A dor "esquecida" se entranha e se alastra.
Ao acordar percebi o movimento dos sonhos ainda de forma muito latente. Todas as histórias fantásticas vividas ao longo da noite, tudo aquilo que agora deveria tratar com o carinho lírico, o mesmo com o qual devemos tratar nossas memórias, era imóvel imagem da criação mais fantástica do homem: a eternidade. O porvir, as sombras de um futuro incerto, confundia-se com imagens, da mesma forma incertas, de um passado. No entanto, sabia que o carinho a estas despendido era apenas uma maneira de tentar moldá-las, ou melhor, emoldurá-las em quadros nos corredores das lembranças. Doce ilusão; aliás, ingênuo imaginário. Nem o passado, nem o futuro ganham forma plena, definitiva, estática. Nem mesmo os sonhos, que há pouco preenchiam o vazio da escura noite, poderiam adoçar a angustiosa sensação de estar aqui, presente, nesta criação um pouco menos fantástica do homem: o tempo. A perspectiva futura, engano da esperança no porvir, e as reminiscências do passado, engano do medo do findar; não me restava senão a contra-face animada da vigília: não o puro sono vazio e na escuridão, mas o sono animado por um "h", o sonho. Talvez aqui encontre não a eternidade ilusória da simultaneidade dos tempos - o ver in totum o que agora vemos em parte; o contemplar face a face o que agora videmus nunc per speculum in aenigmate -, mas uma composição meticulosa dos vários tempos no tempo presente. Talvez seja hora de despertar e, vendo-me na iminência de fazê-lo, sinto que acabo de presentear a Troia dos sonhos com um cavalo de madeira repleto da angústia que irá, a todo custo, forçar-me a encarar as ilusões do tempo e da eternidade nas superfícies e dobras imperfeitas das minhas imagens de presente. E talvez assim Valéry possa me dizer que "o homem só é homem na superfície. Levante a pele, disseque: aqui começam as máquinas. Depois, você se perde numa substância inexplicável, estranha a tudo o que você conhece e que é, entretanto, o essencial."
Imagem: Tintoretto. Lamentação sobre o Cristo morto. 1560. Gallerie dell'Accademia, Venezia.
Um comentário:
Eu vi Moisés atravessar o Mar Vermelho, vi Maomé cair na terra de joelhos, vi Pedro negar Cristo por três vezes diante do espelho. Eu entendo este texto, eu entendo a saudade do futuro e (quase) insuportável urgência do agora. Os imperativos do tempo são meus senhores. Belo post.
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