Entrevista com Giorgio Agamben
por Alessandro Leogrande
Como a comédia dialoga (desde sempre) com a política. Um
ciclo de afrescos de Giandomenico Tiepolo é o ponto de partida do último livro
de Giorgio Agamben
Entre 1793 e 1797, Giandomenico Tiepolo, filho de Giambattista, realiza um
ciclo de afrescos sobre Pulcinella na Villa di Zianigo, que herdou do pai e em
cujo interior se refugiou depois de ter abandonado Veneza. Justamente em 1797,
quando Tiepolo termina os dois últimos afrescos, a milenária República de
Veneza se extingue. Enquanto um antigo mundo desmorona ruidosamente,
Tiepolo parece tão obcecado pela figura de Pulcinella, por sua vida, por suas
mil aventuras, por suas mortes e inacreditáveis reaparições, a ponto de a ela
dedicar – além das pinturas da Villa, hoje conservadas no Ca’Rezzonico – as 104
placas de um álbum de desenhos intitulado Divertimento per li regazzi. A
série de placas sobre Pulcinella, iniciada exatamente nos dias seguintes ao fim
da República, é seu último trabalho.
Mas quem é Pulcinella para Tiepolo? É uma máscara ou um
homem? Um deus ou um demônio? E que relação há entre a comédia e a crítica de
uma sociedade que muda e desmorona de maneira tumultuosa? A essas e outras
perguntas Giorgio Agamben tenta responder em um densíssimo ensaio que,
acompanhado das placas de Giambattista e Giandomenico Tiepolo, há pouco foi
publicado pela editora Nottetempo: Pulcinella ovvero Divertimento per li
regazzi.
Por meio de Tiepolo, e indo além de Tiepolo até voltar a
Platão, Agamben se interroga sobre a íntima relação que liga a comédia à
filosofia e sobre as linhas de fuga
que se podem abrir no interior de ambas. De modo particular, aquelas linhas de
fuga que nos permitem olhar o mundo que nos circunda, nossa própria existência,
com um olhar renovado.
No livro de Agamben, Pulcinella chega quando a política
morre: não simplesmente no sentido de que não consegue mais funcionar, ou de
que parece frágil diante dos outros poderes – econômicos, oligárquicos ou até
mesmo imperiais –, mas no sentido literal do termo. Morre porque renuncia ao próprio
papel, não podendo mais garantir o objetivo último pelo qual existe: a própria
sobrevivência da polis. Agamben tem em mente a extinção da República de Veneza,
em 1797, entregue a Bonaparte, e por este cedida à Áustria, a ponto de ter
feito Ugo Foscolo dizer, nas Últimas
cartas de Jacopo Ortis, que “a vida, ainda que nos seja concedida, só
restará para que choremos nossos desastres e nossa infâmia.” Mas, ao mesmo
tempo, coloca um explícito paralelismo entre o fim de Veneza, em 1797, e “o
eclipse da política e o reino da economia planetária”, no século XXI.
Pulcinella ovvero
Divertimento per li ragazzi
é um livro que oferece infinitas reflexões e suscita inúmeras perguntas.
Algumas destas colocamos diretamente para o autor.
De que modo a máscara de Pulcinella pode
constituir uma linha de fuga para ambos os eclipses?
Certamente Pulcinella é, para Giandomenico Tiepolo, aquilo
que sobrevive ao fim de seu mundo, à morte da Veneza que havia conhecido e
amado – nesse sentido, ao fim da política. Mas não é, apesar de tudo, apenas
uma figura impolítica. É, sobretudo, aos meus e, talvez, aos seus olhos, a
figura de uma outra política, para a qual nos faltam os nomes, a política que
começa quando toda ação tornou-se impossível. O que suas piadas e gestos mostram
é o que pode um corpo quando não pode mais agir politicamente. Por isso me
interessa. Penso que o modelo da política que conhecemos, fundado sobre a ação
e sobre a luta, no contexto do domínio da economia e do estado de segurança em
que vivemos, tenha se tornado obsoleto. O paradigma da luta, que monopolizou a
imaginação política da modernidade, deve ser substituído por aquele da linha de
fuga. Penso que na Grécia o Syriza teve de capitular justamente porque havia se
empenhado numa luta sem saída, renunciando à única via possível: a saída da
Europa. E isso não é verdade apenas na política, mas também para a existência
individual: o essencial, em todo caso, e Kafka não se cansa de lembrar, não é
lutar, mas encontrar uma linha de fuga. Como diz Pulcinella: ubi fracassorium, ibi fuggitorium, onde há
uma catástrofe, aí há uma linha de fuga.
Os governos nacionais europeus dos
nossos dias são mais ou menos despolitizados do que a República veneziana que
renunciou à sua independência?
Trata-se de dois fenômenos diversos. O eclipse da política que nós conhecemos
se inscreve no domínio planetário do paradigma econômico e tecnológico. A
abdicação de Veneza diante de Napoleão parece, pelo contrário, apenas fruto
da vileza e da insensatez. Naturalmente, isso não significa que nossos
políticos não sejam tolos e vis. Pulcinella me fascina porque exibe em seu
próprio corpo os vícios do mundo onde vive, e porque também ele é insensato e
vil. Ao mesmo tempo, no entanto, ele mostra como, uma vez liberados de sua
inscrição no poder, estes mesmos defeitos podem se tornar a cifra de uma outra
humanidade, de uma superior anarquia. Também a anarquia, com efeito, pode ser
compreendida apenas se primeiramente é liberada de sua apreensão no poder,
apenas se nos lembramos, como Pasolini faz dizer um hierarcas de Saló, de que a
anarquia pertence antes de tudo ao poder.
Mais do que utilizar a piada como um fim
em si mesmo, Pulcinella usa a linguagem de maneira desestruturada. Pulcinella
está sempre em outro lugar, leva consigo o discurso a um outro nível, implode-o
depois de o ter feito girar em trocadilhos em cuja lógica se perde. É por certo
um modelo destituinte, ainda que não seja uma figura propriamente humana.
Se, de um lado, a
resposta de Pulcinella não é impolítica, de outro pode constituir um modelo
político aquilo que está além da vida e, portanto, é também outro em relação a
nós? Ou permanece apenas uma esplêndida utopia teatral?
Desde a origem, em nossa cultura, existe um nexo
constitutivo entre política e teatro, que a deriva exclusivamente estética de
nossa concepção da arte nos impede de perceber. Sem a tragédia e a comédia não
é possível compreender a vida pública da polis
grega. Elas, em conjunto com a dança, pertenciam à esfera que os gregos
chamavam de música, mousiké, cuja
relação com a política era tão estreita que, na República, Platão pode escrever que não é possível mudar os modos
musicais sem mudar as leis fundamentais da política. Ou seja, os gregos sabiam
que é possível manipular e controlar uma sociedade não apenas por meio da
palavra, mas também, e acima de tudo, por meio da música. Nesse sentido, o
estado da música (no sentido lato do termo) define a condição política de
determinada sociedade melhor e antes do que qualquer outro índice, e, ao se
querer mudar verdadeiramente o ordenamento de uma cidade, é sobretudo
necessário reformar sua música. Pense na função de intromissão da música em
nossa sociedade em todo lugar e a todo momento, o que serve essencialmente para
tornar impossível o pensamento.
No teatro contemporâneo aconteceram
algumas tentativas de realizar de modo concreto algo que se aproximasse de uma
dimensão utópica. É impossível, por exemplo, não pensar em uma corrente cárstica
que atravessou todo o teatro da segunda metade do século XX, de Grotowski a
Kantor, do Living Theatre a Barba dentre outros. Tal linha de fuga – mantida
para criar comunidades teatrais, e não só para fazer teatro – por vezes foi uma
forma de abandono radical do campo da política. Outras vezes produziu,
implícita ou explicitamente, uma radical rediscussão dos termos da política...
Nesse sentido, as máscaras da Comédia da Arte, como também o
teatro da segunda metade do século XX que o senhor cita, tinham um indiscutível
significado político. Mas também teológico (teologia e política em nossa
cultura são intimamente ligadas): nosso termo “pessoa” deriva da teologia
trinitária (as três “pessoas” divinas), mas provém, em última análise, do
teatro e significa “máscara”. Quando se fala de Pulcinella, é preciso perceber
por trás de sua máscara todos esses significados.
Na comédia O filho de Pulcinella, de Eduardo De Filippo, Pulcinella tira sua
máscara. Isso acontece também em uma canção do primeiro álbum de Pino Daniele, Suonno d’ajere: aqui, Pulcinella levanta
sua máscara, não faz mais rir e endoidar,
porque diante dela não há mais uma Nápoles tragicômica, mas, de fato, trágica.
Diante de tal contexto radicalmente novo (a incipiente Nápoles de Gava e
Cutulo...) não se pode mais rir e, portanto, sua ação é destituída de fundamento.
Pulcinella desarticula o tragicômico, mas não o verdadeiro trágico?
É preciso não esquecer que Eduardo pertence a uma tradição
antipulcinellesca, a de Scarpetta, que removeu a imagem de Pulcinella do teatro
de San Carlino. Ao contrário, escrevi esse livro justamente para provar que a
comédia é desde a origem ligada à política e à filosofia. Não se deveria
esquecer que as comédias de Aristófanes foram escritas em um momento catastrófico
da história de Atenas, como por exemplo Os
Arcanânios, quando o território é devastado pela guerra com Esparta e os
camponeses foram assassinados na cidade onde por duas vezes a peste se
alastrou. Tanto em Atenas quanto em Nápoles, e muito mais do que a tragédia, a
comédia sempre teve um íntimo significado subversivo ou, como prefiro dizer
hoje, destituinte. Pulcinella mostra que ainda há algo para fazer quando não é
mais possível agir, e ainda há algo para dizer quando não é mais possível
falar.
É a tragicomédia o verdadeiro caráter
nacional italiano?
Foi Dante, escolhendo o título de seu poema, que colocou a
cultura italiana sob o signo da comédia e não da tragédia. Trata-se de algo
mais profundo do que de um caráter, pois em questão está a resposta que se dá a
algumas perguntas fundamentais que dizem respeito à ética e à política, como a
inocência e a culpa. Mas, mais do que de tragicomédia, prefiro falar, como
gostava Manganelli, de “hilaro-tragédia”. Pulcinella acaba com os confins que
separam os dois gêneros e o espaço que se abre entre eles, que não é mais nem
trágico nem cômico, mas nem mesmo tragicômico, é o que me interessa.
O Divertimento
de Tiepolo é para os meninos. Fica impedido, portanto, a quem não é pequeno
ou não sabe fazer-se pequeno como eles? O mundo adulto é intrinsecamente
anti-pulcinellesco?
É óbvio que os meninos não devem ser entendidos em sentido
literal. O mundo adulto que Pulcinella coloca em questão é o sistema dos
lugares comuns e dos valores preestabelecidos que nos governam. Como em Lo cunto de li cunti, de Basile, os
menininhos [piccirille] são o símbolo
de uma humanidade mais verdadeira.
Lendo seu Pulcinella é forte a impressão
de que ele seja um de seus livros mais autobiográficos, ou, ao menos, um
daqueles em que de maneira muito mais forte emerge o Eu de quem escreve, o Si
de quem escreve, ao lado da reflexão filosófica.
O Divertimento per li regazzi, de
Giandomenico Tiepolo, é, em certo sentido, uma biografia de Pulcinella, e é
possível que ele aí pretendia escrever, nas entrelinhas, sua autobiografia.
Mas, para mim, Pulcinella é a impossibilidade de uma autobiografia. Só se pode
viver – essa é sua lição – aquém ou além da vida, isto é, além ou aquém da
própria biografia.