Giorgio Agamben
Os ciganos fazem sua aparição
na França no curso das primeiras décadas do séc. XV, em um período de guerras e
de desordens, na forma de bandos que afirmavam ser provenientes do Egito e eram
guiados por indivíduos que se autoproclamavam duques do Egypto parvo ou condes do Egipto
minori:
“Datam de 1419 os primeiros relatos
sobre grupos de ciganos no território da França atual (...) em 22 de agosto de
1419 são vistos no vilarejo de Châtillon-en-Dombe, um dia depois o grupo
alcança Saint-Laurent de Mâcon, a seis léguas de distância, sob as ordens de um
certo André, duque do pequeno Egito (...) Em julho de 1422, um bando ainda mais
numeroso dirige-se para a Itália (...) Em agosto de 1424, os ciganos chegam
pela primeira vez às portas de Paris, após atravessarem a França em guerra
(...) A capital está ocupada pelos ingleses, e toda a Île de France está
infestada de bandidos. Alguns grupos de ciganos, guiados por duques ou condes
do Egypto parvo ou do Egypto minori atravessam os Pirineus e
seguem até Barcelona.” (François de Vaux de Foletier, Les Tsiganes dans l’ancienne France).
É mais ou menos no mesmo
período que os historiadores datam o nascimento do argot, como língua secreta dos coquillards
e de outros bandos de malfeitores que prosperaram nos anos tormentosos que
assinalaram a passagem da sociedade medieval ao Estado moderno:
“É certo, como se disse, que
os chamados coquillards usam entre
eles uma língua secreta [language exquis],
que outras pessoas não conseguem entender sem ensinamento, e que por meio dela
conseguem reconhecer todos os membros dos referidos Coquille.” (Depoimento de Perrenet no processo dos coquillards).
Simplesmente colocando em
paralelo as fontes relativas a estes dois fatos, Alice Becker-Ho conseguiu
realizar o projeto benjaminiano de escrever uma obra original composta quase
inteiramente de citações. A tese do livro é aparentemente anódina: como indica
o subtítulo (“Um elemento negligenciado nas origens do argot das classes perigosas”), trata-se de demonstrar a derivação
de uma parte do léxico do argot do rom, a língua dos ciganos. Um breve, mas
essencial, “glossário” ao final do volume elenca os termos argóticos [argoticis] que
“possuem um eco evidente, porém não de origem certa, dos dialetos ciganos da
Europa.”
Esta tese, que não ultrapassa
o âmbito da sociolinguística, implica, porém, outra mais significativa: como o argot não é propriamente uma língua, mas
uma gíria*, então os ciganos não seriam um povo, mas os últimos descendentes de uma classe
de foras da lei de uma outra época:
“Os ciganos são nossa
medievalidade conservada; uma classe perigosa de outra época. Os antigos termos
ciganos dos diversos argot são como
os ciganos enquanto tais, que desde suas primeiras aparições, passaram a adotar
o patronímico dos países que atravessavam – gadjesko
nav – perdendo de algum modo sua identidade no papel, à vista de todos
aqueles que supunham saber ler.”
Isto explica por que os
estudiosos jamais conseguiram aclarar as origens dos ciganos, tampouco conhecer
verdadeiramente sua língua e seus costumes: a enquete etnográfica torna-se
impossível pelo simples fato de que seus entrevistados mentem sistematicamente.
Por que esta hipótese,
certamente original, mas que trata de uma realidade popular e linguística
inteiramente marginal, é importante? Benjamin escreveu certa vez que nos
momentos cruciais da história o golpe decisivo deve ser dado com a mão
esquerda, atingindo-se os pinos e articulações ocultas da máquina do saber
social. Ainda que Alice Becker-Ho mantenha-se discretamente nos limites de sua
tese, é provável que ela esteja perfeitamente consciente de que depositou, em
um ponto nodal de nossa teoria política, uma mina pronta para ser detonada. Não
temos, de fato, a mínima ideia do que seja um povo e nem do que seja uma língua
(é evidente que os linguistas podem construir uma gramática, ou seja, aquele
conjunto unitário dotado de propriedades descritíveis que se chama língua,
apenas supondo o factum loquendi,
isto é, o puro fato de que os homens falam e se entendem entre si, que resta
inacessível à ciência), contudo, toda nossa cultura política se funda no colocar
em relação estas duas noções. A ideologia romântica, que deliberadamente operou
este agenciamento, e deste modo, influenciou amplamente tanto a linguística
moderna como a teoria política ainda dominante, buscou esclarecer algo obscuro
(o conceito de povo) com outra coisa ainda mais obscura (o conceito de língua).
Através da correspondência biunívoca que assim se instituiu, duas entidades
culturais contingentes e com contornos indefinidos se transformaram em
organismos quase naturais, dotados de características e leis próprias e
necessárias. Pois, assim como a teoria política deve pressupor sem poder
explicar o factum pluralitatis (chamemos
assim, com um termo etimologicamente ligado ao de populus, o puro fato de que os homens formam uma comunidade),
também a linguística deve pressupor sem interrogar o factum loquendi, a simples correspondência destes dois fatos funda
o discurso político moderno.
A relação cigano-argot põe radicalmente em questão esta
correspondência no instante mesmo no qual a reencena parodicamente. Os ciganos
estão para o povo como o argot está
para a língua; mas, no breve instante em que a analogia se mantém, lança um
relampejo sobre a verdade que a correspondência língua-povo destinava-se
secretamente a encobrir: todos os povos
são bandos e “coquilles”, todas as línguas são gírias e “argots”.
Não se trata aqui de avaliar a
correção científica desta tese, mas muito mais de não deixar escapar sua
potência libertadora. Para aqueles que têm sido capazes de manter os olhos
fixos nela, as máquinas perversas e tenazes que governam nosso imaginário
político perdem imediatamente seu poder. Que se trate, afinal, de um
imaginário, deve agora ser evidente para todos, quando a ideia de povo perdeu
desde muito toda a realidade substancial. Mesmo admitindo-se que esta ideia não
tinha tido jamais um conteúdo real, para além do insípido catálogo de
características elencadas pelas velhas antropologias filosóficas, ela teve seu
sentido esvaziado por este mesmo Estado moderno que se apresentava como seu
guardião e a sua expressão: malgrado o falatório dos bem intencionados,
atualmente o povo não é nada mais que o suporte vazio da identidade estatal e
unicamente como tal obtém reconhecimento.
Para quem ainda nutre alguma
dúvida sobre o assunto, uma rápida observação do que ocorre em nosso entorno
será instrutiva: se as potências mundiais pegam em armas para defender um Estado sem povo (o Kwait), os povos sem Estado (curdos, armênios,
palestinos, bascos, judeus da diáspora) podem, ao contrário, ser oprimidos e
exterminados impunemente, para que fique claro que o destino de um povo só pode
ser uma identidade estatal e que o conceito de povo apenas tem sentido se
recodificado naquele de cidadania. Aqui, também, o curioso estatuto das línguas
sem dignidade estatal (catalão, basco, gaélico, etc.), que os linguistas tratam
naturalmente como línguas, mas que de fato funcionam muito mais como gírias ou
dialetos e assumem quase sempre um significado imediatamente político. O
círculo vicioso de língua, povo e Estado revela-se particularmente evidente no
caso do sionismo. Um movimento que pretendia a constituição em Estado do povo
por excelência (Israel) se vê obrigado, por isso mesmo, a reencenar uma língua
puramente cultual (o hebraico) que já havia sido substituída no uso cotidiano
por outras línguas e dialetos (o ladino, o ídiche). Mas, aos olhos dos
guardiões da tradição, esta mesma reencenação da língua sacra se apresentava
como uma grotesca profanação, da qual a língua ainda se vingaria (“Nós vivemos
em nossa língua”, escrevia, de Jerusalém, Scholem a Rosenzweig em 26 de
dezembro de 1926, “como cegos que caminham sobre um abismo, ... essa língua é
grávida de futuras catástrofes, virá o dia em que ela se voltará contra todos
aqueles que a falam”).
A tese segundo a qual todos os
povos são ciganos e todas as línguas gírias dissipa este círculo vicioso e
permite vislumbrar de um modo novo aquelas diversas experiências de linguagem
que periodicamente afloram em nossa cultura, apenas para causarem
mal-entendidos e serem reconduzidas à concepção dominante. Que outra coisa faz
Dante, no De vulgari eloquentia, ao
narrar sobre o mito de Babel, dizendo que cada categoria de construtores da
torre recebeu uma língua própria incompreensível para os demais, e que de cada
uma destas línguas babélicas derivam as línguas faladas no seu tempo, se não
apresentar todas as línguas da terra como gírias (a língua dos mistérios não
seria a figura por excelência da gíria?)? E contra esta íntima marginalidade [gergalitá] de todas as línguas, ele não
sugere (segundo uma secular falsificação de seu pensamento) o antídoto de uma
gramática e uma língua nacional, mas uma transformação da experiência mesma da
palavra, a qual chama “volgari illustre”, uma espécie de emancipação
[affrancamento] – não gramatical, mas
poético e político das gírias mesmas em direção ao factum loquendi.
Assim, o trobar clus dos trovadores provençais é, enquanto tal, de qualquer
forma, a transformação da língua d’oc em
uma gíria secreta (não muito diversamente do que fez Villon, escrevendo no argot dos coquillards algumas de suas baladas); mas aquilo de que fala esta
gíria, nada mais é, então, que uma figura de linguagem, assinalado como lugar e
objeto de uma experiência de amor. E,
tratando de tempos mais recentes, não seria de estranhar que para Wittgenstein
a experiência da pura existência da linguagem (do factum loquendi) poderia corresponder à ética, e que Benjamin
confiasse a uma “pura língua”, irredutível a uma gramática e a um idioma
particular, a figura da humanidade salva.
Se as línguas são as gírias
que cobrem a pura experiência da linguagem, assim como os povos são as
máscaras, mais ou menos exitosas, do factum
pluralitatis, então nossa tarefa certamente não pode ser a construção
destas gírias em gramáticas tampouco a recodificação dos povos em identidade
estatais; ao contrário, somente rompendo em um ponto qualquer o nexo existência da linguagem – gramática (língua) – povo – Estado, o
pensamento e a práxis estarão à altura de seu tempo. As formas desta
interrupção, nas quais o factum da
linguagem e o factum da comunidade
emergem por um instante à luz, são múltiplas e variam segundo os tempos e as
circunstâncias: reativação de uma gíria, trobar
clus, pura língua, uso minoritário de uma língua gramatical... De qualquer
maneira, é claro que a aposta em jogo não é simplesmente linguística ou
literária, mas, sobretudo política e filosófica.
Extraído de Mezzi senza fine: notte sulla politica. Turim: Bollati Boringuieri, 1996. pp. 54-59. Tradução: Jonnefer Barbosa
Optamos por traduzir o termo italiano gergo
por gíria, ao contrário de jargão (tradução mais literal), por entender que,
além de conservar o sentido, ressalta a dimensão informal e política que a
palavra também possui em português.