Para minha destinatária impossível.
Querida, sinto que as cartas de outrora nada mais foram do que vãs tentativas de mapear o impossível. Insisto em escrevê-las, porém. Inútil, mas, como a vida, o resto que me resta. Danço com palavras nas pontas de meus pensamentos - também eles, matérias vivas de palavras -, mas nada me coloca em movimento pelas trilhas que traço nestes mapas. Aqui vai mais um: incompreensível e indigesto tal como nosso último entreolhar-se. Esta carta cheira a ranço! Não pelos detalhes faltantes que poderiam indicar algum caminho em que sua impossibilidade se mostraria possível, mas porque tudo falta. Não há vida nesses olhares perdidos das moças que por mim passam, não há lugar onde reler as cartas que de algum modo um dia nos levaram a paragens estranhas, não há palavras nos lábios dessa desconhecida que me fita com olhos arredios. Uma série de ausências que só me faz perceber, de modo ainda mais pungente, a sua impossibilidade. Aquilo que um dia foi sorriso, ao notar o detalhe quase imperceptível de ternura nos jogos de palavra, agora falta; aquilo que, dentro do peito, se debatia em infinitos desejos quando da chegada da missiva, agora falta. A sensação incômoda da sua presença tão ausente, hoje, torna-se a condutora torpe desse fio de pensamento que se esgarça nesta que, talvez, é minha última tentativa de traçar algum caminho. Mas não posso segurar o cheiro lúgubre do ranço que emana a cada palavra que escrevo, querida. Não suporto a alvura do papel, porém a podridão das letras também é inevitável. Vivo este paradoxo, querida, sabendo que tão infame como sua impossibilidade é a minha insistência e inutilidade. Gostaria de escrever: "salve, para nunca mais", mas quiçá termine assim, mais uma vez, a condicionar o que em palavras é incondicionado: o silêncio que assombra toda palavra.
Do seu remetente impossível.
Imagem: Johannes Veermer. Mulher em azul lendo uma carta (detalhe). 1663-4. Rijksmuseum, Amsterdam
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