Para minha destinatária impossível.
Querida, talvez a sua carta ausente seja a mais cabal prova do hermetismo. O silêncio, sim, querida, o silêncio que lhe habita não é a falta de linguagem, a falta do seu discurso significante numa missiva que a mim poderia chegar, mas é a impossibilidade que temos em dizer a linguagem, de dizer a carta (ah, talvez seja muito lembrar o velho Heidegger, por quem você não tem muito apreço, bem o sei: a palavra para a palavra não se encontra em nenhum lugar). Um outro sujeito de língua alemã, também um tanto quanto difícil, dizia que o milagre da existência do mundo não poderia ser dito em nenhuma proposição significante por meio da linguagem, mas tão somente pelo fato da existência da linguagem. Nada, no entanto, pode dizer que a linguagem é, e daí o seu silêncio. Sei, isso lhe parece algo capaz de deixá-la estupefata, atônita, angustiada, mas isso é algo que os neoplatônicos, influenciados por aquilo que hoje chamamos gnosticismo, já sentiram. É o êxtase, querida, é o êxtase. É bobagem imaginar que a experiência desse vazio da linguagem (dessa sua carta que nunca me chega) seja um turbamento da razão, um estado psico-patológico ou algo ilógico. Nada disso! Aliás, nada mais lógico do que isso, afinal, não somos impossíveis um ao outro?! É a experiência da palavra, querida, a experiência deste nada que ao mesmo tempo é algo, um abismo silencioso. Mas já há tempos também, na Palestina, certos monges, isolados do mundo, diziam que era preciso oração até ficarem estupefatos, até atingirem o silêncio da linguagem que, no entanto, seria o lugar mesmo da linguagem: deus (e você também deve saber, querida, que tanto quanto os monges cristãos, também os cabalistas judeus pensavam, a partir da impossibilidade da pronúncia do nome divino, a emanação de toda criação a partir do nada que são as quatro letrinhas do tal tetragrama sagrado). E é a partir do pensamento sobre o deus da Palestina em suas diversas facetas, deus em relação ao qual você sempre quis manter distância (ingenuamente pensando ser isso possível - "não há como não ser crististianizado na nossa cultura", já dizia o velho Pasolini) e com o qual o judeu austríaco (por quem você tem tanta estima - aliás, como é comum no meio do qual brotaram nossas impossibilidades) tenta acertar suas contas, que esse silêncio da linguagem torna-se o pressuposto de toda linguagem, como se somente escalando este abismo silencioso, que é o tal deus, pudéssemos trocar nossas missivas. E a tolice de pensar-se fora de qualquer relação com esse fundo obscuro da palavra (e obscura iluminação, você deve saber, é outro tópico do misticismo) ainda paira no nosso tempo. Não, querida, não vimos o ocaso da metafísica. Talvez eu tenha sido hermético demais nesta missiva. Mas, não sei, talvez não seja questão de querer saber coisas que Hermes Trimegisto sabia, já que as letras também são cartas (ainda que em português não fique tão evidente como no italiano, no francês ou mesmo no inglês) e estas, em especial as nossas, não as quero pensar fundamentais, mas tão somente falar sobre e, com isso, talvez liberar nossa linguagem do silêncio divino que a ela impusemos.
Do seu remetente impossível.
Imagem: Anônimo miniaturista inglês. Livro gospel em pergaminho. 1150. Cathedral, Winchester
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