quarta-feira, 30 de novembro de 2011
Nova carta
domingo, 27 de novembro de 2011
Retrair e saltar
sábado, 26 de novembro de 2011
Teoria da religião
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Tempos e/ou sonhos
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Ideia da matéria
Sobre as angústias e exasperações - confrontos com kairós
BARTHES, Roland. O Neutro. Anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977/1978. Texto estabelecido por Thomas Clerc. (Tradução Ivone Castilho Benedetti). São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 353-354. Imagem: F. Bacon.
domingo, 20 de novembro de 2011
Palavras e coisas
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
Ideia da felicidade
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Parágrafo das ampulhetas
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
O que é um mistério?
Giorgio Agamben
Para responder a questão “O que é um mistério?”, gostaria de, primeiramente, pedir-lhes para transportar sua imaginação à Alemanha dos anos 1920. Não para os tumultos que agitavam as grandes cidades da República de Weimar naquele momento, no pós-guerra, mas para a calma e o silêncio da abadia beneditina de Maria Laach, na Renânia. Ali, um obscuro monge, Odo Casel, publica em 1921 Die Liturgie als Mysterienfeier (A Liturgia como festa mistérica) que marca o nascimento do que será chamado o “movimento litúrgico” (die lturgische Bewegung) e que irá exercer uma enorme influência no seio da Igreja Católica.
Os trinta primeiros anos do século XX foram chamados, com razão, a “idade dos movimentos”. Pois, tanto à direita quanto à esquerda da cena política, os “partidos” dão lugar aos “movimentos”. O movimento operário assim como o fascismo e o nacional-socialismo definem-se como movimentos e não simplesmente como partidos. Mas igualmente nas artes, nas ciências e em todos os domínios da vida social, vê-se surgir movimentos que progressivamente substituem as escolas e as instituições. Quando Freud, em 1914, procura um título para apresentar a psicanálise, depois de refletir, irá chamá-la “movimento psicanalítico”; não é uma escola, é o movimento psicanalítico.
Qual é a tese que Casel coloca no centro de seu movimento litúrgico? A liturgia cristã é um mistério. O que isso quer dizer? Ainda na sua dissertação doutoral, escrita em latim e discutida, em 1918, na universidade de Bonn e cujo título era De phiosophorum graecorum silentio mystico (Sobre o silêncio místico dos filósofos gregos), a estratégia de Casel está claramente colocada. Sob a aparência de uma pesquisa filológica erudita, nela já se vê enunciados as duas teses que irão guiar os movimentos litúrgicos. A primeira: os mistérios pagãos, os mistérios eleusinos, órficos ou dionisíacos não devem ser vistos como uma doutrina secreta que se poderia formular num discurso, o qual seria proibido revelar. Ao contrário, esta é, segundo Casel, uma significação tardia da palavra “mistério” que vem das escolas neo-pitagóricas e neo-platônicas. Na origem, o termo “mistério” designa para Casel uma práxis, uma ação, um drama, dromèna, como se diz em grego, isto é, gestos e atos pelos quais uma ação divina se mostra e se realiza no mundo para a salvação do homem que de tal mistério participa. De fato, sabe-se que nos mistérios pagãos o iniciado assiste a algo como um drama, como uma pantomima teatral. Clemente de Alexandria, que é um informante cristão, e enquanto tal tendencioso, mas que, parece, tinha sido iniciado antes de se tornar cristão, chama os mistérios eleusinos de um “drama místico” (drama misticon). É a primeira tese: não é uma doutrina secreta, é uma ação. O segundo ponto é que há uma conexão entre os mistérios gregos e a liturgia cristã. Essa conexão já tinha sido assinalada pelos historiadores das religiões como Reizenstein, Dietrich, Usener, Burnet etc., mas adquire uma nova significação, uma vez que ela é reivindicada pela própria Igreja. Trata-se de procurar para liturgia cristã uma genealogia não judia, pois, ao contrário, sabemos que a liturgia cristã foi muito influenciada por aquela da sinagoga – poder-se-ia ver aí, portanto, dado o contexto histórico, uma nuance anti-semita que, aliás, Casel jamais irá explicitar. Assim, a liturgia enquanto mistério é essencialmente uma actio, uma ação, uma pratica e não uma doutrina. A Igreja não é ou não é somente uma comunidade de crentes que se define pela profissão de uma doutrina cristalizada em dogmas; a Igreja se define muito mais pela participação no mistério, isto é, numa ação litúrgica de culto. Há, portanto, segundo Casel, um verdadeiro primado da liturgia sobre a doutrina, do mistério sobre o dogma, no sentido de que é pela liturgia que se pode chegar a uma definição verdadeira da doutrina e não o contrário.
Essa tese, que influenciou enormemente a Igreja católica, foi, entretanto, vista com certa desconfiança pela Cúria romana, como uma ameaça à função essencial do papa como guardião do dogma. Em 1947, depois do fim da guerra que dividiu a Europa, Pio XII publica uma encíclica, Mediator Dei, inteiramente dedicada à liturgia. Salientando ao mesmo tempo a importância vital, fundamental da liturgia para a Igreja, o papa aí reafirma o primado do dogma sobre a ação litúrgica ou, ao menos, a estreita conexão entre os dois. É nesse sentido que a tese de Casel é uma tese política e, pensando-se no contexto político do momento histórico no qual ela é anunciada, vê-se aí um primado da práxis sobre a teoria.
O que acontece nos mistérios litúrgicos? Qual é seu papel estratégico? Em 1928 Casel publica na sua revista o ensaio Mysteriengegenwart (A Presença mistérica). O núcleo mais próprio do mistério cristão, segundo Casel, é tornar novamente presente a ação de salvação do Cristo e de, antes de mais nada, tornar presente o próprio Cristo. Isto é, que o mistério não é uma re-presentação, mas uma apresentação, uma presença real e não somente simbólica. Mas, de qual gênero de presença se trata? Obviamente que não se trata da presença histórica, isto é, da crucifixão tal como aconteceu no Gólgota num certo dia de um certo ano; ao contrário, trata-se de uma presença particular que diz respeito não ao sacrifício histórico, mas ao sacrifício na sua efetividade soteriológica, isto é, o sacrifício enquanto produz a salvação e a redenção dos pecados dos homens. Casel tem o cuidado de especificar, portanto, que em questão nos mistérios litúrgicos está sim uma ação, mas uma ação eficaz. Uma realidade operativa – utilizo esse termo porque operatorius é o adjetivo que irá designar na liturgia patrística os efeitos da liturgia. A liturgia é operativa no sentido de que seus efeitos se produzem de qualquer modo.
É preciso refletir bem sobre essa tese central da teologia cristã sobre a liturgia enquanto ação sacramental: a liturgia produz seus efeitos ex opere operato, isto é, de qualquer como pelo simples fato de que um ato se cumpra, pelo simples fato de uma palavra ser dita, de um gesto ser cumprido, o efeito se produz absolutamente, sem falta. Independentemente das qualidade do padre: o padre pode ser um assassino, um blasfemador, pode estar completamente bêbado no momento do batismo ou da missa, mas o sacramento permanece válido e os efeitos se produzem. Os teólogos dão até mesmo exemplos extraordinários, como o de um padre que, para seduzir uma mulher, a batiza: o batismo permanece válido. Vejam bem, portanto, que o mistério da liturgia é no fundo o mistério da operatividade, de uma eficácia radical. Uma ação absolutamente eficaz sem relação com as condições que habitualmente garantem a eficácia de uma ação humana.
Deixemos de lado agora a análise de Casel, de sua interpretação da liturgia cristã. Primeiramente, o que ganhamos com tal análise? Nós nos liberamos da falsa noção do mistério enquanto doutrina secreta ou incognoscível: vimos, ao contrário, que o mistério é uma práxis, algo como uma ação dramática dotada, segundo Casel, de uma eficácia particular. É possível perguntar-se, contudo, se uma tal definição é condizente ao que sabemos dos mistérios pagãos e também à nossa experiência do mistério, talvez admitindo-se que uma tal experiência seja disponível para nós, modernos, além dos limites da liturgia cristã. Iremos, portanto, inverter o caminho e voltar ao mistério pagão do qual Casel tinha tirado seus desenvolvimentos. Os historiadores das religiões nos dizem que o mistérios eram aparentados a uma ação dramática e, nisso, Casel tinha razão. Para empregar as própria palavras de Rohde: “Os mistérios eleusinos eram uma pantomima acompanhada de cantos sagrados e de fórmulas que representavam a história do rapto de Perséfone, de sua busca empreendida por mestres até os reencontros.” Desse modo, não estamos longe da ideia de Casel. No entanto, tudo muda quanto ao que acontece realmente nos mistérios, particularmente no que concerne aos seus efeitos, sua eficácia. Nesse ponto, as fontes antigas permanecem muito vagas. Tudo o que nos dizem é que o iniciado adquire “doces esperanças”, que se torna bem aventurado pois conhece o realização de sua vida. Muito longe, portanto, da eficácia ex opere operato do mistério cristão segundo Casel.
A mais longa descrição que temos dos mistérios antigos se encontra num romance escrito em latim por volta do século II, As Metamorfoses ou O Asno de ouro, de Apuleio. O protagonista, que tinha sido transformado em asno no momento em que descreve sua iniciação ao mistério de Isis e a salvação que nele encontra, emprega a muito significativa expressão precária salus, uma “salvação precária”. Em latim Precarius é literalmente o que é obtido por uma prex, um pedido verbal, oposto a uma quaestio, que é uma demanda que quer obter a todo custo seu objeto – é por isso que quaestio, “questão”, irá se tornar o nome da tortura. Se nos mistérios cristãos a salvação era portanto garantida, nos mistérios pagãos, ao contrário, tudo é precário. Não há aqui nenhuma certeza, mas muito mais uma aventura noturna e incerta que tem lugar numa linha instável que passa entre o Deus infernal e o Deus celeste, o homem e o animal, a vida e a morte.
Se a mais longa descrição dos mistérios antigos se encontra assim no romance de Apuleio, é porque entre os romances e os mistérios há, iremos ver, uma relação estreita; e é na análise desta relação que gostaria de concluir minha exposição.
Em 1962 Reinhold Merkelbach publica sua monografia Roman und Mysterium in der Antike (Romance e mistério na Antiguidade). A tese do livro é clara: retomando a ideia sobre a origem dos romances clássicos que tinha sido proposta por Kerényi, o autor, por meio de uma análise detalhada de vários romances gregos e latinos, mostra que não somente há uma ligação genética entre os mistérios e os romances clássicos, mas que os romances antigos devem ser lidos como verdadeiros Mysterien-texten, “textos mistéricos”. Qual é o elemento comum que liga tão estreitamente mistério e romance? É que nos mistérios, como nos romances, vemos pela primeira vez uma existência individual se ligar a um elemento divino, ou sobre-humano, de tal modo que as sortes e os episódios de uma vida singular adquirem uma significação que os ultrapassa e tornam-se nesse sentido misteriosos. Na verdade, é o que ainda acontece hoje em um romance: o enredo de episódios e de circunstâncias que o autor tece ao redor de sua personagem (por exemplo, Isabel Archer no Retrato de uma senhora de Henry James; ou Anna Karenina no romance de Tolstoi) é também o que vai constituir esta vida singular como um mistério que é preciso compreender, que a própria protagonista vai compreender. Mistério que não é necessariamente sagrado e que pode ser, ao contrário, inteiramente profano e, às vezes, até mesmo miserável, como é o caso de Emma Bovary, mas que não deixa de ser um mistério. De todo modo se trata de mistério, pois há nele, como em Elêusis ou em Apuleio, uma iniciação. Iniciação a quê? À própria vida. Com isso quero dizer que, nos romances, a vida aparece como um mistério no qual a própria vida é ao mesmo tempo a iniciadora e o único conteúdo do mistério. Está aí, parece-me, uma definição possível do romance que é também, entretanto, uma definição do mistério.
Conferência proferida durante a programação do “Festival de músicas sagradas do mundo”, ocorrido entre os dias 5 e 9 de junho de 2010, nos “Encontros de Fez”, organizado pela fundação “Espírito de Fez”. Este texto, juntamente com os dos demais participantes do Festival, foi publicado, originalmente em francês, em Le voyage initiatique. Paris: Albin Michel, 2011, organizado por Nadia Benjelloun. (Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Guido Reni. Baco menino. 1615-1620. Galleria Palatina, Firenze.
sábado, 5 de novembro de 2011
Sobre cartas impossíveis
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
A reação estilística
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Horologium Vitae
1.8. Estamos habituados a associar a divisão cronométrica do tempo humano à modernidade e à divisão do trabalho nas fábricas. Foucault mostrou que, nos limiares da revolução industrial, os dispositivos disciplinares (as escolas, os quarteis, os colégios, as primeiras manufaturas reais) já a partir do fim do século XVII tinham começado a dividir a duração do tempo em segmentos, sucessivos ou paralelos, para obter assim, por meio da combinação das simples séries cronológicas, um resultado geral mais eficaz. Ainda que Foucault mencione o precedente conventual, raramente se notou, entretanto, que, quase quinze séculos antes, o monaquismo tinha realizado nos seus mosteiros, com fins exclusivamente morais e religiosos, uma escansão temporal da existência dos monges cujo rigor não apenas não tinha precedentes no mundo clássico mas que, na sua intransigente incondicionalidade, talvez não foi igualado em nenhuma instituição da modernidade, nem mesmo na fábrica taylorista.
Horologium é o nome que, na tradição oriental, designa significativamente o livro que contém a ordem dos ofícios canônicos segundo as horas do dia e da noite. Na sua forma originária, remonta à ascese monástica palestina e síria entre os séculos VII e VIII. As ofícios da oração e da salmodia nele são ordenadas como um “relógio” que assinala o ritmo da oração do amanhecer (orthros), da manhã (primeira, terceira, sexta e nona horas), do pôr do sol (lychnikon) e da meia-noite (que, em certas ocasiões, durava toda a noite: pannychis). Essa atenção em dividir a vida segundo as horas, em constituir a existência do monge como um horologium vitae, é ainda mais surpreendente se se considera não apenas a primitividade dos instrumentos de que eles dispunham, mas também o caráter aproximativo e variável da própria divisão das horas. O dia e a noite eram divididos em doze partes (horae), do pôr ao nascer do sol. As horas não tinham, portanto, como hoje, uma duração fixa de sessenta minutos mas, exceto nos equinócios, variavam de acordo com as estações, e as diurnas eram mais longas no verão (no solstício chegavam a oitenta minutos) e mais curtas no inverno. A jornada de oração e trabalho era no verão, desse modo, o dobro da invernal. Além disso, os relógios solares, que nessa época eram a regra, funcionam somente durante o dia e com o céu claro, e no resto do tempo o quadrante é “cego”. Ainda assim, mais o monge deverá ater-se indefectivelmente à execução de seu ofício: “Quando o tempo está nublado”, lê-se na Regola del maestro, “e o sol esconde do mundo os seus raios, tanto no monastério quanto em viagem ou nos campos, os irmãos estimarão o transcorrer do tempo calculando mentalmente as horas (perpensatione horarum) e, dependendo da hora, cumprirão seus ofícios costumeiros e, mesmo que esteja atrasada ou adiantada em uma hora a obra de Deus (opus Dei) não será descuidada, no momento em que, por ausência do sol, o relógio está cego”[1]. Cassiodoro (séc. VI) informa aos seus monges que fez instalar no mosteiro um relógio de água, de modo a poder calcular as horas também durante a noite: “Não toleramos que vocês ignorem totalmente a medição das horas (horarum modulos), tão útil ao gênero humano. Por isso, além do relógio que funciona com a luz do sol, quisemos um outro hidráulico (aquatile), que mede a quantidade das horas tanto de dia quanto de noite” (De institutione divinarum litterarum, Pl, 70, 1146 a-b). E, quatro séculos mais tarde, Pier Damiani convida os monges a transformar-se em relógios viventes, medindo as horas com a duração das suas salmodias: “O monge, se quer calcular as horas quotidianas, habitue-se a medi-las com seu canto de modo que, quando as nuvens cobrirem os céus, constituam-se numa espécie de relógio (quoddam horologium) com a duração regular das suas salmodias” (De perfectione monachorum, Pl, 145, 315 c-d).
Em todo caso, à escansão do ritmo das horas são garantidos, sob a responsabilidade do abade, encargos especiais (significatores horarum, chama-os Pier Damiani; Cassiano e a Regola del maestro os chamam simplesmente conpulsores e excitantes), cuja importância não pode ser superestimada: “O marcador de horas deve saber que nenhum esquecimento no monastério é mais grave do que o seu. Se ele antecipa ou atrasa a hora de uma reunião, toda a sucessão das horas está turbada.” (ibid.).
Os dois monges que, na Regra del maestro, têm o dever de acordar os irmãos (e, acima de tudo, o abade, chacoalhando-lhe levemente os pés, mox pulsantes pedes[2]), desenvolvem uma função tão essencial que, para honrá-los, a regra os chama “vigigalli”, galos sempre despertos (“tão grande é junto ao Senhor a recompensa para aqueles que despertam os monges para a obra divina que a regra, para honrá-los, chama-os vigigallos”[3]). Eles devem dispor de relógios capazes de assinalar as horas inclusive na ausência do sol, porque a regra nos informa que era sua responsabilidade olhar o relógio (horolegium, segundo a etimologia medieval, quod ibi horas legamus) tanto de noite quanto de dia (in nocte et in die[4]).
1.9. Não importa quais foram os instrumentos para medir as horas, é certo que toda a vida do monge é modelada de acordo com uma implacável e incessante articulação temporal. Assumindo a direção do monastério constantinopolitano do Stoudion, Teodoro Studita descreve com estas palavras o início da jornada conventual:
“Transcorrida a segunda custódia da noite ou depois da hora sexta, no momento em que está para começar a semana, toca o sinal do relógio d’água (piptei tou ydrologiou to syssemon) e a este som o despertador (afypnistes) se levanta e percorre as celas com a lamparina, despertando os irmãos para a doxologia matutina. Instantaneamente ressoam as madeiras acima e abaixo e, durante o sinal, todos os irmãos se reúnem no nártex e rezam em silêncio, e o sacerdote, com o turíbulo em mãos, incensa o sagrado presbitério... (Descriptio constitutionis monasterii Studi, Pg, 99, 1703).”
O mosteiro é, nesse sentido, antes de mais nada uma escansão horária integral da existência, na qual a todo momento corresponde o seu ofício, tanto de oração quanto de leitura ou de trabalho manual. Claro que já a Igreja primitiva tinha elaborado uma liturgia das horas e, em continuidade à tradição da sinagoga, a Didachè prescrevia aos fieis a reunião para oração três vezes ao dia. A Tradição apostólica, atribuída a Hipólito (séc. III), desenvolve e articula esse hábito ligando as horas da oração aos episódios da vida de Cristo. À oração da terceira hora (“nessa hora Cristo foi visto dependurado na cruz”[5]), à da sexta e da nona (“nessa hora as costelas de Cristo são feridas e jorram água e sangue”), Hipólito agrega a oração da meia-noite (“se tua mulher está contigo e não é crente”, aponta o texto, “saia para um quarto e reze”[6]) e a do canto do galo (“levanta-te no cantar do galo e reze, porque àquela hora, ao cantar do galo, os filhos de Israel negaram Cristo”[7]).
A novidade do mosteiro é que, tomando literalmente a prescrição paulina da oração incessante (adialeiptós proseuchesthe, I Tes., 5, 17), ele, por meio de uma escansão temporal, transforma toda a vida em ofício. Confrontando-se com esse preceito apostólico, a tradição patrística tinha dele retirado a consequência que Orígenes retoma no De oratione, isto é, de que o único modo possível de entender esse preceito era que, “se a vida do santo é uma grande incessante oração, uma parte dessa, isto é, a oração no sentido estrito do termo, deve ser feita pelo menos três vezes ao dia” (Pg, II, 452). Completamente diferente é a interpretação monástica. Cassiano, expondo as instituições dos Padres egípcios, que segundo ele representam o paradigma perfeito do mosteiro, escreve:
“Aqueles ofícios que, pelo sinal do preposto, nós somos obrigados a cumprir para o Senhor em horas e intervalos distintos (per distinctiones horarum et temporis intervalla), eles [os padres egípcios] os celebram espontaneamente sem interrupção (iugiter) durante toda a duração do dia, agregando-os ao trabalho. Assim, cada um na sua cela, separadamente, exercita incessantemente a obra das mãos (operatio manum), sem por isso omitir a recitação dos Salmos e das outras Escrituras. Misturando a todo instante preces e orações, eles passam o dia todo nesses ofícios, os quais, ao contrário, celebramos somente em tempos estabelecidos (statuto tempore celebramus[8]).”
Ainda mais claro é o ditado das “conferências” que ele dedica à prece, na qual a continuidade da oração define a própria condição monacal: “Todo a finalidade do monge e a perfeição do seu coração consiste na contínua e ininterrupta perseverança na oração (iugem atque indisruptam orationis perseverantia),”[9] e a “sublime disciplina” do mosteiro é a que “nos ensina a aderir a Deus sem interrupção (Deo iugiter inhaerere)”.[10] Na Regola del maestro, a “arte santa” que o monge aprende deve ser exercitada “noite e dia incessantemente” (die noctuque incessanter adinpleta[11]).
Não se poderia dizer de modo mais claro que o ideal monacal é o de uma mobilização integral da existência por meio do tempo. Enquanto a liturgia eclesiástica divide a celebração do ofício pelo trabalho e alimentação, a regra monástica, como é evidente na passagem citada das Istituzioni de Cassiano, considera a obra das mãos como parte indiscernível do opus Dei. Já Basílio interpreta a frase do apóstolo (“comendo ou bebendo, qualquer coisa que façam, façam-na para a glória de Deus” – I Cor., 10, 31) como responsável por uma espiritualização de toda a atividade do monge. Não apenas, desse modo, toda a vida do mosteiro se apresenta como a execução de uma “obra divina”, mas Basílio tem cuidado de multiplicar os exemplos tirados do trabalho manual: como a fabricante, enquanto bate o metal, tem em mente a vontade do comitente, assim também o monge segue com cuidado “toda sua ação, pequena ou grande (pasan energeian kai mikran kai meizona)”, porque é consciente a todo instante de fazer a vontade de Deus (Regulae fusius tractatae, Pg, 31, 921-923). Mesmo na passagem da Regola del maestro na qual os ofícios divinos são claramente distinto dos trabalhos manuais (opera corporalis[12]), estes últimos devem, no entanto, ser seguidos com a mesma atenção com a qual se seguem os primeiros: enquanto o irmão segue um trabalho manual, deve fixar a atenção na obra e ocupar a mente (dum oculis in laboris opere figit, inde sensum occupat[13]); não surpreende, portanto, que os exercitia actuum, que se alternam com o ofício divino, sejam definidos pouco depois como uma “obra espiritual” (spiritale opus[14]). A espiritualização da obra das mãos que desse modo se realiza pode ser vista como um precursor significativo daquela ascese protestante do trabalho, em relação à qual o capitalismo, segundo Max Weber, representa a secularização. E se a liturgia cristã, que culmina na criação do ano litúrgico e do cursus horarum, foi eficazmente definida uma “santificação do tempo”, no qual todo dia e toda hora são constituídos como um “memorial das obras de Deus e dos mistérios de Cristo”[15], ao contrário, o projeto dos mosteiros pode ser precisamente definido como uma santificação da vida por meio do tempo.
A continuidade da escansão temporal, interiorizada na forma de uma perpensatio horarum, de uma articulação mental do transcorrer das horas, torna-se aqui o elemento que permite agir sobre a vida dos indivíduos e da comunidade com uma eficácia incomparavelmente maior do que aquela que podia atingir o cuidado de si dos estóicos e dos epicureus. E se nós estamos hoje perfeitamente habituados a articular nossa existência segundo tempos e horários, e a considerar também a nossa vida interior como um decurso temporal linear e homogêneo, e não como um alternar-se de unidades discretas e heterogêneas para medir segundo critérios éticos e ritos de passagem, não devemos, entretanto, esquecer que é no horologium vitae dos mosteiros que tempo e vida foram pela primeira vez intimamente sobrepostos até quase coincidir.
[1] VOGÜÉ, A. De. La règle du maître, a cura di A. de Vogue, “Sources Chrétiennes” 105, Paris, Cerf, 1964, 3 vol. p. 266.
[2] Idem. p. 172.
[3] Ibid. p. 170.
[4] Ibid.
[5] IPPOLITO. La tradition apostolique de S. Hippolyte, a cura di B. Botte, “Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forschungen” 39, Munster, Aschendorff, 1963. p. 90.
[6] Idem. p. 92.
[7] Ibid. p. 96.
[8] CASSIANO, Jean CASSIEN. Institutions cénobitiques, a cura di J.-C. Guy, “Sourcs Chrétiennes” 109, Paris, Cerf, 2001. p. 92.
[9] CASSIANO, Jean CASSIEN. Conferences, a cura di Pichery, “Sources Chrétiennes” 64, vol. 3, Paris, Cerf, 1959. p. 40.
[10] Idem. p. 83.
[11] VOGÜÉ. Op. Cit. p. 372.
[12] Idem. p. 224.
[13] Ibid.
[14] Ibid.
[15] RIGUETTI, Mario. Storia liturgica, vol. 2, Milano, Ancora, 1950. p. 1.
Giorgio Agamben. Altissima Povertà. Regole monastiche e forma di vita. Vincenza: Neri Pozza Editore, 2011. pp. 30-37. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: Fra Angelico. São Francisco recebendo os estigmas. 1429. Pinacoteca Vaticana, Roma.