terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Réveiller!


domestica-se
a débil paixão 
cultivam-se em caixotes 
minúsculas esperas 
congelam-se em alguma geladeira doméstica 
aquelas boas lembranças prestes a se decompor 
nutritiva matéria podre
curtida na covardia do presente  
ganha-se um sabor insosso 
palatável apenas com o ralo sumo da espera  
e do tempero agridoce de um casamento e dígitos na conta bancária 
afinal, ele outrora criara esperas demasiadas! 
hoje amadureceu, cultiva apenas um jardim 
o que exige cortar cogumelos venenosos 
afastar estranhos, matar insetos 
cercar milimetricamente
obedecer a um Deus 

a erosão infinita do abismo  
já levou a casa do vizinho   


    

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

As línguas e os povos



Giorgio Agamben


Os ciganos fazem sua aparição na França no curso das primeiras décadas do séc. XV, em um período de guerras e de desordens, na forma de bandos que afirmavam ser provenientes do Egito e eram guiados por indivíduos que se autoproclamavam duques do Egypto parvo ou condes do Egipto minori:
“Datam de 1419 os primeiros relatos sobre grupos de ciganos no território da França atual (...) em 22 de agosto de 1419 são vistos no vilarejo de Châtillon-en-Dombe, um dia depois o grupo alcança Saint-Laurent de Mâcon, a seis léguas de distância, sob as ordens de um certo André, duque do pequeno Egito (...) Em julho de 1422, um bando ainda mais numeroso dirige-se para a Itália (...) Em agosto de 1424, os ciganos chegam pela primeira vez às portas de Paris, após atravessarem a França em guerra (...) A capital está ocupada pelos ingleses, e toda a Île de France está infestada de bandidos. Alguns grupos de ciganos, guiados por duques ou condes do Egypto parvo ou do Egypto minori atravessam os Pirineus e seguem até Barcelona.” (François de Vaux de Foletier, Les Tsiganes dans l’ancienne France).      
É mais ou menos no mesmo período que os historiadores datam o nascimento do argot, como língua secreta dos coquillards e de outros bandos de malfeitores que prosperaram nos anos tormentosos que assinalaram a passagem da sociedade medieval ao Estado moderno:
“É certo, como se disse, que os chamados coquillards usam entre eles uma língua secreta [language exquis], que outras pessoas não conseguem entender sem ensinamento, e que por meio dela conseguem reconhecer todos os membros dos referidos Coquille.” (Depoimento de Perrenet no processo dos coquillards).
Simplesmente colocando em paralelo as fontes relativas a estes dois fatos, Alice Becker-Ho conseguiu realizar o projeto benjaminiano de escrever uma obra original composta quase inteiramente de citações. A tese do livro é aparentemente anódina: como indica o subtítulo (“Um elemento negligenciado nas origens do argot das classes perigosas”), trata-se de demonstrar a derivação de uma parte do léxico do argot do rom, a língua dos ciganos. Um breve, mas essencial, “glossário” ao final do volume elenca os termos argóticos [argoticis] que “possuem um eco evidente, porém não de origem certa, dos dialetos ciganos da Europa.”
Esta tese, que não ultrapassa o âmbito da sociolinguística, implica, porém, outra mais significativa: como o argot não é propriamente uma língua, mas uma gíria*, então os ciganos não seriam um povo, mas os últimos descendentes de uma classe de foras da lei de uma outra época:        
“Os ciganos são nossa medievalidade conservada; uma classe perigosa de outra época. Os antigos termos ciganos dos diversos argot são como os ciganos enquanto tais, que desde suas primeiras aparições, passaram a adotar o patronímico dos países que atravessavam – gadjesko nav – perdendo de algum modo sua identidade no papel, à vista de todos aqueles que supunham saber ler.” 
Isto explica por que os estudiosos jamais conseguiram aclarar as origens dos ciganos, tampouco conhecer verdadeiramente sua língua e seus costumes: a enquete etnográfica torna-se impossível pelo simples fato de que seus entrevistados mentem sistematicamente.
Por que esta hipótese, certamente original, mas que trata de uma realidade popular e linguística inteiramente marginal, é importante? Benjamin escreveu certa vez que nos momentos cruciais da história o golpe decisivo deve ser dado com a mão esquerda, atingindo-se os pinos e articulações ocultas da máquina do saber social. Ainda que Alice Becker-Ho mantenha-se discretamente nos limites de sua tese, é provável que ela esteja perfeitamente consciente de que depositou, em um ponto nodal de nossa teoria política, uma mina pronta para ser detonada. Não temos, de fato, a mínima ideia do que seja um povo e nem do que seja uma língua (é evidente que os linguistas podem construir uma gramática, ou seja, aquele conjunto unitário dotado de propriedades descritíveis que se chama língua, apenas supondo o factum loquendi, isto é, o puro fato de que os homens falam e se entendem entre si, que resta inacessível à ciência), contudo, toda nossa cultura política se funda no colocar em relação estas duas noções. A ideologia romântica, que deliberadamente operou este agenciamento, e deste modo, influenciou amplamente tanto a linguística moderna como a teoria política ainda dominante, buscou esclarecer algo obscuro (o conceito de povo) com outra coisa ainda mais obscura (o conceito de língua). Através da correspondência biunívoca que assim se instituiu, duas entidades culturais contingentes e com contornos indefinidos se transformaram em organismos quase naturais, dotados de características e leis próprias e necessárias. Pois, assim como a teoria política deve pressupor sem poder explicar o factum pluralitatis (chamemos assim, com um termo etimologicamente ligado ao de populus, o puro fato de que os homens formam uma comunidade), também a linguística deve pressupor sem interrogar o factum loquendi, a simples correspondência destes dois fatos funda o discurso político moderno. 
A relação cigano-argot põe radicalmente em questão esta correspondência no instante mesmo no qual a reencena parodicamente. Os ciganos estão para o povo como o argot está para a língua; mas, no breve instante em que a analogia se mantém, lança um relampejo sobre a verdade que a correspondência língua-povo destinava-se secretamente a encobrir: todos os povos são bandos e “coquilles”, todas as línguas são gírias e “argots”.                             
Não se trata aqui de avaliar a correção científica desta tese, mas muito mais de não deixar escapar sua potência libertadora. Para aqueles que têm sido capazes de manter os olhos fixos nela, as máquinas perversas e tenazes que governam nosso imaginário político perdem imediatamente seu poder. Que se trate, afinal, de um imaginário, deve agora ser evidente para todos, quando a ideia de povo perdeu desde muito toda a realidade substancial. Mesmo admitindo-se que esta ideia não tinha tido jamais um conteúdo real, para além do insípido catálogo de características elencadas pelas velhas antropologias filosóficas, ela teve seu sentido esvaziado por este mesmo Estado moderno que se apresentava como seu guardião e a sua expressão: malgrado o falatório dos bem intencionados, atualmente o povo não é nada mais que o suporte vazio da identidade estatal e unicamente como tal obtém reconhecimento.  
Para quem ainda nutre alguma dúvida sobre o assunto, uma rápida observação do que ocorre em nosso entorno será instrutiva: se as potências mundiais pegam em armas para defender um Estado sem povo (o Kwait), os povos sem Estado (curdos, armênios, palestinos, bascos, judeus da diáspora) podem, ao contrário, ser oprimidos e exterminados impunemente, para que fique claro que o destino de um povo só pode ser uma identidade estatal e que o conceito de povo apenas tem sentido se recodificado naquele de cidadania. Aqui, também, o curioso estatuto das línguas sem dignidade estatal (catalão, basco, gaélico, etc.), que os linguistas tratam naturalmente como línguas, mas que de fato funcionam muito mais como gírias ou dialetos e assumem quase sempre um significado imediatamente político. O círculo vicioso de língua, povo e Estado revela-se particularmente evidente no caso do sionismo. Um movimento que pretendia a constituição em Estado do povo por excelência (Israel) se vê obrigado, por isso mesmo, a reencenar uma língua puramente cultual (o hebraico) que já havia sido substituída no uso cotidiano por outras línguas e dialetos (o ladino, o ídiche). Mas, aos olhos dos guardiões da tradição, esta mesma reencenação da língua sacra se apresentava como uma grotesca profanação, da qual a língua ainda se vingaria (“Nós vivemos em nossa língua”, escrevia, de Jerusalém, Scholem a Rosenzweig em 26 de dezembro de 1926, “como cegos que caminham sobre um abismo, ... essa língua é grávida de futuras catástrofes, virá o dia em que ela se voltará contra todos aqueles que a falam”).
A tese segundo a qual todos os povos são ciganos e todas as línguas gírias dissipa este círculo vicioso e permite vislumbrar de um modo novo aquelas diversas experiências de linguagem que periodicamente afloram em nossa cultura, apenas para causarem mal-entendidos e serem reconduzidas à concepção dominante. Que outra coisa faz Dante, no De vulgari eloquentia, ao narrar sobre o mito de Babel, dizendo que cada categoria de construtores da torre recebeu uma língua própria incompreensível para os demais, e que de cada uma destas línguas babélicas derivam as línguas faladas no seu tempo, se não apresentar todas as línguas da terra como gírias (a língua dos mistérios não seria a figura por excelência da gíria?)? E contra esta íntima marginalidade [gergalitá] de todas as línguas, ele não sugere (segundo uma secular falsificação de seu pensamento) o antídoto de uma gramática e uma língua nacional, mas uma transformação da experiência mesma da palavra, a qual chama “volgari illustre”, uma espécie de emancipação [affrancamento]  – não gramatical, mas poético e político das gírias mesmas em direção ao factum loquendi.               
Assim, o trobar clus dos trovadores provençais é, enquanto tal, de qualquer forma, a transformação da língua d’oc em uma gíria secreta (não muito diversamente do que fez Villon, escrevendo no argot dos coquillards algumas de suas baladas); mas aquilo de que fala esta gíria, nada mais é, então, que uma figura de linguagem, assinalado como lugar e objeto de uma experiência de amor.  E, tratando de tempos mais recentes, não seria de estranhar que para Wittgenstein a experiência da pura existência da linguagem (do factum loquendi) poderia corresponder à ética, e que Benjamin confiasse a uma “pura língua”, irredutível a uma gramática e a um idioma particular, a figura da humanidade salva.
Se as línguas são as gírias que cobrem a pura experiência da linguagem, assim como os povos são as máscaras, mais ou menos exitosas, do factum pluralitatis, então nossa tarefa certamente não pode ser a construção destas gírias em gramáticas tampouco a recodificação dos povos em identidade estatais; ao contrário, somente rompendo em um ponto qualquer o nexo existência da linguagemgramática (língua) – povo – Estado, o pensamento e a práxis estarão à altura de seu tempo. As formas desta interrupção, nas quais o factum da linguagem e o factum da comunidade emergem por um instante à luz, são múltiplas e variam segundo os tempos e as circunstâncias: reativação de uma gíria, trobar clus, pura língua, uso minoritário de uma língua gramatical... De qualquer maneira, é claro que a aposta em jogo não é simplesmente linguística ou literária, mas, sobretudo política e filosófica.



Extraído de Mezzi senza fine: notte sulla politica. Turim: Bollati Boringuieri, 1996. pp. 54-59. Tradução: Jonnefer Barbosa

Imagem: Ara Güler, Istambul. http://www.araguler.com.tr/ 
   
(1) Optamos por traduzir o termo italiano gergo por gíria, ao contrário de jargão (tradução mais literal), por entender que, além de conservar o sentido, ressalta a dimensão informal e política que a palavra também possui em português.       

domingo, 29 de dezembro de 2013

Carta para a destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, sinto que as cartas de outrora nada mais foram do que vãs tentativas de mapear o impossível. Insisto em escrevê-las, porém. Inútil, mas, como a vida, o resto que me resta. Danço com palavras nas pontas de meus pensamentos - também eles, matérias vivas de palavras -, mas nada me coloca em movimento pelas trilhas que traço nestes mapas. Aqui vai mais um: incompreensível e indigesto tal como nosso último entreolhar-se. Esta carta cheira a ranço! Não pelos detalhes faltantes que poderiam indicar algum caminho em que sua impossibilidade se mostraria possível, mas porque tudo falta. Não há vida nesses olhares perdidos das moças que por mim passam, não há lugar onde reler as cartas que de algum modo um dia nos levaram a paragens estranhas, não há palavras nos lábios dessa desconhecida que me fita com olhos arredios. Uma série de ausências que só me faz perceber, de modo ainda mais pungente, a sua impossibilidade. Aquilo que um dia foi sorriso, ao notar o detalhe quase imperceptível de ternura nos jogos de palavra, agora falta; aquilo que, dentro do peito, se debatia em infinitos desejos quando da chegada da missiva, agora falta. A sensação incômoda da sua presença tão ausente, hoje, torna-se a condutora torpe desse fio de pensamento que se esgarça nesta que, talvez, é minha última tentativa de traçar algum caminho. Mas não posso segurar o cheiro lúgubre do ranço que emana a cada palavra que escrevo, querida. Não suporto a alvura do papel, porém a podridão das letras também é inevitável. Vivo este paradoxo, querida, sabendo que tão infame como sua impossibilidade é a minha insistência e inutilidade. Gostaria de escrever: "salve, para nunca mais", mas quiçá termine assim, mais uma vez, a condicionar o que em palavras é incondicionado: o silêncio que assombra toda palavra.

Do seu remetente impossível.

Imagem: Johannes Veermer. Mulher em azul lendo uma carta (detalhe). 1663-4.  Rijksmuseum, Amsterdam