1.8. Estamos habituados a associar a divisão cronométrica do tempo humano à modernidade e à divisão do trabalho nas fábricas. Foucault mostrou que, nos limiares da revolução industrial, os dispositivos disciplinares (as escolas, os quarteis, os colégios, as primeiras manufaturas reais) já a partir do fim do século XVII tinham começado a dividir a duração do tempo em segmentos, sucessivos ou paralelos, para obter assim, por meio da combinação das simples séries cronológicas, um resultado geral mais eficaz. Ainda que Foucault mencione o precedente conventual, raramente se notou, entretanto, que, quase quinze séculos antes, o monaquismo tinha realizado nos seus mosteiros, com fins exclusivamente morais e religiosos, uma escansão temporal da existência dos monges cujo rigor não apenas não tinha precedentes no mundo clássico mas que, na sua intransigente incondicionalidade, talvez não foi igualado em nenhuma instituição da modernidade, nem mesmo na fábrica taylorista.
Horologium é o nome que, na tradição oriental, designa significativamente o livro que contém a ordem dos ofícios canônicos segundo as horas do dia e da noite. Na sua forma originária, remonta à ascese monástica palestina e síria entre os séculos VII e VIII. As ofícios da oração e da salmodia nele são ordenadas como um “relógio” que assinala o ritmo da oração do amanhecer (orthros), da manhã (primeira, terceira, sexta e nona horas), do pôr do sol (lychnikon) e da meia-noite (que, em certas ocasiões, durava toda a noite: pannychis). Essa atenção em dividir a vida segundo as horas, em constituir a existência do monge como um horologium vitae, é ainda mais surpreendente se se considera não apenas a primitividade dos instrumentos de que eles dispunham, mas também o caráter aproximativo e variável da própria divisão das horas. O dia e a noite eram divididos em doze partes (horae), do pôr ao nascer do sol. As horas não tinham, portanto, como hoje, uma duração fixa de sessenta minutos mas, exceto nos equinócios, variavam de acordo com as estações, e as diurnas eram mais longas no verão (no solstício chegavam a oitenta minutos) e mais curtas no inverno. A jornada de oração e trabalho era no verão, desse modo, o dobro da invernal. Além disso, os relógios solares, que nessa época eram a regra, funcionam somente durante o dia e com o céu claro, e no resto do tempo o quadrante é “cego”. Ainda assim, mais o monge deverá ater-se indefectivelmente à execução de seu ofício: “Quando o tempo está nublado”, lê-se na Regola del maestro, “e o sol esconde do mundo os seus raios, tanto no monastério quanto em viagem ou nos campos, os irmãos estimarão o transcorrer do tempo calculando mentalmente as horas (perpensatione horarum) e, dependendo da hora, cumprirão seus ofícios costumeiros e, mesmo que esteja atrasada ou adiantada em uma hora a obra de Deus (opus Dei) não será descuidada, no momento em que, por ausência do sol, o relógio está cego”[1]. Cassiodoro (séc. VI) informa aos seus monges que fez instalar no mosteiro um relógio de água, de modo a poder calcular as horas também durante a noite: “Não toleramos que vocês ignorem totalmente a medição das horas (horarum modulos), tão útil ao gênero humano. Por isso, além do relógio que funciona com a luz do sol, quisemos um outro hidráulico (aquatile), que mede a quantidade das horas tanto de dia quanto de noite” (De institutione divinarum litterarum, Pl, 70, 1146 a-b). E, quatro séculos mais tarde, Pier Damiani convida os monges a transformar-se em relógios viventes, medindo as horas com a duração das suas salmodias: “O monge, se quer calcular as horas quotidianas, habitue-se a medi-las com seu canto de modo que, quando as nuvens cobrirem os céus, constituam-se numa espécie de relógio (quoddam horologium) com a duração regular das suas salmodias” (De perfectione monachorum, Pl, 145, 315 c-d).
Em todo caso, à escansão do ritmo das horas são garantidos, sob a responsabilidade do abade, encargos especiais (significatores horarum, chama-os Pier Damiani; Cassiano e a Regola del maestro os chamam simplesmente conpulsores e excitantes), cuja importância não pode ser superestimada: “O marcador de horas deve saber que nenhum esquecimento no monastério é mais grave do que o seu. Se ele antecipa ou atrasa a hora de uma reunião, toda a sucessão das horas está turbada.” (ibid.).
Os dois monges que, na Regra del maestro, têm o dever de acordar os irmãos (e, acima de tudo, o abade, chacoalhando-lhe levemente os pés, mox pulsantes pedes[2]), desenvolvem uma função tão essencial que, para honrá-los, a regra os chama “vigigalli”, galos sempre despertos (“tão grande é junto ao Senhor a recompensa para aqueles que despertam os monges para a obra divina que a regra, para honrá-los, chama-os vigigallos”[3]). Eles devem dispor de relógios capazes de assinalar as horas inclusive na ausência do sol, porque a regra nos informa que era sua responsabilidade olhar o relógio (horolegium, segundo a etimologia medieval, quod ibi horas legamus) tanto de noite quanto de dia (in nocte et in die[4]).
1.9. Não importa quais foram os instrumentos para medir as horas, é certo que toda a vida do monge é modelada de acordo com uma implacável e incessante articulação temporal. Assumindo a direção do monastério constantinopolitano do Stoudion, Teodoro Studita descreve com estas palavras o início da jornada conventual:
“Transcorrida a segunda custódia da noite ou depois da hora sexta, no momento em que está para começar a semana, toca o sinal do relógio d’água (piptei tou ydrologiou to syssemon) e a este som o despertador (afypnistes) se levanta e percorre as celas com a lamparina, despertando os irmãos para a doxologia matutina. Instantaneamente ressoam as madeiras acima e abaixo e, durante o sinal, todos os irmãos se reúnem no nártex e rezam em silêncio, e o sacerdote, com o turíbulo em mãos, incensa o sagrado presbitério... (Descriptio constitutionis monasterii Studi, Pg, 99, 1703).”
O mosteiro é, nesse sentido, antes de mais nada uma escansão horária integral da existência, na qual a todo momento corresponde o seu ofício, tanto de oração quanto de leitura ou de trabalho manual. Claro que já a Igreja primitiva tinha elaborado uma liturgia das horas e, em continuidade à tradição da sinagoga, a Didachè prescrevia aos fieis a reunião para oração três vezes ao dia. A Tradição apostólica, atribuída a Hipólito (séc. III), desenvolve e articula esse hábito ligando as horas da oração aos episódios da vida de Cristo. À oração da terceira hora (“nessa hora Cristo foi visto dependurado na cruz”[5]), à da sexta e da nona (“nessa hora as costelas de Cristo são feridas e jorram água e sangue”), Hipólito agrega a oração da meia-noite (“se tua mulher está contigo e não é crente”, aponta o texto, “saia para um quarto e reze”[6]) e a do canto do galo (“levanta-te no cantar do galo e reze, porque àquela hora, ao cantar do galo, os filhos de Israel negaram Cristo”[7]).
A novidade do mosteiro é que, tomando literalmente a prescrição paulina da oração incessante (adialeiptós proseuchesthe, I Tes., 5, 17), ele, por meio de uma escansão temporal, transforma toda a vida em ofício. Confrontando-se com esse preceito apostólico, a tradição patrística tinha dele retirado a consequência que Orígenes retoma no De oratione, isto é, de que o único modo possível de entender esse preceito era que, “se a vida do santo é uma grande incessante oração, uma parte dessa, isto é, a oração no sentido estrito do termo, deve ser feita pelo menos três vezes ao dia” (Pg, II, 452). Completamente diferente é a interpretação monástica. Cassiano, expondo as instituições dos Padres egípcios, que segundo ele representam o paradigma perfeito do mosteiro, escreve:
“Aqueles ofícios que, pelo sinal do preposto, nós somos obrigados a cumprir para o Senhor em horas e intervalos distintos (per distinctiones horarum et temporis intervalla), eles [os padres egípcios] os celebram espontaneamente sem interrupção (iugiter) durante toda a duração do dia, agregando-os ao trabalho. Assim, cada um na sua cela, separadamente, exercita incessantemente a obra das mãos (operatio manum), sem por isso omitir a recitação dos Salmos e das outras Escrituras. Misturando a todo instante preces e orações, eles passam o dia todo nesses ofícios, os quais, ao contrário, celebramos somente em tempos estabelecidos (statuto tempore celebramus[8]).”
Ainda mais claro é o ditado das “conferências” que ele dedica à prece, na qual a continuidade da oração define a própria condição monacal: “Todo a finalidade do monge e a perfeição do seu coração consiste na contínua e ininterrupta perseverança na oração (iugem atque indisruptam orationis perseverantia),”[9] e a “sublime disciplina” do mosteiro é a que “nos ensina a aderir a Deus sem interrupção (Deo iugiter inhaerere)”.[10] Na Regola del maestro, a “arte santa” que o monge aprende deve ser exercitada “noite e dia incessantemente” (die noctuque incessanter adinpleta[11]).
Não se poderia dizer de modo mais claro que o ideal monacal é o de uma mobilização integral da existência por meio do tempo. Enquanto a liturgia eclesiástica divide a celebração do ofício pelo trabalho e alimentação, a regra monástica, como é evidente na passagem citada das Istituzioni de Cassiano, considera a obra das mãos como parte indiscernível do opus Dei. Já Basílio interpreta a frase do apóstolo (“comendo ou bebendo, qualquer coisa que façam, façam-na para a glória de Deus” – I Cor., 10, 31) como responsável por uma espiritualização de toda a atividade do monge. Não apenas, desse modo, toda a vida do mosteiro se apresenta como a execução de uma “obra divina”, mas Basílio tem cuidado de multiplicar os exemplos tirados do trabalho manual: como a fabricante, enquanto bate o metal, tem em mente a vontade do comitente, assim também o monge segue com cuidado “toda sua ação, pequena ou grande (pasan energeian kai mikran kai meizona)”, porque é consciente a todo instante de fazer a vontade de Deus (Regulae fusius tractatae, Pg, 31, 921-923). Mesmo na passagem da Regola del maestro na qual os ofícios divinos são claramente distinto dos trabalhos manuais (opera corporalis[12]), estes últimos devem, no entanto, ser seguidos com a mesma atenção com a qual se seguem os primeiros: enquanto o irmão segue um trabalho manual, deve fixar a atenção na obra e ocupar a mente (dum oculis in laboris opere figit, inde sensum occupat[13]); não surpreende, portanto, que os exercitia actuum, que se alternam com o ofício divino, sejam definidos pouco depois como uma “obra espiritual” (spiritale opus[14]). A espiritualização da obra das mãos que desse modo se realiza pode ser vista como um precursor significativo daquela ascese protestante do trabalho, em relação à qual o capitalismo, segundo Max Weber, representa a secularização. E se a liturgia cristã, que culmina na criação do ano litúrgico e do cursus horarum, foi eficazmente definida uma “santificação do tempo”, no qual todo dia e toda hora são constituídos como um “memorial das obras de Deus e dos mistérios de Cristo”[15], ao contrário, o projeto dos mosteiros pode ser precisamente definido como uma santificação da vida por meio do tempo.
A continuidade da escansão temporal, interiorizada na forma de uma perpensatio horarum, de uma articulação mental do transcorrer das horas, torna-se aqui o elemento que permite agir sobre a vida dos indivíduos e da comunidade com uma eficácia incomparavelmente maior do que aquela que podia atingir o cuidado de si dos estóicos e dos epicureus. E se nós estamos hoje perfeitamente habituados a articular nossa existência segundo tempos e horários, e a considerar também a nossa vida interior como um decurso temporal linear e homogêneo, e não como um alternar-se de unidades discretas e heterogêneas para medir segundo critérios éticos e ritos de passagem, não devemos, entretanto, esquecer que é no horologium vitae dos mosteiros que tempo e vida foram pela primeira vez intimamente sobrepostos até quase coincidir.
[1] VOGÜÉ, A. De. La règle du maître, a cura di A. de Vogue, “Sources Chrétiennes” 105, Paris, Cerf, 1964, 3 vol. p. 266.
[2] Idem. p. 172.
[3] Ibid. p. 170.
[4] Ibid.
[5] IPPOLITO. La tradition apostolique de S. Hippolyte, a cura di B. Botte, “Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forschungen” 39, Munster, Aschendorff, 1963. p. 90.
[6] Idem. p. 92.
[7] Ibid. p. 96.
[8] CASSIANO, Jean CASSIEN. Institutions cénobitiques, a cura di J.-C. Guy, “Sourcs Chrétiennes” 109, Paris, Cerf, 2001. p. 92.
[9] CASSIANO, Jean CASSIEN. Conferences, a cura di Pichery, “Sources Chrétiennes” 64, vol. 3, Paris, Cerf, 1959. p. 40.
[10] Idem. p. 83.
[11] VOGÜÉ. Op. Cit. p. 372.
[12] Idem. p. 224.
[13] Ibid.
[14] Ibid.
[15] RIGUETTI, Mario. Storia liturgica, vol. 2, Milano, Ancora, 1950. p. 1.
Giorgio Agamben. Altissima Povertà. Regole monastiche e forma di vita. Vincenza: Neri Pozza Editore, 2011. pp. 30-37. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: Fra Angelico. São Francisco recebendo os estigmas. 1429. Pinacoteca Vaticana, Roma.
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