experiência da palavra: a da promessa, da oração, do comando, da invocação, e que foi excluída da reflexão filosófica. Naturalmente, isso não significa que não tenha continuado a agir: o direito e a religião se fundam sobre ela.
Um exemplo?
O mais importante de todos: São Paulo, que ao definir a palavra da fé não faz nenhuma referência a critérios de verdade, mas fala da proximidade entre coração e lábios. É significativo que, exceto uma vez, ele sempre use a expressão, por ele inventada, "crer em Jesus Cristo” e não, como seria normal em grego, crer que Jesus é o filho unigênito de Deus etc.. A diferença é substancial. A Igreja, por meio de seus concílios, procurou fixar a fé em dogma, numa experiência de tipo assertivo. E assim desapareceu um traço fundamental da natureza humana, que exige uma fé estranha a uma lógica puramente factual. A verdadeira fé não adere a um princípio pré-estabelecido, e é singular que justamente a Igreja, que devia preservar essa ideia, tenha se esquecido dela. Daí a fórmula “Creio porque é absurdo”.
Quais são os reflexos negativos dessa lógica assertiva sobre nossa vida social?
Infinitos. Pense na ética: afirma-se que para agir bem é preciso dispor de um sistema de crenças pré-fixado. Assim, agiria bem apenas aquele que tem uma série de princípios a que deve se conformar. É o modelo kantiano, ainda imperante, que define a ética como dever de obedecer uma lei. Quando trabalhava sobre a ideia de “testemunho”, me tocou a história de uma moça que, submetida à tortura da Gestapo, refutou-se a revelar os nomes de seus companheiros. Perguntada, mais tarde, em nome de quais princípios tinha conseguido fazer isso, ela responde: “assim o fiz porque me agradava”. A ética não significa obedecer um dever, significa colocar-se em jogo: naquilo que se pensa, se diz e se crê.
Mesmo porque, ultrapassada uma crença na infalibilidade de certa lei, resta um campo de ruínas.
Cedo ou tarde todos têm crenças de tipo objetivo. Na verdade: as crenças políticas foram literalmente esmigalhadas e as teológico-religiosas se fossilizam em dogmas contraditórios. Quanto às científicas: elas acabam completamente sem relação com a vida ética dos indivíduos singulares.
Em Crer e não crer Nicola Chiaromonte formula uma pergunta seca: pode-se crer sozinho?
É uma pergunta pertinente e que eu formularia do seguinte modo: como é possível partilhar uma verdade ou uma fé que não sejam de tipo assertivo? Penso que isso aconteça nos territórios da existência onde nos colocamos em jogo de maneira pessoal. Se a veridição é relegada às margens e o único modelo de verdade e de fé se tornam a ciência e o dogma, então a vida se torna invivível. Daí a indiferença e o ceticismo generalizado, além da depressão social galopante. Apenas procedendo à contrapelo, procurando essa diversa experiência da palavra, é possível voltar à relação originária com a verdade, irredutível a qualquer institucionalização.
Deixo um exemplo: a ciência observa a passagem do primata ao homem falante unicamente em termos cognitivos, como se fosse apenas uma questão de inteligência e de volume cerebral. Mas não há apenas esse aspecto. A transformação deve ter sido tão gigantesca quanto também do ponto de vista ético, político, sensível. O homem não é apenas homo sapiens. É um animal que, de modo diverso dos outros viventes, os quais não parecem dar importância às suas linguagens, decidiu ir até o fundo no jogo da palavra. E daí nasceu a consciência, mas também a promessa, a fé, o amor que extrapolam a dimensão puramente cognitiva.
É ainda um caminho aberto?
O homem ainda não terminou de se tornar humano; a antropogênese está sempre em curso. Menandro escreveu: “como é gracioso – isto é, capaz de gratuidade – o homem quando é verdadeiramente humano". É essa gratuidade que devemos redescobrir. Ainda mais porque os modelos de crença que nos são propostos não mais nos persuadem. São, como dizia Chiaromonte, mantidos à força, com má-fé.
Tentemos traçar um perímetro do grupo dessas crenças mais genuínas, mesmo se subterrâneas, submersas.
Tomemos a política: por que, finalmente, não se interroga sobre a vida das pessoas? Não a vida biológica, a vida nua, que hoje está continuamente em questão nos debates, com frequência em vão, sobre a bioética, mas as diversas formas de vida, o modo que cada um se liga a um uso, a um gesto, a uma prática. Ainda: por que a arte, a poesia, a literatura, são museificantes e relegadas a um mundo à parte, como se fossem política e existencialmente irrelevantes?
Também o escritor russo Alexandr Herzen lamentava, a seu modo, o apagamento da experiência vital subjetiva: afirmando que cremos em tudo, exceto em nós mesmos.
Vivemos em sociedades habitadas por um Eu hipertrofiado, gigantesco, no qual, no entanto, ninguém, tomado de modo singular, pode se reconhecer. Seria preciso voltar ao último Foucault, quando refletia sobre o "cuidado de si”, sobre a “prática de si”. Hoje, é raríssimo encontrar pessoas que experimentem aquilo que Benjamin denominava como a droga que tomamos sozinhos: o encontro consigo mesmo, com as próprias esperanças, as próprias lembranças e esquecimentos. Nestes momentos, assiste-se a uma espécie de afastamento do Eu, acede-se a uma forma de experiência que é o exato contrário do solipsismo. Sim, penso que seria possível partir daí para repensar uma ideia diversa do crer: formas de vida, práticas de si, intimidades. Essas são as palavras-chave de uma nova política.
Disponível em:
http://www.lavocedifiore.org/SPIP/article.php3?id_article=5078&fbclid=IwAR0KkjNTe6VlB5ypoN5GNvuZX1aRdriWs-3n8oJ53vvWqvX7ScTqzByIZR0 Publicado originalmente no jornal La Repubblica, em 09 de fevereiro de 2011.
(Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Fra Angelico. Cristo no limbo (1441-1442). Convento de São Marcos, Florença