segunda-feira, 10 de outubro de 2011

À margem da Leitura de Jesi



A complexa dialética entre lugar comum e mito, na qual a leitura de Jesi situa a obra de Rimbaud, leva à original configuração da relação entre esta última e a própria vida do poeta. Mas onde a interpretação comum procura hipocritamente os sinais daquilo que a ela permanece inexplicável, a renúncia à literatura por parte do gênio, ainda na literatura, em que tudo por meio dessa termina, no fundo, na aura que circunda a imagem do enfant, este ensaio escolhe desde o início o arcano e se desvincula dos seus traços enganáveis: a obra não é a chave da biografia porque nesta não estavam contidos os sinais de seu próprio abandono. A poesia não se reduz à premonição do próprio fim.
"Existem obras de arte que têm o privilégio de ser compostas de lugares comuns e de tornar-se elas próprias um lugar comum à superfície da criação do artista." A noção de lugar comum indica aqui a reificação à qual a obra, ainda que "novíssima quanto ao seu presumido ser em si", necessariamente se expõe quando quer ser apreciada; "composta de lugares comuns" não é simplesmente a composição poética que acolhe expressões triviais, mas a "escrita para que a vejam", a obra mesma enquanto coisa e, como tal, já notória. Daqui, no entanto, também aquilo a que Jesi chama o seu privilégio: "o Bateau ivre foi escrito 'para que o vejam os de Paris', mas é uma coisa, uma mercadoria, oferecida objetivamente também à posteridade." Se não se cai no significado banal do termo lugar comum, ou seja, se não se descuida de considerar exatamente a obra, isso deve significar que essa (precisamente enquanto exposição ao lugar comum) expõe o lugar comum mesmo. ("O Bateau ivre não apenas é o atuar-se do lugar comum... mas é um paradigma... do processo desse atuar-se").
Não deverá ser colocada, portanto, nem a pergunta sobre a obra (enquanto ser em si) como chave da biografia, nem aquela sobre a vida como explicação da poesia. O privilégio do Bateau ivre, que o subtrai antes de tudo à leitura banal, consiste no fato de que exatamente nele se joga a relação entre vida e escritura. Isso significa que não se dá nenhuma solução, se a entendermos ora em relação à 'vida', ora à 'poesia', porque ambas são entrelaçadas originariamente à matéria poética. Há, com as palavras de Jesi, uma afinidade objetiva entre a condição "de lugar comum" e a condição da infância (que aqui define a diversidade mesma do poeta). E é tal afinidade já ulterior em relação ao domínio do enfant, exatamente porque nela há contemporaneamente o estatuto de mercadoria da criação. Situação, portanto, irredutível àquela infantil, ao tempo do diverso, como àquela outra, correlata, do monumento, porque o seu tempo é o da suspensão. É exatamente isso que Jesi chama de revolta: e nela não reconhece apenas o traço de uma eventual participação de Rimbaud nas batalhas da Comune - porque do outro lado das barricadas permaneceria ainda a figura mítica do poeta irresponsável -, mas aquele tempo que, sem substanciar-se na revolução (isto é, em um âmbito ainda separado da vida), suspende em primeiro lugar o vínculo entre a novidade por excelência da criação, a sua força mais exclusiva, e o monumento erigido no mundo dos adultos, no qual o próprio poeta, finalmente inofensivo, viria a ser transformado.
O caráter constitutivo da afinidade, a condição da revolta, é o modo específico no qual os lugares comuns atingem a superfície da obra. Jesi distingue três estratos de sentido ou articulações desse atingir sem, no entanto, isolá-los: a insurreição advém na sua "efetiva simultaneidade". Mas o gesto verdadeiramente resolutivo é o que conecta a existência autônoma do lugar comum à esfera do mito, a operação alquímica por meio da qual este se introduz na obra no funcionamento da máquina mitológica. A chave da revolta é então a "Alchimie du verbe", e com isso ela é fundada sobre o plano da linguagem. É aqui que se decide a adesão deliberada ao invés da inconsciente. A máquina mitológica, de fato, "induz a crer que ela mesma sela o mito dentro das próprias paredes impenetráveis" e remete, em última instância, a um vazio de ser. Exatamente deste último obtém a sua existência particular. Há, portanto, uma falsa alternativa, ou melhor, uma não alternativa da linguagem em relação ao outro mundo que não há. Deste "pode-se declarar um 'não é' perfeitamente coincidente com o argumento ontológico", e aqui, atingindo aquele grau de verdade no qual Kafka tinha reconhecido na pura alegoria a realidade enquanto tal, Jesi introduz a segunda modalidade desse não há: ao lado do simples não é, o aqui não é (ci non-è). Se o estatuto ontológico do primeiro é a mera igualdade (entre é e não é) que é chamada adesão involuntária, o aqui confere ao não é a consciência e a voluntariedade e o seu estatuto é o da pura suspensão. O "j'aimais" de Rimbaud para os lugares comuns é o seu modo de exibir-lhes a existência, de pronunciar o aqui não é e de fundar a objetiva afinidade que suspende o vínculo entre novíssima e novíssimos (novidade absoluta, profecia e monumento, novíssimos na acepção de retaguarda); suspensão, entretanto, que é e permanece tal, que não quebra a raiz mitológica do tempo situando-se ainda no interior da máquina; suspensão na qual vige a afinidade do produtor com a irresponsabilidade infantil e graças à qual o poeta não renuncia a si mesmo, mas única e exclusivamente durante o tempo justo da obra, repetível e não irrevogável. A profecia da revolta, o seu pronunciamento, o "aquilo que foi prometido realizar-se-á", a ação cujo fruto é a ação mesma, a suspensão em todas as fórmulas extraordinárias com as quais Jesi soube nos mostrar, tem, portanto, como caráter peculiar não ser irrevogável. Mas isso significa que a mesma interrupção do vínculo permanece relegada na experiência poética. Daqui a sua falência, a escolha de renunciar à poesia que abre a segunda parte da vida de Rimbaud, êxito puramente gestual que confirma o revés no plano linguístico.
Num sentido, entretanto, a falência é aqui somente aparente. Diante da passagem "do lugar comum em sede de poesia ao lugar comum em sede gestual", do momento de revolta ao momento de revolução, não nos encontramos mais diante da escolha entre não é e aqui não é, convergente no remetimento ao vazio de ser, mas diante do aqui não é e o não é enquanto tais. Se a condição imprescindível da falsa alternativa é, de fato, a total adesão a uma das suas opções, a posição de Jesi difere por definição seja daquela do revolucionário (não é) quanto da do revoltoso (aqui não é). Assim, a "revolução solitária e pessimista que procede da convicção da impossibilidade de quebrar a raiz do tempo" não é o êxito, por sua vez pessimista, da Leitura, mas o modo mais coerente de levar ao nível extremo de exposição a máquina mitológica (e não apenas o mito, o lugar comum). Não somente a obra, mas essa vida de adulto, "vivida também ela como uma mercadoria", leva consigo um privilégio. Claro, Rimbaud não quebra a raiz mítica do tempo, não interrompe o funcionamento da máquina que continua a selar o ser do lugar comum, mas o abanono da obra é também o definitivo abandono à posteridade da obra enquanto lugar comum, isto é, exposição do mecanismo. A solução, a suspensão da própria suspensão, exatamente na medida em que não compete a Rimbaud, torna-se propositiva: "quebrar essa raiz significaria dispor de uma linguagem ou de um complexo de gestos tais para afrontar a máquina mitológica num plano que consentisse declarar ao mesmo tempo a existência e a não existência daquilo que a máquina diz conter." Essa não é uma conclusão, mas, justo no seu caráter aparentemente negativo, uma indicação de importância capital. No ensaio A festa e a máquina mitológica, Jesi escreverá quase programaticamente: "estudar o funcionamento da máquina..., apreender o fato mitológico em ato, in flagranti, já que a máquina mitológica com a sua presença que funciona é um constante remeter à tensão entre pré-existente e existente enquanto produto da máquina, e tal questão perenemente irresoluta constitui a atualidade, o flagrante do fato mitológico." Essa atualidade mostra-se de modo particular em determinadas obras que no ensaio sobre a festa são aquelas em que uma relação com o mito permanece como enfraquecida e dissolvida do seu sentido originário: quanto menor é nelas a força vital e a influência imediata do conteúdo mítico, mais evidente a "presença que funciona" do instrumento no qual se insere. Seriam as produções tardias? Aquelas modernas? Jesi não dá exemplos, porque não se trata de reconhecer ou classificar um determinado grupo de obras, mas do seu modo específico de cumprir-se.
O privilégio do Bateau ivre é, talvez, reconhecível em tal sentido. Podemos dizer, de fato, que o "lugar comum" seja o mito assim como permanece na época moderna e que, nesta, a relação constitutiva da mitologia se funda sobre o estatuto de coisa. Mas não somente. Porque o Bateau é também a obra que advém como coisa, isto é, pela qual o lugar comum (o mito) cumpri-se como dissolvido do seu motivo inicial. Podemos então dizer que o privilégio consiste nisto: diante da obra de Rimbaud nós não nos encontramos simples e inicialmente diante do lugar comum, diante da falsa alternativa em relação à sua existência (isto é, ainda no interior da máquina). Se o revolucionário nega tal existência (para negá-la) afirmando-a inconscientemente, se o revoltoso atua uma suspensão que, não podendo quebrar a raiz do tempo, permanece por sua vez bloqueada, eis o gesto extremo de Rimbaud: na falência da revolta e a ela coerente, como que a cristalizou, tornou-a irrepetível e, na própria falência, potencializada. Uma força muda da desilusão: é talvez esse o sentido da parte conclusiva do ensaio, que não acrescentaria nada e não teria motivo, como simples descrição de uma impossibilidade. Haveria, portanto, para nós, algo que se transmite como privilégio e que Rimbaud entregou à posteridade de modo verdadeiramente irrevogável. É o que Jesi exprime no conceito de flagrante.
"Existem obras de arte que têm o privilégio de ser compostas de lugares comuns e de tornar-se elas próprias um lugar comum à superfície da criação do artista. Nelas, o itinerário aparente que procede da novidade por excelência da operação criativa in flagranti e atinge a não-novidade por excelência da estátua erigida pela posteridade do criado, fecha-se de fato em um só ponto: espécie de pústula obscura sobre a superfície de mármore, na qual todas as impurezas da pedra estão confluídas - escória saliente e ponto de referência."
Isso significa que nestas obras, para quem as sabe ler, ou seja, entender o lugar comum dissolvido do seu sentido originário de coisa, mesmo que no seu permanecer (sem por isso "edificar um monumento"), a máquina mitológica (ou operação criativa) não entra simplesmente em função, mas, segundo a modalidade particular do aqui, mostra-se em função. Esse mostrar-se, o flagrante, portanto, é o caráter irrevogável da suspensão.
Podemos nos perguntar se tudo isso valha apenas para a Leitura de Jesi, isto é, unicamente no plano linguístico, ou, considerado da parte de Rimbaud, somente no plano gestual, e se, por isso, não se cai numa vazia separação entre vida e escritura. O que indica, de fato, a palavra flagrante senão uma indistinguibilidade entre linguístico e gestual? Nessa, que nos parece uma categoria central do pensamento de Jesi, vale o estatuto gestual da linguagem e ao mesmo tempo aquele linguístico do gesto.

Andrea Cavalletti. In margine alla Lettura di Jesi. In.: Furio Jesi. Lettura del "Bateau ivre" di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996. pp. 33-37. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

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