domingo, 18 de agosto de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XIV



Todas as vozes do mundo parecem entrar em minha cabeça a cada movimento raivoso dos braços de Jacqueline. O cello canta com uma voz que me diz coisas que eu talvez jamais poderia ter dito. É tudo muito claro, como nas cartas que, por vezes, um filho, confuso pelas respostas desajeitadas da mãe demente, tentava esclarecer do seu passado esquecido. Ou seja, nada brilha na memória, apenas um espaço em branco como que a ser preenchido por este cello, e apenas por este. A tensão do som, a harmonia e a melodia, o instante em que soa, esse irrepetível e, ao mesmo tempo, inesquecível que assola qualquer possibilidade de coerência deste parágrafo. Um susto, e nada mais. O espanto das letras que saltam como que a desenhar partituras ilegíveis que, com insistência, tento exprimir nestas malditas linhas. Minha condenação é a palavra percebida, e qualquer reduto de paz - o tão sonhado apanágio destes tempos sombrios - não é senão o viver a condenação sem a perceber. Procuro, em vão, neste inóspito quarto - como que numa leitura sem esperanças de didascálias que me indicam como encenar -, a matéria da vida, a razão do som que do cello de Jacqueline escuto sair incólume. Delírio, perdição na palavra, desgostos por ver o sol que se vai mais uma vez. Sem poder dizê-lo, ele, o sol, cubro-me das sombras da noite produzidas por estas palavras que me fazem calar, e, em silêncio, apenas ouço minha respiração ofegante. Mas, desafortunado, percebo que não há escapatória à pena da língua e mesmo essa brisa noturna é ensurdecedora...

Imagem: Hans Baldung Grien. O criado enfeitiçado. 1544. The National Gallery of Art, Washington.

domingo, 4 de agosto de 2013

Identidade sem pessoa



O desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano. Tal reconhecimento, de outro modo, é para ele tão essencial que, segundo Hegel, cada um, para obtê-lo, está disposto a colocar em jogo a própria vida. Não se trata, com efeito, apenas de satisfação ou de amor próprio: ao contrário, é somente por meio do reconhecimento dos outros que o homem pode constituir-se como pessoa.
Persona significa, na origem, “máscara”, e é por meio da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social. Assim, em Roma, todo indivíduo era identificado por um nome que exprimia o seu pertencimento a um gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua vez, definida pela máscara de cera do ancestral que toda família patrícia custodiava no átrio da própria casa. Daí a fazer da persona a “personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos ritos da vida social, foi um passo breve, e persona acabou por significar a capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre. Quanto ao escravo, assim como não tinha nem ancestrais, nem máscara, nem nome, não podia sequer ter uma “persona”, uma capacidade jurídica (servus non habet personam). A luta pelo reconhecimento é, portanto, luta por uma máscara, mas essa máscara coincide com a “personalidade” que a sociedade reconhece a cada indivíduo (ou com a “personagem” que, com a sua conivência às vezes reticente, ela faz dele).

Não surpreende que o reconhecimento da própria pessoa tenha sido por milênios o domínio mais significativo e cuidado com mais zelo. Os outros seres humanos são importantes e necessários antes de mais nada porque podem me reconhecer. Assim também o poder, a glória, as riquezas, a que os “outros” parecem ser tão sensíveis, têm sentido, em última análise, apenas em vista desse reconhecimento da identidade pessoal. Por certo é possível caminhar como incógnitos pelas ruas da cidade, vestidos como mendigos, como, segundo contam, amava fazer o califa de Bagdá, Hárún al-Rashíd; mas se não houvesse jamais um momento em que o nome, a glória, as riquezas e o poder fossem reconhecidos como “meus”, se, como certos santos recomendam fazer, eu vivesse toda a vida no não-reconhecimento, então também a minha identidade pessoal seria perdida para sempre.

Na nossa cultura, a “pessoa-máscara” não tem, entretanto, apenas um significado jurídico. Ela contribuiu também de modo decisivo à formação da pessoa moral. O lugar em que isso aconteceu foi, sobretudo, no teatro. E, também, a filosofia estoica, que modelou a sua ética sobre a relação entre o ator e a sua máscara. Tal relação é definida por uma dupla intensidade: por um lado, o ator não pode pretender escolher ou refutar o papel que o autor lhe designou; por outro, não pode nem mesmo identificar-se sem resíduos com ele. “Recorda”, escreve Epiteto, “que tu és como um ator no papel que o autor dramático quis te colocar; breve, se breve, longo, se longo. Se ele quiser que tu encenes um papel de mendigo, faça-o convenientemente. E faça o mesmo para um papel de estropiado, de magistrado, de simples particular. Escolher o papel não te diz respeito: mas encenar bem a pessoa [persona] que te foi designada, isso depende de ti” (Ench. XVII). E, todavia, o ator (como o sábio que o toma como paradigma) não deve identificar-se por completo com o seu papel, confundir-se com seu personagem. “Logo chegará o dia”, ainda adverte Epiteto, “em que os atores acreditarão que a sua máscara e os seus costumes [costumi] sejam eles próprios” (Diss. I, XXIX, 41).
Ou seja, a pessoa moral se constitui por meio de uma adesão e, conjuntamente, por uma separação em relação à máscara social: aceita-a sem reservas e, ao mesmo tempo, toma dela, quase de modo imperceptível, distâncias.
Talvez em nenhum lugar esse gesto ambivalente e, ao mesmo tempo, a separação ética que ele abre entre o homem e a sua máscara apareçam com tanta evidência como nas pinturas ou nos mosaicos romanos que representam o diálogo silencioso do ator com a sua máscara. O ator aí é representado em pé ou sentado diante da sua máscara, que segura na mão esquerda ou está colocada sobre um pedestal. A ligação idealizada e a expressão absorta do ator, que mantém fixo o olhar nos olhos cegos da máscara, testemunham o significado especial da sua relação. Esta atinge o seu limiar crítico – e, também, o seu ponto de inversão – no início da idade moderna, nos retratos dos atores da Commedia dell’Arte: Giovanni Gabrielli, chamado Il Sivello, Domenico Biancolelli, chamado Arlecchino, Tristano Martinelli, também ele Arlecchino. Agora o ator não olha mais a sua máscara, esta que, pelo contrário, segura com a mão e exibe; e a distância entre o homem e a “pessoa”, tão apagada nas representação clássicas, é acentuada pela vivacidade do olhar que ele dirige decidida e interrogativamente em direção ao espectador.

Na segunda metade do século XIX, as técnicas de polícia conhecem um desenvolvimento inesperado, que implica uma transformação decisiva do conceito de identidade. Esta não é mais, então, algo que diga respeito essencialmente ao reconhecimento e ao prestígio social da pessoa, mas responde à necessidade de assegurar um outro tipo de reconhecimento, aquele, feito por parte do agente de polícia, do criminoso reincidente. Não é fácil para nós, habituados desde sempre a saber-nos registrados com precisão em cartórios e fichários, imaginar quão árduo podia ser a averiguação da identidade pessoal em uma sociedade que não conhecia a fotografia nem os documentos de identidade. É fato que, na segunda metade do século XIX, justo isso se torna o problema principal daqueles que se concebiam como os “defensores da sociedade” diante do aparecimento e da difusão crescente da figura que parece constituir a obsessão da burguesia oitocentista: o “delinquente habitual”. Tanto na França quanto na Inglaterra, foram votadas leis que distinguiam claramente entre o primeiro crime, cuja pena era a prisão, e a reincidência, que era punida, por sua vez, com a deportação para as colônias. A necessidade de poder identificar com certeza a pessoa presa por um delito torna-se, nesse período, uma condição necessária para o funcionamento do sistema judiciário.
Foi tal necessidade que levou um obscuro funcionário do comissariado de polícia de Paris, Alphonse Bertillon, a colocar em funcionamento, por volta do fim dos anos setenta, o sistema de identificação dos delinquentes baseado na medição antropométrica e na fotografia sinalética, que, em poucos anos, torna-se célebre no mundo inteiro como Bertillonage. Quem quer que, por alguma razão, fosse parado ou preso, era de imediato submetido a um conjunto de medições do crânio, dos braços, dos dedos das mãos e dos pés, das orelhas e da face. Logo em seguida, o indivíduo suspeito era fotografado tanto de frente quanto de perfil, e as duas fotografias eram coladas na “folha Bertillon”, que continha todos os dados úteis para a identificação, segundo o sistema que o seu inventor tinha batizado como portrait parlé.

Nos mesmos anos, um primo de Darwin, Francis Galton, desenvolvendo os trabalhos de um funcionário da administração colonial inglesa, Henry Faulds, começou a trabalhar em um sistema de classificação das impressões digitais, que permitiria a identificação dos criminosos reincidentes sem possibilidade de erro. Curiosamente, Galton era um convicto apoiador do método antropométrico-fotográfico de Bertillon, cuja adoção na Inglaterra defendia; mas sustentava que o levantamento das impressões digitais era particularmente adaptado aos nativos das colônias, cujos traços físicos tendiam à confusão e pareciam iguais aos olhos de um europeu. Um outro âmbito em que o procedimento teve uma precoce aplicação foi a prostituição, pois se sustentava que os procedimentos antropométricos implicassem uma promiscuidade constrangedora em relação às criaturas do sexo feminino, em quem as longas cabeleiras tornavam, por outro lado, mais difícil a medição. É provável que tenham sido razões desse tipo, de algum modo ligadas a preconceitos raciais e sexuais, a retardar a aplicação do método de Galton para além do âmbito colonial ou, no caso dos Estados Unidos, dos cidadãos afro-americanos ou de origem oriental. Mas já nos primeiros vinte anos do século XX o sistema se difunde por todos os estados do mundo e, a partir dos anos vinte, tende a substituir ou a ser concomitante ao Betillonage.
Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não era mais função da “pessoa” social e do seu reconhecimento, mas dos dados biológicos que com aquela não podiam ter nenhuma relação. O homem retirou de si a máscara, na qual se fundara por séculos a sua possibilidade de ser reconhecido, para entregar a sua identidade a algo que lhe pertence de modo íntimo e exclusivo, mas com o qual não pode de modo algum identificar-se. Não são mais os “outros”, os meus semelhantes, os meus amigos ou inimigos, a garantir o reconhecimento, e nem mesmo a minha capacidade ética de não coincidir com a máscara social que, no entanto, assumi: a definir a minha identidade e a minha possibilidade de ser reconhecido agora estão os arabescos insensatos que o meu polegar tingido deixou sobre uma folha em um comissariado de polícia. Isto é, algo de que não sei absolutamente nada e com o qual, e do qual, não posso em nenhum caso identificar-me nem tomar distância: a vida nua, um puro dado biológico.

As técnicas antropométricas foram pensadas para os delinquentes e permaneceram por longo tempo seu privilégio exclusivo. Ainda em 1943, o Congresso dos Estados Unidos rejeitou o Citizen Identification Act, que tinha como objetivo instituir para todos os cidadãos carteiras de identidade com as impressões digitais. Mas é por lei, que quer que aquilo que foi inventando para os criminosos, os estrangeiros e os judeus, que, mais cedo ou mais tarde, as técnicas que tinham sido elaboradas para os reincidentes serão aplicadas a todos os seres humanos enquanto tais, isto é, serão, no curso do século XX, estendidas a todos os cidadãos. A foto sinalética, por vezes acompanhada também pela impressão digital, torna-se então parte integrante do documento de identidade (uma espécie de “papel Bartillon” condensada) que estava de maneira gradativa se tornando obrigatório em todos os estados do mundo.
Mas o passo extremo foi cumprido apenas nos nossos dias e está, até agora, em plena realização. Graças ao desenvolvimento de tecnologias biométricas que podem revelar rapidamente as impressões digitais ou a estrutura da retina ou da íris por meio de scanners ópticos, os dispositivos biométricos tendem a sair dos comissariados de polícia e dos escritórios de imigração para penetrar a vida cotidiana. A entrada dos restaurantes estudantis, dos colégios e até mesmo das escolas elementares (as indústrias do setor biométrico, que conhecem atualmente um frenético desenvolvimento, recomendam que se habituem os cidadãos desde pequenos a esse tipo de controle) em alguns países já são reguladas por um dispositivo biométrico óptico, no qual o estudante coloca distraidamente a mão. Na França, e em todos os países europeus, prepara-se a nova carteira de identidade biométrica (INES), munida de um microchip eletrônico que contém os elementos de identificação (impressões digitais e fotografia numérica) e um copião de firma para facilitar as transações comerciais. E, na irrefreável deriva governamental do poder político, em que convergem curiosamente tanto o paradigma liberal como o estatístico, as democracias ocidentais começam a organizar o arquivo do DNA de todos os cidadãos, com fins tanto de segurança e de repressão dos crimes quanto de gestão da saúde pública.

De vários lados se chamou a atenção sobre os perigos ínsitos em um controle absoluto, e sem limites, por parte de um poder que disponha dos dados biométricos e genéticos dos seus cidadãos. Nas mãos de um tal poder, o extermínio dos judeus (e qualquer outro genocídio imaginável), que foi cumprido com bases documentárias incomparavelmente menos eficazes, teria sido total e velocíssimo.
Ainda mais grave, pois de todo inobservadas, são as consequências que os processos de identificação biométrica e biológica têm sobre a constituição do sujeito. Que tipo de identidade pode se construir sobre dados meramente biológicos? Por certo não uma identidade pessoal, que era ligada ao reconhecimento dos outros membros do grupo social e, ao mesmo tempo, à capacidade do indivíduo de assumir a máscara social sem entretanto a ela deixar-se reduzir. Se a minha identidade é agora determinada, em última análise, por fatos biológicos, que não dependem de modo algum da minha vontade e sobre os quais não tenho nenhum controle, a construção de algo como uma ética pessoal torna-se problemática. Que relações posso instituir com as minhas impressões digitais ou com meu código genético? Como posso assumi-los e, ao mesmo tempo, tomar deles certas distâncias? A nova identidade é uma identidade sem pessoa, em que o espaço da ética, que estávamos habituados a conceber, perde o seu sentido e deve ser repensado por inteiro. E enquanto isso não acontecer, é lícito esperar um colapso generalizado dos princípios éticos pessoais que regeram a ética ocidental por séculos.

A redução do homem à vida nua é hoje a tal ponto um fato cumprido, que ela já está na base da identidade que o estado reconhece aos seus cidadãos. Como o deportado de Auschwitz não tinha mais nome nem nacionalidade, e já era apenas o número que em seu braço tinha sido tatuado, assim o cidadão contemporâneo, perdido na massa anônima e equiparado a um criminoso em potência, é definido apenas pelos seus dados biométricos e, em última instância, por uma sorte de fado antigo tornando ainda mais opaco e incompreensível: o seu DNA. E, todavia, se o homem é aquele que sobrevive indefinidamente ao homem, se ainda há sempre humanidade além do inumano, então uma ética deve ser possível também no extremo limiar pós-histórico, ao mesmo tempo hilário e terrificante, em que a humanidade ocidental parece estar encalhada. Como todo dispositivo, também a identificação biométrica captura, com efeito, um desejo mais ou menos inconfessado de felicidade. Nesse caso, trata-se da vontade de liberar-se do peso da pessoa, da responsabilidade, tanto moral quanto jurídica, que ela carrega consigo. A pessoa (tanto na sua veste trágica como na cômica) é também o portador da culpa, e a ética que ela implica é necessariamente ascética, pois fundada sobre uma cisão (do indivíduo em relação a sua máscaras, da pessoa ética em relação à jurídica). É contra essa cisão que a nova identidade sem pessoa faz valer a ilusão não de uma unidade, mas de uma multiplicação infinita das máscaras. No ponto em que fixa o indivíduo numa identidade puramente biológica e associal, ela lhe promete deixar assumir, na internet, todas as máscaras e todas as segundas e terceiras vidas possíveis, e nenhuma destas jamais poderá a ele pertencer de modo próprio. A isso se acrescenta o prazer, desenvolto e quase insolente, de ser reconhecido por uma máquina, sem o fardo das implicações afetivas que são inseparáveis do reconhecimento operado por um outro ser humano. Quanto mais o cidadão metropolitano perde a intimidade com os outros, quanto mais ele se torna incapaz de olhar os seus semelhantes nos olhos, tanto mais consoladora é a intimidade virtual com o dispositivo, o qual aprendeu a escrutar-lhe o mais fundo da retina; quanto mais desaparece toda identidade e toda aparência real, tanto mais gratificante é ser reconhecido pela Grande Máquina, nas suas infinitas e minuciosas variantes, desde a catraca de ingresso no metrô até o caixa rápido, da câmera que, benevolente, observa-o enquanto entra no banco ou caminha pela praça, ao dispositivo que lhe abre a porta da sua garagem, e até mesmo a futura carteira de identidade obrigatória que o reconhecerá sempre e onde quer que esteja, de modo inexorável, por aquilo que é. Eu existo se a Máquina me reconhece ou, ao menos, vê-me; eu estou vivo se a Máquina que não conhece sono ou vigília, e está eternamente desperta, garante que eu vivo; eu não sou esquecido se a Grande Memória registrou os meus dados numéricos ou digitais.

Que tal prazer e tais certezas sejam postiças ou ilusórias é evidente, e os primeiros a saber disso são por certo aqueles que experimentam isso cotidianamente. O que significa, com efeito, ser reconhecidos, se o objeto de reconhecimento não é uma pessoa, mas sim um dado numérico? E por trás do dispositivo que parece me reconhecer porventura não estão ainda outros homens, que, na realidade, não querem me reconhecer, mas apenas me controlar e me acusar? E como é possível comunicar-se não por um sorriso ou por um gesto, não com polidez ou reticência, mas por meio de uma identidade biológica?
Entretanto, segundo a lei que quer que na história não aconteçam retornos a condições perdidas, devemos nos preparar sem lamentos nem esperanças a procurar, para além tanto da identidade pessoal quanto da identidade sem pessoa, aquela nova figura do humano – ou, talvez, simplesmente do vivente –, aquele rosto além tanto da máscaras quanto da facies biométrica que não conseguimos ainda ver, mas cujo pressentimento, por vezes, faz-nos estremecer inadvertidamente tanto nos nossos turbamentos como nos nossos sonhos, tanto nas nossas inconsciências como na nossa lucidez. 

Giorgio Agamben. Identità senza persona. In.: Nudità. Roma: Nottetempo, 2008. pp. 71-82. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Domenico Fetti. Retrato de um ator. 1623. Hermitage, São Petesburgo.     

Pequeno parágrafo sobre ficções



O abandono divino fez-se ouvir como nunca antes, desde o seio de pedras mudas até os rumores do vento por entre os galhos secos das árvores no inverno. Nenhuma perspectiva de redenção, apenas o reconhecer-se no rosto opaco de um velho que há pouco, em sonho, jazia inerte, perdido pelos caminhos da demência: tal era a sensação com a qual, logo pela manhã, se deparara. Toda aquela sorte de esperança mítica que um poeta certa vez disse ser o viver - "viver é insistir em realizar uma lembrança"-, era então motivo de desdém. Pensava naqueles olhos que, com insistência, fitara-o durante o sonho e, agora, motivavam sua angustiada e séria sensação de abandono. Qualquer sentido parecia-lhe interditado, assim como ao velho, que o acompanhara na noite, eram tolhidas as palavras, a possibilidade de sair da opacidade. Fechando os olhos, tentava se concentrar no rumor do abandono divino para, quiçá, poder, pelo menos por um instante, viver a pura ficção que é o viver. Buscava, portanto, naquela silenciosa manhã de domingo, seus inimigos mais íntimos: as petrificadas imagens do passado (supostamente perdido), seu caráter, os moinhos dos ventos do Sentido, todas as figuras que eram, de uma maneira ou de outra, as malfadadas realizações de uma lembrança, sua porta de entrada na tragédia (uma espécie de olhar culpado de um Édipo que, incapaz de lidar com a realização, cega-se ainda com esperanças). Queria encará-los, desafiá-los, para, talvez, poder viver o desvario das palavras sem sentido sem o medo da imagem do velho, sem a esperança da superação das demências, sem perspectivas de realização das lembranças. Uma vida intempestiva: eis o que se lhe mostrara como o único modo de afrontar o silêncio e, porventura, conseguir abrir os olhos e respirar, condenado mas sem culpa, as ficções possíveis de uma vida.   

Imagem: Émile Bernard. Madaleine na floresta do amor. 1888. Musée d'Orsay, Paris.