quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O que é um mistério?


Giorgio Agamben

Para responder a questão “O que é um mistério?”, gostaria de, primeiramente, pedir-lhes para transportar sua imaginação à Alemanha dos anos 1920. Não para os tumultos que agitavam as grandes cidades da República de Weimar naquele momento, no pós-guerra, mas para a calma e o silêncio da abadia beneditina de Maria Laach, na Renânia. Ali, um obscuro monge, Odo Casel, publica em 1921 Die Liturgie als Mysterienfeier (A Liturgia como festa mistérica) que marca o nascimento do que será chamado o “movimento litúrgico” (die lturgische Bewegung) e que irá exercer uma enorme influência no seio da Igreja Católica.

Os trinta primeiros anos do século XX foram chamados, com razão, a “idade dos movimentos”. Pois, tanto à direita quanto à esquerda da cena política, os “partidos” dão lugar aos “movimentos”. O movimento operário assim como o fascismo e o nacional-socialismo definem-se como movimentos e não simplesmente como partidos. Mas igualmente nas artes, nas ciências e em todos os domínios da vida social, vê-se surgir movimentos que progressivamente substituem as escolas e as instituições. Quando Freud, em 1914, procura um título para apresentar a psicanálise, depois de refletir, irá chamá-la “movimento psicanalítico”; não é uma escola, é o movimento psicanalítico.

Qual é a tese que Casel coloca no centro de seu movimento litúrgico? A liturgia cristã é um mistério. O que isso quer dizer? Ainda na sua dissertação doutoral, escrita em latim e discutida, em 1918, na universidade de Bonn e cujo título era De phiosophorum graecorum silentio mystico (Sobre o silêncio místico dos filósofos gregos), a estratégia de Casel está claramente colocada. Sob a aparência de uma pesquisa filológica erudita, nela já se vê enunciados as duas teses que irão guiar os movimentos litúrgicos. A primeira: os mistérios pagãos, os mistérios eleusinos, órficos ou dionisíacos não devem ser vistos como uma doutrina secreta que se poderia formular num discurso, o qual seria proibido revelar. Ao contrário, esta é, segundo Casel, uma significação tardia da palavra “mistério” que vem das escolas neo-pitagóricas e neo-platônicas. Na origem, o termo “mistério” designa para Casel uma práxis, uma ação, um drama, dromèna, como se diz em grego, isto é, gestos e atos pelos quais uma ação divina se mostra e se realiza no mundo para a salvação do homem que de tal mistério participa. De fato, sabe-se que nos mistérios pagãos o iniciado assiste a algo como um drama, como uma pantomima teatral. Clemente de Alexandria, que é um informante cristão, e enquanto tal tendencioso, mas que, parece, tinha sido iniciado antes de se tornar cristão, chama os mistérios eleusinos de um “drama místico” (drama misticon). É a primeira tese: não é uma doutrina secreta, é uma ação. O segundo ponto é que há uma conexão entre os mistérios gregos e a liturgia cristã. Essa conexão já tinha sido assinalada pelos historiadores das religiões como Reizenstein, Dietrich, Usener, Burnet etc., mas adquire uma nova significação, uma vez que ela é reivindicada pela própria Igreja. Trata-se de procurar para liturgia cristã uma genealogia não judia, pois, ao contrário, sabemos que a liturgia cristã foi muito influenciada por aquela da sinagoga – poder-se-ia ver aí, portanto, dado o contexto histórico, uma nuance anti-semita que, aliás, Casel jamais irá explicitar. Assim, a liturgia enquanto mistério é essencialmente uma actio, uma ação, uma pratica e não uma doutrina. A Igreja não é ou não é somente uma comunidade de crentes que se define pela profissão de uma doutrina cristalizada em dogmas; a Igreja se define muito mais pela participação no mistério, isto é, numa ação litúrgica de culto. Há, portanto, segundo Casel, um verdadeiro primado da liturgia sobre a doutrina, do mistério sobre o dogma, no sentido de que é pela liturgia que se pode chegar a uma definição verdadeira da doutrina e não o contrário.

Essa tese, que influenciou enormemente a Igreja católica, foi, entretanto, vista com certa desconfiança pela Cúria romana, como uma ameaça à função essencial do papa como guardião do dogma. Em 1947, depois do fim da guerra que dividiu a Europa, Pio XII publica uma encíclica, Mediator Dei, inteiramente dedicada à liturgia. Salientando ao mesmo tempo a importância vital, fundamental da liturgia para a Igreja, o papa aí reafirma o primado do dogma sobre a ação litúrgica ou, ao menos, a estreita conexão entre os dois. É nesse sentido que a tese de Casel é uma tese política e, pensando-se no contexto político do momento histórico no qual ela é anunciada, vê-se aí um primado da práxis sobre a teoria.

O que acontece nos mistérios litúrgicos? Qual é seu papel estratégico? Em 1928 Casel publica na sua revista o ensaio Mysteriengegenwart (A Presença mistérica). O núcleo mais próprio do mistério cristão, segundo Casel, é tornar novamente presente a ação de salvação do Cristo e de, antes de mais nada, tornar presente o próprio Cristo. Isto é, que o mistério não é uma re-presentação, mas uma apresentação, uma presença real e não somente simbólica. Mas, de qual gênero de presença se trata? Obviamente que não se trata da presença histórica, isto é, da crucifixão tal como aconteceu no Gólgota num certo dia de um certo ano; ao contrário, trata-se de uma presença particular que diz respeito não ao sacrifício histórico, mas ao sacrifício na sua efetividade soteriológica, isto é, o sacrifício enquanto produz a salvação e a redenção dos pecados dos homens. Casel tem o cuidado de especificar, portanto, que em questão nos mistérios litúrgicos está sim uma ação, mas uma ação eficaz. Uma realidade operativa – utilizo esse termo porque operatorius é o adjetivo que irá designar na liturgia patrística os efeitos da liturgia. A liturgia é operativa no sentido de que seus efeitos se produzem de qualquer modo.

É preciso refletir bem sobre essa tese central da teologia cristã sobre a liturgia enquanto ação sacramental: a liturgia produz seus efeitos ex opere operato, isto é, de qualquer como pelo simples fato de que um ato se cumpra, pelo simples fato de uma palavra ser dita, de um gesto ser cumprido, o efeito se produz absolutamente, sem falta. Independentemente das qualidade do padre: o padre pode ser um assassino, um blasfemador, pode estar completamente bêbado no momento do batismo ou da missa, mas o sacramento permanece válido e os efeitos se produzem. Os teólogos dão até mesmo exemplos extraordinários, como o de um padre que, para seduzir uma mulher, a batiza: o batismo permanece válido. Vejam bem, portanto, que o mistério da liturgia é no fundo o mistério da operatividade, de uma eficácia radical. Uma ação absolutamente eficaz sem relação com as condições que habitualmente garantem a eficácia de uma ação humana.

Deixemos de lado agora a análise de Casel, de sua interpretação da liturgia cristã. Primeiramente, o que ganhamos com tal análise? Nós nos liberamos da falsa noção do mistério enquanto doutrina secreta ou incognoscível: vimos, ao contrário, que o mistério é uma práxis, algo como uma ação dramática dotada, segundo Casel, de uma eficácia particular. É possível perguntar-se, contudo, se uma tal definição é condizente ao que sabemos dos mistérios pagãos e também à nossa experiência do mistério, talvez admitindo-se que uma tal experiência seja disponível para nós, modernos, além dos limites da liturgia cristã. Iremos, portanto, inverter o caminho e voltar ao mistério pagão do qual Casel tinha tirado seus desenvolvimentos. Os historiadores das religiões nos dizem que o mistérios eram aparentados a uma ação dramática e, nisso, Casel tinha razão. Para empregar as própria palavras de Rohde: “Os mistérios eleusinos eram uma pantomima acompanhada de cantos sagrados e de fórmulas que representavam a história do rapto de Perséfone, de sua busca empreendida por mestres até os reencontros.” Desse modo, não estamos longe da ideia de Casel. No entanto, tudo muda quanto ao que acontece realmente nos mistérios, particularmente no que concerne aos seus efeitos, sua eficácia. Nesse ponto, as fontes antigas permanecem muito vagas. Tudo o que nos dizem é que o iniciado adquire “doces esperanças”, que se torna bem aventurado pois conhece o realização de sua vida. Muito longe, portanto, da eficácia ex opere operato do mistério cristão segundo Casel.

A mais longa descrição que temos dos mistérios antigos se encontra num romance escrito em latim por volta do século II, As Metamorfoses ou O Asno de ouro, de Apuleio. O protagonista, que tinha sido transformado em asno no momento em que descreve sua iniciação ao mistério de Isis e a salvação que nele encontra, emprega a muito significativa expressão precária salus, uma “salvação precária”. Em latim Precarius é literalmente o que é obtido por uma prex, um pedido verbal, oposto a uma quaestio, que é uma demanda que quer obter a todo custo seu objeto – é por isso que quaestio, “questão”, irá se tornar o nome da tortura. Se nos mistérios cristãos a salvação era portanto garantida, nos mistérios pagãos, ao contrário, tudo é precário. Não há aqui nenhuma certeza, mas muito mais uma aventura noturna e incerta que tem lugar numa linha instável que passa entre o Deus infernal e o Deus celeste, o homem e o animal, a vida e a morte.

Se a mais longa descrição dos mistérios antigos se encontra assim no romance de Apuleio, é porque entre os romances e os mistérios há, iremos ver, uma relação estreita; e é na análise desta relação que gostaria de concluir minha exposição.

Em 1962 Reinhold Merkelbach publica sua monografia Roman und Mysterium in der Antike (Romance e mistério na Antiguidade). A tese do livro é clara: retomando a ideia sobre a origem dos romances clássicos que tinha sido proposta por Kerényi, o autor, por meio de uma análise detalhada de vários romances gregos e latinos, mostra que não somente há uma ligação genética entre os mistérios e os romances clássicos, mas que os romances antigos devem ser lidos como verdadeiros Mysterien-texten, “textos mistéricos”. Qual é o elemento comum que liga tão estreitamente mistério e romance? É que nos mistérios, como nos romances, vemos pela primeira vez uma existência individual se ligar a um elemento divino, ou sobre-humano, de tal modo que as sortes e os episódios de uma vida singular adquirem uma significação que os ultrapassa e tornam-se nesse sentido misteriosos. Na verdade, é o que ainda acontece hoje em um romance: o enredo de episódios e de circunstâncias que o autor tece ao redor de sua personagem (por exemplo, Isabel Archer no Retrato de uma senhora de Henry James; ou Anna Karenina no romance de Tolstoi) é também o que vai constituir esta vida singular como um mistério que é preciso compreender, que a própria protagonista vai compreender. Mistério que não é necessariamente sagrado e que pode ser, ao contrário, inteiramente profano e, às vezes, até mesmo miserável, como é o caso de Emma Bovary, mas que não deixa de ser um mistério. De todo modo se trata de mistério, pois há nele, como em Elêusis ou em Apuleio, uma iniciação. Iniciação a quê? À própria vida. Com isso quero dizer que, nos romances, a vida aparece como um mistério no qual a própria vida é ao mesmo tempo a iniciadora e o único conteúdo do mistério. Está aí, parece-me, uma definição possível do romance que é também, entretanto, uma definição do mistério.

Conferência proferida durante a programação do “Festival de músicas sagradas do mundo”, ocorrido entre os dias 5 e 9 de junho de 2010, nos “Encontros de Fez”, organizado pela fundação “Espírito de Fez”. Este texto, juntamente com os dos demais participantes do Festival, foi publicado, originalmente em francês, em Le voyage initiatique. Paris: Albin Michel, 2011, organizado por Nadia Benjelloun. (Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Guido Reni. Baco menino. 1615-1620. Galleria Palatina, Firenze.

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