Em toda vida há algo que permanece não vivido, como em toda palavra há algo que permanece não exprimido. O caráter é a obscura potência que se assume como guardiã desta vida intocada: atentamente vela por aquilo que nunca foi e, sem que o queiras, inscreve em teu rosto a marca disso. Por isso a criança que acaba de nascer parece já se assemelhar ao adulto: na realidade, entre os dois rostos não há nada de igual, a não ser aquilo que, tanto em um como no outro, não foi vivido.
A comédia do caráter: no ponto em que a morte arranca das suas mãos o que estas tenazmente escondem, aquilo do que se apodera é apenas uma máscara. Neste ponto, o caráter desaparece: no rosto do morto não há mais traço do que não foi vivido, as rugas gravadas pelo caráter alisam-se. Assim também se escarnece da morte: ela não tem olhos nem mãos para o tesouro do caráter. Este tesouro - o que nunca foi - é recolhido pela ideia da felicidade. Ela é o bem que a humanidade recebe das mãos do caráter.
Giorgio Agamben. Idea della felicità. in.: Idea della prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. p. 79. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Tintoretto. Alegoria da Felicidade. 1564. Scuola Grande di San Rocco, Venezia.
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