domingo, 11 de dezembro de 2016

Pequeno parágrafo sobre a geometria II


Onde desagua o rio Eufrates? Talvez à soleira do primeiro grande poema divino. Naquele tempo, dizia-se que deus havia combinado as palavras e, esquadro em mãos, riscou em seu corpo a passagem dos grandes rios. Fizeram-se, assim, todas as coisas: dos dados lançados por um poeta vindouro ao fogo nas mãos de algum homem das cavernas. E aquele tempo se fez presença do mundo, e o mundo tornou-se o corpo de deus e a vida dos homens, e não havia mais sentido no corpo divino do que nas palavras com as quais procuramos, desde então, o encontro das águas. Seguimos sujos na caça da língua que supomos pôde um dia ser dita enquanto alguém navegava o grande Eufrates. E tudo não passou de um poema lido antes de dormir e de uma voz portuguesa a dizer: "Mas um poema só é toda a vida de um homem e tenho por manobra de diversão revelar a outrem uma coisa não menos íntima do que a mais íntima peça de roupa." 

Imagem: Kasimir Malevich. O homem correndo. 1933. Georges Pompidou, Paris.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Salvo os homens e os cães


Durante a primavera de 1987, frequentei o último curso de Deleuze, em Saint-Denis, e jamais me esquecerei o quanto de generosidade e liberdade aquela voz me trouxe. Vinte anos antes, ao longo de um verão para mim extremamente decisivo, seguia o seminário de Heidegger. Um abismo separa esses dois filósofos, sem dúvida os maiores de nosso século. Os dois pensaram com uma coragem extrema a existência, a partir da facticidade, e o homem enquanto o ser que é apenas seus modos de ser. Mas a tonalidade fundamental de Heidegger é a de uma angústia dolorosa e quase metálica, na qual toda propriedade e todo instante se contraem e tornam-se tarefa a ser realizada. Nada, ao contrário, exprime melhor a tonalidade fundamental de Deleuze do que a sensação que ele gostava de denominar com uma palavra inglesa: self-enjoyment. No dia 17 de março, segundo minhas notas, para explicar esse conceito, ele começou expondo a teoria plotiniana da contemplação. "Todo ser contempla", dizia citando livremente de memória, sim, todo ser é uma contemplação, mesmo os animais, mesmo as plantas (salvo os homens e os cães, acrescentou, que são animais tristes, sem alegria). Vocês dirão que eu estou brincando, que é uma piada. Sim, mas mesmo as piadas são contemplações... Tudo contempla, a flor e a vaca contemplam mais do que o filósofo. E, ao contemplar, elas se enchem de si mesmas e se alegram. O que elas contemplam? Contemplam seus próprios pressupostos [réquisits*]. A pedra contempla o silício e o calcário, a vaca contempla o carbono, o nitrogênio e os sais. Isso é o self-enjoyment. Não é o pequeno prazer de ser si mesmo, o egoísmo, é essa contração dos elementos, essa contemplação dos próprios pressupostos que produz alegria, a ingênua confiança de que isso vai durar, sem a qual não seria possível viver, pois o coração pararia. Nós somos pequenas alegrias: ser contente consigo [être content de soi] é encontrar em si mesmo a força para resistir à abominação. 
Aqui minhas notas param e é assim que vejo minhas lembranças de Gilles Deleuze. A grande filosofia deste século taciturno, que havia começado pela angústia e termina na alegria.

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* Réquisits exprime a ideia de algo que é indispensável para um fim preciso. Nesse sentido, alguns dicionários também trazem como sinônimos: exigência, necessidade, aspiração  

Giorgio Agamben. Sauf les hommes et les chiens. Publicado originalmente em 07/11/1995, isto é, três dias após a morte de Deleuze, no semanário Libération Disponível em: http://next.liberation.fr/culture/1995/11/07/sauf-les-hommes-et-les-chiens_150475 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)  

Imagem: Gilles Deleuze em Saint-Léonard de Noblat, em 1994.


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Pound: não termina nunca o naufrágio do Ocidente




Giorgio Agamben

Não se compreende a obra de Pound se, antes de tudo, ela não é colocada em seu contexto próprio. Tal contexto coincide com uma fratura sem precedentes na tradição do ocidente, uma fratura da qual o ocidente não apenas ainda não saiu, mas nem ao menos poderá fazê-lo se, primeiramente, não estiver à altura de dimensioná-la em sua importância decisiva. Depois do fim da primeira guerra mundial estava claro, de fato, para quem tivesse mantido a lucidez, que algo de irrecuperável acontecera na Europa e que o nexo entre passado e presente havia se rompido. Que os primeiros a se dar conta tenham sido os poetas e os artistas não deve espantar, uma vez que é a eles que está incumbida, em qualquer tempo, a transmissão do que há de mais precioso: a língua e os sentidos. Não é possível nem sequer colocar o problema das vanguardas poéticas do século XX se não se compreende preliminarmente que elas são a tentativa de responder – com maior ou menor consciência, a depender do caso – a essa catástrofe: elas não têm a ver com a poesia e com as artes, mas com sua radical impossibilidade, com o ocaso das condições que as tornavam possíveis.

A transposição, em termos estético-mercantis, da crise epocal que se expressou nas vanguardas é, por isso, uma das páginas mais vergonhosas da história do ocidente, das quais os museus de arte contemporânea representam hoje o extremo e mais indolente desdobramento. O que nas vanguardas estava ligado à possibilidade de sobrevivência do homem enquanto ser espiritual foi reduzido a um fenômeno de moda e liquidado de uma vez por todas em forma de produção de novas mercadorias [...]. Apenas nesse contesto a obra de Pound – ao menos a partir dos primeiros Cantos – torna-se inteligível. Ele é o poeta que se colocou com mais rigor, e quase com “absoluta insolência”, diante da catástrofe da cultura ocidental. De maneira muito mais decisiva do que Eliot, ele permanece nessa “terra devastada” – um inferno que, como sugere no canto XLVII, não se pode crer, como o fez o “reverendo Eliot”, poder “atravessar com pressa”. Mas justamente por isso, para ele “todas as eras são contemporâneas”, e ele pode referir-se de imediato à toda história da cultura, de Homero a Cavalcanti, de Mani a Mussolini, de Dante a Browning, de Perséfone a Woodrow Wilson, de Confúcio a Arnaut Daniel. “Apenas Pound”, disse Eliot, “é capaz de vê-los como seres viventes” – com a condicionante de que, é preciso especificar, nos Cantos eles são, na verdade, apenas fragmentos que saem por um instante do Lete e incessantemente nele mergulham [...].

Se a tradição é acessível apenas como lasca e fragmento, o poeta na caça de formas não vê diante de si entulhos – mesmo se estes são, ao menos para ele, vivos e vitais justamente enquanto fragmentos. Seu canto inaudito é tecido por esses retalhos que, uma vez exaurida sua função, não sobrevivem àquele. Daí a impressão de artificialidade, que com muita frequência e injustamente é deplorada em sua poesia: Pound procede como um filólogo que, na crise irrevogável da tradição, tenta transmitir sem notas de rodapé a própria impossibilidade da transmissão. Na frase do Canto 76, em que ele evoca a si mesmo como scriptor diante do naufrágio da Europa, o termo que obviamente deve ser entendido é “escriba”, não escritor. Diante da destruição da tradição, ele transforma a destruição em um método poético e, numa espécie de acrobática “destruição da destruição”, ainda mimetiza, como copista, um ato de transmissão. Em que medida tal ato consegue, isto é, em que medida o texto ilegível – no qual um ideograma chinês está ao lado de uma palavra grega e um vocábulo provençal responde a um hemistíquio latino – possa ser verdadeiramente lido é uma questão que não é possível ser respondida de maneira brusca.

A verdade e a grandeza de Pound coincidem – isto é, colocam-se e caem – com a resposta a tais perguntas [...]. Daí a importância dos escritos em prosa – como aqueles que, neste volume, dão um amplo testemunho – em que Pound expõe suas ideias sobre a poesia, sobre a economia e a política. Estes escritos são a tal ponto parte integrante de sua produção poética que com razão se pôde afirmar que “os Cantos são obviamente a exposição de uma teoria econômica que procura na história uma exemplificação”. Como um poeta arcaico, Pound se sente responsável do completo paideuma (como ele adora dizer, usando um termo de Frobenius) do ocidente em todos os seus aspectos. “Usura”, “dinheirolatria” e, por fim, “avareza” são os nomes que ele dá ao sistema mental – simetricamente oposto ao “estado mental eterno” que, segundo o primeiro axioma de Religio, define a divindade – que determinou o colapso e ainda hoje domina – bem mais que em seus tempos – os governos das democracias ocidentais, unanimemente dedicadas, mesmo se com maior ou menor ferocidade, ao “assassinato por meio do capital”.


Trecho da Introdução de Agamben ao volume com textos de Ezra Pound Dal naufragio di Europa. Scritti scelti 1909-1965, cura di. W. Cookson (trad.: V. Paradisi). Neri Pozza: 2016, publicado no último dia 01/10/2016, no La Stampa. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Do desastre nos salvará a vileza de Pulcinella



Entrevista com Giorgio Agamben
por Alessandro Leogrande

Como a comédia dialoga (desde sempre) com a política. Um ciclo de afrescos de Giandomenico Tiepolo é o ponto de partida do último livro de Giorgio Agamben

Entre 1793 e 1797, Giandomenico Tiepolo, filho de Giambattista, realiza um ciclo de afrescos sobre Pulcinella na Villa di Zianigo, que herdou do pai e em cujo interior se refugiou depois de ter abandonado Veneza. Justamente em 1797, quando Tiepolo termina os dois últimos afrescos, a milenária República de Veneza se extingue. Enquanto um antigo mundo desmorona ruidosamente, Tiepolo parece tão obcecado pela figura de Pulcinella, por sua vida, por suas mil aventuras, por suas mortes e inacreditáveis reaparições, a ponto de a ela dedicar – além das pinturas da Villa, hoje conservadas no Ca’Rezzonico – as 104 placas de um álbum de desenhos intitulado Divertimento per li regazzi. A série de placas sobre Pulcinella, iniciada exatamente nos dias seguintes ao fim da República, é seu último trabalho. 
Mas quem é Pulcinella para Tiepolo? É uma máscara ou um homem? Um deus ou um demônio? E que relação há entre a comédia e a crítica de uma sociedade que muda e desmorona de maneira tumultuosa? A essas e outras perguntas Giorgio Agamben tenta responder em um densíssimo ensaio que, acompanhado das placas de Giambattista e Giandomenico Tiepolo, há pouco foi publicado pela editora Nottetempo: Pulcinella ovvero Divertimento per li regazzi.  
Por meio de Tiepolo, e indo além de Tiepolo até voltar a Platão, Agamben se interroga sobre a íntima relação que liga a comédia à filosofia e sobre as linhas de fuga[1] que se podem abrir no interior de ambas. De modo particular, aquelas linhas de fuga que nos permitem olhar o mundo que nos circunda, nossa própria existência, com um olhar renovado.
No livro de Agamben, Pulcinella chega quando a política morre: não simplesmente no sentido de que não consegue mais funcionar, ou de que parece frágil diante dos outros poderes – econômicos, oligárquicos ou até mesmo imperiais –, mas no sentido literal do termo. Morre porque renuncia ao próprio papel, não podendo mais garantir o objetivo último pelo qual existe: a própria sobrevivência da polis. Agamben tem em mente a extinção da República de Veneza, em 1797, entregue a Bonaparte, e por este cedida à Áustria, a ponto de ter feito Ugo Foscolo dizer, nas Últimas cartas de Jacopo Ortis, que “a vida, ainda que nos seja concedida, só restará para que choremos nossos desastres e nossa infâmia.” Mas, ao mesmo tempo, coloca um explícito paralelismo entre o fim de Veneza, em 1797, e “o eclipse da política e o reino da economia planetária”, no século XXI.
Pulcinella ovvero Divertimento per li ragazzi é um livro que oferece infinitas reflexões e suscita inúmeras perguntas. Algumas destas colocamos diretamente para o autor.


De que modo a máscara de Pulcinella pode constituir uma linha de fuga para ambos os eclipses?
Certamente Pulcinella é, para Giandomenico Tiepolo, aquilo que sobrevive ao fim de seu mundo, à morte da Veneza que havia conhecido e amado – nesse sentido, ao fim da política. Mas não é, apesar de tudo, apenas uma figura impolítica. É, sobretudo, aos meus e, talvez, aos seus olhos, a figura de uma outra política, para a qual nos faltam os nomes, a política que começa quando toda ação tornou-se impossível. O que suas piadas e gestos mostram é o que pode um corpo quando não pode mais agir politicamente. Por isso me interessa. Penso que o modelo da política que conhecemos, fundado sobre a ação e sobre a luta, no contexto do domínio da economia e do estado de segurança em que vivemos, tenha se tornado obsoleto. O paradigma da luta, que monopolizou a imaginação política da modernidade, deve ser substituído por aquele da linha de fuga. Penso que na Grécia o Syriza teve de capitular justamente porque havia se empenhado numa luta sem saída, renunciando à única via possível: a saída da Europa. E isso não é verdade apenas na política, mas também para a existência individual: o essencial, em todo caso, e Kafka não se cansa de lembrar, não é lutar, mas encontrar uma linha de fuga. Como diz Pulcinella: ubi fracassorium, ibi fuggitorium, onde há uma catástrofe, aí há uma linha de fuga.
 
Os governos nacionais europeus dos nossos dias são mais ou menos despolitizados do que a República veneziana que renunciou à sua independência?
Trata-se de dois fenômenos diversos. O eclipse da política que nós conhecemos se inscreve no domínio planetário do paradigma econômico e tecnológico. A abdicação de Veneza diante de Napoleão parece, pelo contrário, apenas fruto da vileza e da insensatez. Naturalmente, isso não significa que nossos políticos não sejam tolos e vis. Pulcinella me fascina porque exibe em seu próprio corpo os vícios do mundo onde vive, e porque também ele é insensato e vil. Ao mesmo tempo, no entanto, ele mostra como, uma vez liberados de sua inscrição no poder, estes mesmos defeitos podem se tornar a cifra de uma outra humanidade, de uma superior anarquia. Também a anarquia, com efeito, pode ser compreendida apenas se primeiramente é liberada de sua apreensão no poder, apenas se nos lembramos, como Pasolini faz dizer um hierarcas de Saló, de que a anarquia pertence antes de tudo ao poder.

Mais do que utilizar a piada como um fim em si mesmo, Pulcinella usa a linguagem de maneira desestruturada. Pulcinella está sempre em outro lugar, leva consigo o discurso a um outro nível, implode-o depois de o ter feito girar em trocadilhos em cuja lógica se perde. É por certo um modelo destituinte, ainda que não seja uma figura propriamente humana.
Se, de um lado, a resposta de Pulcinella não é impolítica, de outro pode constituir um modelo político aquilo que está além da vida e, portanto, é também outro em relação a nós? Ou permanece apenas uma esplêndida utopia teatral?
Desde a origem, em nossa cultura, existe um nexo constitutivo entre política e teatro, que a deriva exclusivamente estética de nossa concepção da arte nos impede de perceber. Sem a tragédia e a comédia não é possível compreender a vida pública da polis grega. Elas, em conjunto com a dança, pertenciam à esfera que os gregos chamavam de música, mousiké, cuja relação com a política era tão estreita que, na República, Platão pode escrever que não é possível mudar os modos musicais sem mudar as leis fundamentais da política. Ou seja, os gregos sabiam que é possível manipular e controlar uma sociedade não apenas por meio da palavra, mas também, e acima de tudo, por meio da música. Nesse sentido, o estado da música (no sentido lato do termo) define a condição política de determinada sociedade melhor e antes do que qualquer outro índice, e, ao se querer mudar verdadeiramente o ordenamento de uma cidade, é sobretudo necessário reformar sua música. Pense na função de intromissão da música em nossa sociedade em todo lugar e a todo momento, o que serve essencialmente para tornar impossível o pensamento.
 
No teatro contemporâneo aconteceram algumas tentativas de realizar de modo concreto algo que se aproximasse de uma dimensão utópica. É impossível, por exemplo, não pensar em uma corrente cárstica que atravessou todo o teatro da segunda metade do século XX, de Grotowski a Kantor, do Living Theatre a Barba dentre outros. Tal linha de fuga – mantida para criar comunidades teatrais, e não só para fazer teatro – por vezes foi uma forma de abandono radical do campo da política. Outras vezes produziu, implícita ou explicitamente, uma radical rediscussão dos termos da política...
Nesse sentido, as máscaras da Comédia da Arte, como também o teatro da segunda metade do século XX que o senhor cita, tinham um indiscutível significado político. Mas também teológico (teologia e política em nossa cultura são intimamente ligadas): nosso termo “pessoa” deriva da teologia trinitária (as três “pessoas” divinas), mas provém, em última análise, do teatro e significa “máscara”. Quando se fala de Pulcinella, é preciso perceber por trás de sua máscara todos esses significados.

Na comédia O filho de Pulcinella, de Eduardo De Filippo, Pulcinella tira sua máscara. Isso acontece também em uma canção do primeiro álbum de Pino Daniele, Suonno d’ajere: aqui, Pulcinella levanta sua máscara, não faz mais rir e endoidar, porque diante dela não há mais uma Nápoles tragicômica, mas, de fato, trágica. Diante de tal contexto radicalmente novo (a incipiente Nápoles de Gava e Cutulo...) não se pode mais rir e, portanto, sua ação é destituída de fundamento. Pulcinella desarticula o tragicômico, mas não o verdadeiro trágico?
É preciso não esquecer que Eduardo pertence a uma tradição antipulcinellesca, a de Scarpetta, que removeu a imagem de Pulcinella do teatro de San Carlino. Ao contrário, escrevi esse livro justamente para provar que a comédia é desde a origem ligada à política e à filosofia. Não se deveria esquecer que as comédias de Aristófanes foram escritas em um momento catastrófico da história de Atenas, como por exemplo Os Arcanânios, quando o território é devastado pela guerra com Esparta e os camponeses foram assassinados na cidade onde por duas vezes a peste se alastrou. Tanto em Atenas quanto em Nápoles, e muito mais do que a tragédia, a comédia sempre teve um íntimo significado subversivo ou, como prefiro dizer hoje, destituinte. Pulcinella mostra que ainda há algo para fazer quando não é mais possível agir, e ainda há algo para dizer quando não é mais possível falar.
 
É a tragicomédia o verdadeiro caráter nacional italiano?
Foi Dante, escolhendo o título de seu poema, que colocou a cultura italiana sob o signo da comédia e não da tragédia. Trata-se de algo mais profundo do que de um caráter, pois em questão está a resposta que se dá a algumas perguntas fundamentais que dizem respeito à ética e à política, como a inocência e a culpa. Mas, mais do que de tragicomédia, prefiro falar, como gostava Manganelli, de “hilaro-tragédia”. Pulcinella acaba com os confins que separam os dois gêneros e o espaço que se abre entre eles, que não é mais nem trágico nem cômico, mas nem mesmo tragicômico, é o que me interessa.

O Divertimento de Tiepolo é para os meninos. Fica impedido, portanto, a quem não é pequeno ou não sabe fazer-se pequeno como eles? O mundo adulto é intrinsecamente anti-pulcinellesco?
É óbvio que os meninos não devem ser entendidos em sentido literal. O mundo adulto que Pulcinella coloca em questão é o sistema dos lugares comuns e dos valores preestabelecidos que nos governam. Como em Lo cunto de li cunti, de Basile, os menininhos [piccirille] são o símbolo de uma humanidade mais verdadeira.

Lendo seu Pulcinella é forte a impressão de que ele seja um de seus livros mais autobiográficos, ou, ao menos, um daqueles em que de maneira muito mais forte emerge o Eu de quem escreve, o Si de quem escreve, ao lado da reflexão filosófica.
O Divertimento per li regazzi, de Giandomenico Tiepolo, é, em certo sentido, uma biografia de Pulcinella, e é possível que ele aí pretendia escrever, nas entrelinhas, sua autobiografia. Mas, para mim, Pulcinella é a impossibilidade de uma autobiografia. Só se pode viver – essa é sua lição – aquém ou além da vida, isto é, além ou aquém da própria biografia.



[1] Aqui, o termo utilizado por Alessandro Leogrande é vie di fuga, o qual, literalmente, poderia ser traduzido por vias de fuga. No entanto, durante toda a entrevista Agamben irá se utilizar de via d’uscita (literalmente: saída) ou via di fuga (literalmente: via de fuga) e suas variações. Tendo em vista a intimidade de Agamben com conceitos deleuzianos (ademais, nos últimos livros isso se torna ainda mais claro) e, também, o próprio sentido em que utiliza essas noções na entrevista, optei por utilizar o termo linha de fuga e suas variações. (N.T.) 

Entrevista publicada no jornal Pagina 99, em 21 de novembro de 2015, nas páginas 24 e 25. (Trad.: Vinícius N. Honesko)

Imagem: Giandomenico Tiepolo. A partida de Pulcinella. 1797. Ca' Rezzonico.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Estudo sobre a memória XIII



O esquecimento, esta máquina de moldar mundos, invade a verdade em sua forma de rio e por ele navegamos na insidiosa barca de destruir mundos. Ainda há pouco éramos vocacionados à eternidade, mas a polifonia que nos chamava silencia-se com as correntes do rio: os deuses não estavam à margem. O mundo se constrói e se dissolve ao sabor da barca, o rio corta florestas, desertos e, incólume, desagua em forma de delta no sem-sentido ao qual damos o nome de oceano, desde onde um titã, diz-se, certa vez carregou o mundo nas costas. A máquina de moldar mundos antecipa a morte e, com doçura, desgasta pouco a pouco a couraça de nossa barca. Já nos sabemos perdidos, já nos sabemos derrotados, mas ainda assim navegamos deixando, a cada remada, nossos ínfimos rastros no leito do rio que vela a verdade e, desse modo, somente desse modo, somos em alguma medida inesquecíveis.   


Imagem: J.M.W. Turner. Paisagem com rio e baía. 1835-40. Paris, Museu do Louvre.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Pequeno parágrafo sobre a geometria



Enquanto tentava dormir deixei um livro de poemas aberto sobre a mesa à espera de que dele formas geométricas migrassem do eterno. "Fecho os olhos: vejo virem os gestos. O espanto / recamado de mundos caminha / desabaladamente." E nada, neste pré-sonho, me remete às imagens de imagens que dançam desesperadas na memória. São versos que vêm como gestos e embaralho um poema enquanto tento, mais uma vez, dormir. "Fecho os olhos: há outra coisa enorme. / Atrás desta vila há outra vila maior, outra / imagem maior. Há palavras / que é preciso afundar logo noutras / palavras." Pedaços partidos de triângulos perfeitos, uma linha que se quer círculo, um pomar de losangos onde caminho acamado. O espanto porque nenhum poema um dia foi perfeito como um trivial cubo nas mãos de uma criança insone. Não tenho sono mas tento dormir; uma atrás das outras as palavras afundam-se, uma atrás das outras, e só penso em me levantar para fechar o livro como quem encerra o expediente e volta pra casa feliz, sem esperar por nada. Desabaladamente o espanto ao levantar e ver o livro ainda aberto, sobre a mesa, sem mais nenhum verso, apenas um retângulo infinitamente vazio, apenas o vazio que caminha sem mais sonhos nem eternidade.   

Imagem: Kazimir Malevich. Quadrado preto. 1915. Galeria Tretyakov, Moscou. 

domingo, 15 de maio de 2016

"Acredito na ligação entre filosofia e poesia" - Entrevista com Giorgio Agamben



Giorgio Agamben escreveu um belíssimo livro. Seus livros são sempre densos e claros (e imprevisíveis, como o que dedicou recentemente a Pulcinella, publicado pela Nottetempo). Têm o olhar voltado para o passado remoto. É o único modo para intensificar o presente. Tomemos seu último trabalho Che cos’è la filosofia? (publicado pela Quodlibet) e nos perguntemos: o que esconde uma pergunta aparentemente tão óbvia? “É minha convicção”, diz Agamben, “que a filosofia não seja uma disciplina na qual seja possível definir o objeto e os confins (como tentou fazer Deleuze) ou, como acontece na universidade, pretender traçar a história linear e talvez progressiva. A filosofia não é uma substância, mas uma intensidade que pode de uma só vez animar qualquer âmbito: a arte, a religião, a economia, a poesia, o desejo, o amor e até mesmo o tédio. Assemelha-se mais a algo como o vento, ou as nuvens, ou uma tempestade: como estas, produz-se de improviso, agita, transforma e até mesmo destrói o lugar onde se produziu, mas, da mesma forma, imprevisivelmente passa e desaparece”.

Oferece uma imagem volátil da filosofia.

“Tenho o costume de dividir o âmbito da experiência em duas grandes categorias: de um lado, as substâncias e, do outro, a intensidade. De uma substância é possível desenhar os confins, definir os temas e o objeto, traçar a cartografia; a intensidade, pelo contrário, não tem lugar próprio.”

Pode ser verificada em qualquer lugar?

“A filosofia, o pensamento, é, nesse sentido, uma intensidade que pode se estender, animar e percorrer qualquer âmbito. Ela partilha tal característica tensiva com a política. Também a política é uma intensidade, também a política, de modo contrário ao que sustentam os cientistas políticos, não tem lugar próprio: como é evidente não apenas na história recente, tanto a religião, como a economia e até mesmo a estética podem, subitamente, adquirir uma decisiva intensidade política, tornar-se motivo de inimizade e de guerra. É óbvio que as intensidades são mais interessantes do que as substâncias. Se as substâncias e as disciplinas – como, no mais, a vida – permanecem inertes, se não alcançam certa intensidade, elas recaem na práticas burocráticas.”

Um antídoto para a recaída na prática burocrática pode ser a poesia. Com frequência você afirmou a ligação entre filosofia e poesia; isso que o próprio Heidegger colocou no centro de sua reflexão. Em que consiste tal ligação?

“Sempre pensei que filosofia e poesia não são duas substâncias separadas, mas duas intensidades que percorrem um único campo da linguagem em duas direções opostas: o puro sentido e o puro som. Não há poesia sem pensamento, assim como não há pensamento sem um momento poético. Nesse sentido, Hölderlin e Caproni são filósofos, assim como certas prosas de Platão ou de Benjamin são pura poesia. Se dividíssemos os dois campos de maneira drástica, eu mesmo não saberia de que lado me colocar.”

Na sua biografia intelectual há um diploma em Direito, mas com uma tese, certamente insólita, dedicada a Simone Weil. Como nasceu tal escolha?

“Descobri Simone Weil em Paris, em 1963 ou 64, comprando por acaso a primeira edição dos Cahiers na livraria Tschann, em Montparnasse. Fiquei tão deslumbrado com aquilo que, tão logo voltei para Roma, lia-os para Elsa Morante que por ela também foi conquistada. E imediatamente decidi que dedicaria ao pensamento político de Weil minha tese de láurea em filosofia do direito. Naquela época seu pensamento era quase desconhecido na Itália e sobre ela eu sabia muito mais do que os orientadores com quem deveria fazer minha tese.”

O que o tocou de seu pensamento?

“De modo particular a crítica das noções de pessoa e de direito que Weil desenvolve em La personne et le sacré.

Foi a partir dessa crítica que li o ensaio de Marcel Mauss sobre a noção de pessoa e para mim ficou claro o nexo que liga intimamente a pessoa jurídica e a máscara teatral e, em seguida, teológica do indivíduo moderno. Talvez a crítica do direito que jamais abandonei a partir do primeiro volume de Homo Sacer tem no ensaio de Weil sua primeira raiz.”

Uma outra raiz na construção de seu pensamento foi Walter Benjamin.

“Na vida há eventos e encontros que são demasiado grandes para poder acontecer de uma vez por todas. Estes, por assim dizer, não cessam de nos acompanhar. O encontro com Benjamin – como aquele com Heidegger em Le Thor – é desse tipo. Como os teólogos dizem que Deus continua a criar o mundo a cada instante, assim tais encontros estão sempre acontecendo. O débito que tenho com Benjamin é incalculável.”

Débito é uma palavra intensiva.

“Aqui basta acenar apenas para um problema de método. Foi ele que me ensinou a extrair à força de seu contexto histórico aparentemente remoto um determinado fenômeno para restituir-lhe vida e fazê-lo agir no presente. Sem isso, minhas incursões em campos tão diversos como a teologia e o direito, a política e a literatura, não teriam sido possíveis. Quando se frequenta tão intensamente um autor, fenômenos que parecem quase mágicos são produzidos, mas eles são apenas o fruto dessa intimidade. Assim aconteceu comigo quando reencontrei manuscritos de Benjamin: primeiro em Roma, na casa de um amigo seu de juventude, e, depois, na Biblioteca Nacional de Paris (os manuscritos do livro sobre Baudelaire nos quais Benjamin trabalhava nos últimos anos de vida)”.

Nos últimos anos acentuaram-se suas observações sobre a “biopolítica”. É um conceito que deve muito a Michel Foucault?

“Certamente. Mas tão importante quanto para mim foi o problema do método em Foucault, isto é, a arqueologia. Estou convencido de que, hoje, a única via de acesso ao presente seja a investigação do passado, a arqueologia. Sob condição de especificar, como o faz Foucault, que as pesquisas arqueológicas são apenas a sombra que a interrogação do presente projeta sobre o passado. Em meu caso, tal sombra é com frequência maior do que aquela que Foucault perseguia e reveste campos, como a teologia e o direito, que Foucault pouco frequentou. Os resultados de minhas pesquisas por certo poderão ser contestados, mas espero que ao menos as investigações puramente arqueológicas que desenvolvi em Estado de Exceção, O Reino e a Glória ou no livro sobre o juramento ajudem a compreender o tempo em que vivemos.”

Um outro pensador que ajudou a entender o tempo em que vivemos foi Guy Debord, com seu livro A Sociedade do espetáculo, um texto que ainda hoje nos ajuda a compreender nosso presente.

“Eu o li no mesmo ano de sua publicação, 1967. Me tornei amigo de Guy muito tempo depois, no fim dos anos oitenta. Mas lembro, tanto no momento da primeira leitura quanto em nossas conversas, da sensação de alívio ao ver como sua mente era absolutamente livre dos preconceitos ideológicos que comprometeram os destinos dos movimentos. Em 1968 e nos anos sucessivos os amigos dos movimentos de que participava se proclamavam sem dúvidas nem vergonha, e com uma absoluta abdicação da faculdade de pensar, “maoístas”, “trotskistas”, e assim por diante. Guy e eu chegamos à mesma lucidez: ele, a partir da tradição das vanguardas artísticas de que provinha, eu, pela poesia e pela filosofia.

Não obstante a afirmação que você cita, não penso que nele existisse algum conflito entre o filósofo e o estrategista. A filosofia implica sempre um problema de estratégia pois, mesmo se procura o eterno, só o pode fazer por meio de um confronto com seu tempo.”

Nos anos em que você viveu em Paris via com frequência Italo Calvino. Como foi a relação com ele, com suas geometrias iluminantes?

“Ao lado do nome de Calvino gostaria de colocar o de Claudio Rugafiori que, com Italo, sempre via naqueles anos porque trabalhávamos juntos em um projeto de uma revista que jamais viu a luz. A tentativa era de definir aquilo que entre nós chamávamos as “categorias italianas”: duplas de conceitos por meio dos quais procurávamos definir as estruturas fundamentais da cultura italiana: “arquitetura/vagueza”, “tragédia/comédia”, “rapidez/leveza”, esta última que se pode encontrar textualmente nas Lições americanas de Italo. Eu estava fascinado pelo modo como trabalhavam as mentes de Italo e de Claudio.”

O que o seduzia?

“O fato de que fossem duas formas de pensamento puramente analógico, que percebia semelhanças e correspondências onde ninguém saberia encontrar. A analogia é uma forma de conhecimento que nossa cultura lançou cada vez mais às margens. Creio que a ideia de um Calvino geométrico e cientista deve ser corrigida. Ele tinha, isso sim, era uma extraordinária forma de imaginação analógica, uma espécie de instinto fisionômico que lhe permitia redesenhar a cada vez a geografia do saber literário.”

No começo você acenou para sua amizade com Elsa Morante. Como foi a relação com uma mulher com um caráter tão complexo?

“O encontro e a amizade com Elsa para mim foram, em todos os sentidos, decisivos. Uma vez Calvino me disse que era possível frequentar Elsa somente no interior de um culto. Talvez fosse verdade, mas com a condição de especificar que o objeto do culto não era Elsa, mas aqueles deuses – de Rimbaud a Simone Weil, de Mozart a Spinoza – que ela reconhecia e amava partilhar com os amigos. Nisso Elsa era séria, selvagemente séria, e creio que tenha transmitido ao rapaz que eu era um pouco de sua intransigente paixão pela poesia e pela verdade. E desde então penso que não seja possível traçar confins claros entre a literatura e a filosofia.”

Sei que por meio de Morante você conheceu Pasolini. Aliás, você participou, com uma pequena mas bela ponta, de seu Evangelho. Que lembranças tem das experiências no set?

“Do Evangelho lembro da velocidade: Pasolini quase nunca repetia uma cena e cada um falava e se movia como bem entendia. Creio que isto dê a seu cinema a naturalidade que jamais pretende ser realística. A única longa pausa durante as filmagens foi culpa minha. Na Última Ceia vi diante de mim, sobre a mesa, enormes pães fermentados e tive de lembrar a Pier Paolo que para a páscoa judaica o pão tinha de ser ázimo.”

Você também fez menção às suas relações com Heidegger e aos seminários que frequentou em Le Thor em 1966 e 1968. O que para você restou daqueles encontros?

“O encontro com Heidegger, como aquele com Benjamin, jamais acabou. Em minha memória é inseparável da paisagem da Provence, então ainda não tocada pelo turismo. O seminário acontecia pela manhã, no jardim do pequeno hotel onde nos hospedávamos, mas, por vezes, em um cabana durante uma das numerosas excursões pelos prados circundantes. No primeiro ano estávamos em cinco no total; além do seminário havia as refeições em conjunto e eu aproveitava para fazer as perguntas que mais me interessavam a Heidegger: se havia lido Kafka, se conhecia Benjamin. Mas estas são apenas anedotas.”

Um dos principais aspectos de sua pesquisa foi a filologia. De que modo a praticou?

“A filologia sempre foi parte essencial de minha pesquisa. E não apenas porque me aconteceu de fazer trabalhos filológicos em sentido técnico – penso na reconstrução do livro de Benjamin sobre Baudelaire e na edição dos poemas póstumos de Caproni –, mas porque filologia e filosofia, amor pela própria palavra e amor pela verdade não podem de modo algum ser separados. A verdade permanece na língua e um filósofo que não tivesse cuidado com essa permanência seria um péssimo filósofo. Os filósofos, como os poetas, são, antes de tudo, os curadores da língua e essa é uma tarefa genuinamente política, sobretudo numa época, como é a nossa, que procura de todo modo confundir e falsificar o significado das palavras.”



Entrevista concedida a Antonio Gnoli e publicada dia 15/05/2016 no site “Diritti Globali”. Disponível em: http://www.dirittiglobali.it/2016/05/84776/ (tradução: Vinícius N. Honesko)

terça-feira, 10 de maio de 2016

Posturas - Giorgio Agamben



Nos últimos anos da guerra, enquanto estava recluso em um campo de prisioneiros, Emmanuel Lévinas começa a escrever aquele que se tornará seu primeiro livro, Da existência ao existente, publicado em 1947. Não é fácil medir a novidade e o singular, quase feroz, desenvolvimento que aí recebe a ontologia de seu mestre de Friburgo, Martin Heidegger. O ser não é mais um conceito, é uma experiência sórdida e crepuscular, que se apreende entre o sono e a vigília, nos estados de fadiga e de insônia, na necessidade e na náusea – e, acima de tudo, nas posturas e nas imposturas do corpo. No cansaço, no qual a consciência parece afrouxar a apreensão da existência, e quase desdizer sua subscrição nesta, de fato, é ainda o ser que aparece, em um evasivo retardo em relação a si mesmo e como em uma íntima luxação. Relaxou-se e se deslocou e, portanto, foge de mim e não consigo apreendê-lo: mas “há” [“c’è”]. Por isso a fadiga procura repouso no sono sem encontrá-lo e, assim, desliza a contragosto na insônia, quando se vigia sem ter por que vigiar, a não ser o fato brutal de ser.

“A vigília é anônima. Na insônia não sou eu que vigio a noite, é a própria noite que vigia”. O ser não é aqui dom, luz, anúncio, abertura: é uma presença revoltante em que, no entanto, estou irremediavelmente pregado, algo que não posso assumir a não ser abandonando-me a uma postura que sempre também já é uma impostura. Este meu estar encolhido no leito, este meu (não-meu) coincidir de todo e sem reservas com meu repouso, este meu (não-meu) não ser senão postura insone: estirado, de bruços, de barriga pra cima, de lado com as pernas encolhidas como um feto – isto, e nada mais, é o ser. Uma vez que é inassumível, posso apenas colocar-me a seu lado; uma vez que é impossível ou demasiado e brutalmente possível, não posso dizê-lo, mas apenas repousá-lo (“estirar-se” [“coricare”] deriva etimologicamente de “colocar” [“collocare”]).

Em O exausto, Gilles Deleuze, ainda que sem dar nomes, procurar ir além da fenomenologia meticulosamente descrita por Lévinas. E o faz, de acordo com a precisa intuição de Ginevra Bompiani, não tanto procurando “dar corpo ao pensamento, quanto dar pensamento ao corpo, expor um corpo que leve impresso em sua própria postura o pensamento.” Isto é, não apenas resolvendo, como Lévinas, a ontologia, a doutrina do ser, em uma doutrina das posturas, mas procurando uma postura que se faça finita com o ser, que o exaure até a última possibilidade. O exausto – como o filme para televisão de Beckett que comenta – não se cansa de escandir esta única pergunta: “Como se exaure uma possibilidade, o que é uma possibilidade exaurida?”

Trata-se, para Deleuze, de acertar as contas com Heidegger, uma das suas duas bestas negras na filosofia (“Eu sou o único filósofo francês”, adorava repetir, “que jamais foi heideggeriano ou marxista”). Ele sabia, com efeito, que o primeiro a ter colocado o ser numa postura havia sido justamente Heidegger, cuja analítica do ser se abre com a célebre constatação de um implacável repouso: “A essência do ser-aí [esserci[1]] repousa [liegt] na existência”. O ser-aí [esserci] foi “lançado” no mundo, mas seria possível dizer que, uma vez lançado, não cai em pé, mas estirado (liegen significa, antes de tudo, “ser/estar estirado”). Em Heidegger, todavia, esse repousar do ser na existência se traduz imediatamente num primado da possibilidade. Que a essência repouse, esteja deitada, na existência, significa que o mundo se abre  em possibilidade para o homem, que para este tudo se apresenta como um possível modo de ser ao qual já está sempre entregue. Enquanto repousa – presumivelmente, desperto e de barriga para cima (Heidegger parece não se importar com o sono) – na existência, o ser-aí [esserci] é inexoravelmente entregue à possibilidade: repousar é poder. Se ao ser estirado do ser corresponde, nesse sentido, um primado do possível, será necessário então imaginar uma postura que exaure de modo integral e sem reservas toda possibilidade. Isto é, apostar sobre o que se pode ainda fazer quando tudo se tornou impossível e sobre o que ainda se pode dizer quando não é mais possível falar.

Tal postura é o estar sentado. Deleuze critica – sempre sem nomear o autor – as teses de Lévinas sobre o cansaço e sobre o íntimo nexo deste com o repouso. O cansado parece não mais dispor de nenhuma possibilidade, mas, na verdade, ele apenas exauriu a capacidade de colocá-la em ato, não a possibilidade como tal. O exausto, pelo contrário, “exaure todo o possível. [...] Põe fim ao possível, para além de qualquer canseira, ‘para continuar a terminar’.” Por isso não lhe convém estar estirado: “Estirar-se jamais é o fim, a última palavra, é a penúltima, e arrisca-se estar muito descansado, se não para levantar-se, ao menos para virar-se ou arrastar-se.” O exausto, como em Nacht und Träume, permanece sentado à mesa, com a cabeça inclinada e apoiada pelas mãos, “mãos sentadas na mesa e cabeça sentada nas mãos.”

O que significa, então, sentar-se? Aqui a linguagem vem de modo providente em socorro ao pensamento. Nas línguas indo-europeias o estar sentado é associado à ideia de inoperosidade, de suspensão de toda atividade. Do latim sedeo derivam assim desidia e desidiosus, que significam a inércia, o estar sentado sem fazer nada, e sedare, que significa fazer cessar, pôr fim a uma ocupação ou a um movimento. Por isso, no Novo Testamento, Cristo se senta à direita do Pai apenas quando cumpre a economia da salvação (“... tendo cumprido a redenção dos pecados, senta-se à direita da Majestade” – Heb. 1,3). Quando é representado no ato de governar o mundo, como Pantocrator, Cristo, pelo contrário, é representado em pé. O mesmo vale para o poder profano: no momento em que senta no trono, o rei está inativo, imóvel efígie da glória e não do governo (no nosso mundo, com uma inversão característica – e onde tudo está invertido –, o trabalho está, ao invés, ligado ao estar sentado diante de uma tela).

O estar sentado é a cifra do exaurimento de toda possível ação, a postura do exausto que conseguiu desalojar o ser de sua demora na possibilidade. Por isso uma figura do exausto é, em Deleuze, o estudo. Como o estudante em Kafka ou em Melville, “que senta em um quarto com o teto baixo, com os cotovelos sobre os joelhos e a cabeça entre as mãos”, quem estuda não pretende concluir nada. Como o talmudista (talmud significa “estudo”) comenta e retoma as prescrições da Torá até torná-las inaplicáveis, assim o estudioso retoma e esmiúça suas possibilidades de pesquisa uma atrás da outra infinitamente. O estudo já exauriu toda possível realização pois é em si mesmo interminável e inexaurível.

Como pensar, então, uma possibilidade exausta? Não se trata, de modo algum, de uma possibilidade que tenha sido integralmente realizada no ato e da qual não reste mais nada. Tal condição define muito mais, como vimos, a condição do cansado, aquele que se abandona estirado em sua prostração. Verdadeiramente exausta é apenas a possibilidade que se leva como tal no ato e, por isso, não tem mais nenhuma possibilidade de ser colocada em ato e realizada. É uma possibilidade que não precede o ato para exaurir-se neste, mas o supera e perdura para além deste.

É possível que em suas incansáveis e extravagantes leituras Deleuze tenha cruzado com os tratados dos lógicos medievais, que pensaram de modo radicalmente novo a relação entre potência e ato, a possibilidade e sua realização. Um destes é Roberto Grosseteste, o genial autor de De luce, que acabaria exercendo uma não desprezível influência sobre Dante. Um primeiro modo – ele escreve – em que podemos imaginar o cumprimento (perfectio) do que está em potência no ato é quando aquela cessa de estar em potência para tornar-se um ato perfeito. Há, no entanto, um outro modo – a seus olhos mais interessante – em que a perfeição, acontecendo, conserva o possível em sua imperfeição (salvat ipsum in imperfectione). Veja-se o exemplo de algo que pode tornar-se branco (albisibilis, “branqueável”): de acordo com o primeiro modo, essa possibilidade se realiza e se cumpre na brancura (albedo), de modo que o objeto não é mais branqueável, mas apenas e em definitivo branco (album). No segundo caso, pelo contrário, a perfeição do branqueável o salva no ato como branqueável. Por certo não deve ser surpreendente que, como exemplo dessa possibilidade que se conserva como tal no ato, Alberto Magno mencione a mímica e a dança: “A evolução circular [volutatio] que realizam os mímicos é a perfeição do volúvel [volubilis significa: “que gira”] enquanto eles são volúveis e a dança das mulheres que bailam é a realização de seu ser hábeis à dança e de sua potência de exultar-se e dançar enquanto potência [perfectio earum saltabilium sive potentium tripudiare et choreizare secundum quod in potentia sunt]”.

Aqui é evidente que a oposição potência/ato, possível/real, foi neutralizada, que, como a obstinada credulidade do estudante, também a exultação da dançarina apresenta uma figura do ser que verdadeiramente exauriu tanto suas possibilidades quanto suas realizações. E, com estas, mesmo suas posturas – ou imposturas. A figura última do ser não é a postura, mas o gesto. Este não põe nem impõe nada – apenas expõe. Como nos filmes de Beckett, no incessante ir e vir de Quad ou no sonhador sentado de Nacht und Träume, a postura se afasta e se dissolve em um gesto. E como, no gesto do dançarino, o dançável jamais se torna dançado, assim, no gesto do vivente, o vivível jamais se torna vivido, mas permanece vivível no próprio ato de viver.


Giorgio Agamben. Posture. In.: Gilles Deleuze. L’esausto. Roma: Nottetempo, 2015. Disponível em: http://www.doppiozero.com/materiali/deleuze/posture (tradução: Vinícius N. Honesko)


[1] Agamben não mantém o alemão “Dasein”, como o fazem, no geral, as traduções para o português, mas emprega o termo “esserci”. Desse modo, traduzo aqui por "ser-aí", uma das variantes que as traduções para o português utilizam. Mantenho, a cada vez que aparece, "esserci" entre colchetes. [N.T.] 


Imagem: Gilles Deleuze, em 1987, por Raymond Depardon.

nota metafísica


a data é um endereço no tempo
e o tempo é a cidadela obscura
onde vivo em um arrabalde
para além só desertos que já desgastam
com sua intempérie, poeira e vento
a frágil composição das casas
a cidadela é imensa porém finita
habito em uma morada pobre
gosto de viver às margens
próximo do deserto inacessível
não consigo sair destes endereços
onde estou e onde estive
poderão existir outros lugares aprazíveis
longe das muralhas
mas muito me apraz viver nestes limites
recordando endereços impossíveis
e escutando o vento


imagem: monsaraz - jnf 

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Jean-Luc Nancy: "A arte para reencontrar o sentido"


O filósofo Jean-Luc Nancy explica a necessidade da arte para ir além da significação.
O grande filósofo Jean-Luc Nancy, nascido em 1940, é um dos espíritos mais abertos de nossa época. Marcado por sua amizade com Jacques Derrida, durante muito tempo professor na universidade de Strasbourg, ele publicou muitos livros e artigos, em particular sobre a arte. Seu pensamento vai em direção do “sentido da existência”, que para ele é um horizonte inacessível (“O mundo não repousa sobre nada e está aí seu sentido mais vivo”), e também em direção da “existência do sentido”, em particular por meio da arte. “O fato de que esta faça sentido, isto é, que a arte circule entre as pessoas, ou entre o objeto e a pessoa. Não há sentido para um só.” Ele fala de uma “finalidade do sentido”, retomando a expressão de Kant sobre o julgamento estético.
Para ele, o pensamento é, então, levar-se às extremidades da significação. A significação sempre para algo, uma vez que o pensamento abre as possibilidades do sentido.
Seu trabalho também passa pelo corpo, dentre outros o seu, uma vez que vive, desde 1991, com um coração transplantado. Jean-Luc Nancy com frequência colabora com artistas, como a coreógrafa Mathilde Monnier ou Tomas Hirschhorn. Ele acaba de escrever para o catálogo da exposição Anselm Kiefer, na BNF, e Olafur Eliasson pediu-lhe para ajudar em sua exposição em Versalhes neste verão. No último dia 07 (07/04/16), ele esteve no Kaaitheater, em Bruxelas, para falar do “pensamento da arte”. Nós o encontramos nessa ocasião.

De onde vem sua ligação com a arte?  
Sempre fui fascinado pelas imagens, mas foi no começo dos anos 70 que tive o “clique”, quando um pintor que não conhecia, François Martin, me pediu para escrever sobre seu trabalho e para dar nome a uma série de desenhos a lápis. Escolhi a palavra “stencil”. E isso verdadeiramente despertou algo em mim.

Há uma ligação entre filosofia (pensamento) e arte?
 
No século XX não encontramos nenhum filósofo que não tenha se interessado pela arte: Sartre, Foucault, Lyotard, Derrida. Barthes começou fazendo teatro. Isso é devido a uma dupla conjunção; a arte entrou no século XX num questionamento sobre ela própria. Não há uma só obra que não se interrogue ao mesmo tempo sobre o que é a arte. A arte se vira, então, para a filosofia para reencontrar o sentido daquilo que não conhecemos. Em sentido inverso, a filosofia sempre se interessou pela arte. Nietzsche nela via uma função de proteção “contra o abismo da verdade”. “A arte nos é dada para nos impedir de morrer pela verdade.” A arte apareceu como uma sequência possível da morte de Deus e a perda de segurança do logos. Leibniz dizia ainda que “Nada é sem razão”, mas rapidamente vimos que o mundo perdeu sua razão. Hegel reivindicava uma superação da linguagem. E como, ao mesmo tempo, a arte perdia seu papel de representação da Verdade, aí havia um encontro inevitável.

O diretor Romeo Castellucci considera que os filósofos e os artistas estão na borda de nosso barco humano e tentam esclarecer as trevas que nos circundam, mas o que descobrem são, ainda, trevas.  
Eles descobrem que além da bruma há ainda a bruma, mas, ao menos, eles nos evitam a neblina total. A arte, entretanto, não pode ser uma muleta do vazio de sentidos. Atingimos um pico de non-sense quando Ai Weiwei diz “todo ato de resistência é um ato estético”, invertendo a frase que dizia que todo ato estético é um ato de resistência.

O que é a arte então?
 
A arte se coloca ao lado da linguagem, ou é atravessada pela linguagem (literatura, poesia), para expor o sentido, fora da significação. A linguagem nos leva à borda extrema onde não podemos mais nomear. A arte está ali e pode nos levar para além. Ela mostra que há uma dimensão fora da linguagem. Eu discutia com o artista Barcelo, que é apaixonado pela gruta Chauvet e suas pinturas de animais. Todas as explicações funcionais dessas pinturas das cavernas são pouco convincentes. Nelas o homem sem dúvidas mostrou, com esses animais, seres viventes que, entretanto, estando fora da linguagem, eram inquietantes para ele. Eles eram um chamado para o desconhecido, o não conhecível.

É chocante que na França a FN (Frente Nacional) tomou para si a arte atual.  
A FN se refere à verdade dada, à França, ao catolicismo tradicional. Ela se aproxima de uma arte figurativa que exprime essas verdades e rejeita, pois acha inquietante, tudo o que provém da incerteza, uma vez que a arte designa o que vale para além da significação. Ora, para mim, o critério da arte é não se reduzir à significação, àquilo que aparece de pronto e é, além disso, nomeado com o título de obra. A tal critério, ajusta-se a necessidade de uma forma autônoma, como Kapoor criando sua grande estrutura uterina vermelha no Grand Palais.

As noções de belo e de arte evoluem.
 
Graças aos artistas. Proust já dizia que é o escritor que forma seu público. Os artistas fazem evoluir. Poussin dizia que Caravaggio tinha vindo ao mundo para destruir a pintura.

O corpo está também na borda da significação.
 
Sim, aliás, o corpo está presente em todas as artes. O esporte e o erotismo são maneiras de abrir a outros sentidos. A diferença é que o erotismo remete à intimidade enquanto na arte o desejo e o gozo são dirigidos aos outros.

A arte é hoje uma nova religião?
 
Há muito tempo que sacralizamos “a arte pela arte”. Não temos mais verdades, mais logos, mais fundamentos racionais, desconfiamos da racionalidade tecnocientífica que encena a comédia dos fins infinitos (desejar um telefone, depois um celular, depois um smartphone etc.). De todo modo, será preciso encontrar uma finalidade ou aprender a viver sem finalidade. Há finalidades que resistem obstinadamente: viver, fazer filhos e fazer arte. Teria sido possível deixar a arte decair, mas porque ela permanece tão preciosa para nós? Não é por causa do mercado da arte, “repugnante”, pois tal mercado existe desde sempre, lembremo-nos as fortunas que François Iº gastou para trazer Leonardo da Vinci a Amboise. Não, a arte sempre foi associada a um valor de exposição do sentido, além de seu valor de mercado ou de uso.

Entrevista publicada no jornal belga "La libre", em 16/03/2016. Disponível em: http://www.lalibre.be/culture/arts/jean-luc-nancy-l-art-pour-retrouver-du-sens-56e86fde35708ea2d3964b1f#08c51 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko) 

Imagem: Tiziano. Anjo da anunciação. 1560. Galleria degli Uffizi, Firenze. 


quarta-feira, 6 de abril de 2016

O coxinha-croissant


O coxinha que sonha em ser croissant vomita sua ira nas redes sociais ao lado da selfie no Arco do Triunfo. Ele acaba de visitar Paris e sente saudades das delícias do "velho mundo": a cidade do almanaque cerebral deste brasileiro não concebe leis antiterror, imigrantes afogados no mediterrâneo, acampamentos de refugiados, periferias pobres, sujas e violentas no coração da "civilização". O coxinha-croissant é um místico em busca de parques temáticos imaginários regados a cenários de blockbuster pseudo-cult, roupas cafonas, vinhos caríssimos ruins e muito fast-food gourmetizado. Bens culturais sob medida para otários colonizados. "Como é triste viver em um país subdesenvolvido, inculto e corrupto!", "que tragédia um ex-presidente metalúrgico", bradam os coxinhas-croissants, comendo "foi gras" com notas fiscais em nome de empresas e desviando muito em seus impostos de renda. O coxinha-croissant se sente humilhado por não poder mais vestir no estrangeiro a camisa da CBF (do morto-vivo José Maria Marin) depois dos 7 a 1 - culpa do PT! -, mas pode usar ressentidamente seu modelito na avenida Paulista, mesmo que seu gosto e formação possa às vezes destoar do coxinha-hotdog (que sonha viver em Miami e votar em Trump, apesar do senhor de cabelos pintados de loiro sonhar um dia ver os latinos enterrados em fossas comuns) ou do coxinha-coxinha modesto, cujo sonho é viver em Curitiba (a cidade de Beto Richa, a mais limpa e europeizada do Brasil). O coxinha-croissant é um devoto da religião de santos da PF, eles salvarão o Brasil, higienicamente! A PF, "única instituição que funciona no país", é a corporação que o coxinha-croissant tem intimidade quando renova seu passaporte ou precisa gentilmente pagar uma propina para poder entrar com mercadoria contrabandeada (a propósito, todos os coxinhas-croissants são brancos e fazem uso correto do vernáculo). A PF que conseguiu eficazmente combater o tráfico de armas, drogas e pessoas na fronteira brasileira. O bom-mocismo da PF que limpará a lama do atoleiro chamado Brasil. A PF que nos faz sonhar com Paris e com os voos da Air France. A PF e suas botas. O coxinha-croissant é um ordeiro adorador de botas. Um pacífico e refinado lambedor de botas. Un parfait lécheur. 

terça-feira, 5 de abril de 2016

Pequeno parágrafo sobre o amor IV



Certa vez o anti-poeta disse, com uma verdade própria, que a morte é um hábito coletivo. As vestes, os hábitos, portanto, que trajamos a cada manhã, com o primeiro rumor dos pássaros, envolve-nos por completo. O despertar do sonho - essa pequena morte travestida ora de paraíso ora de inferno -, o abrir de nossos olhos, é o convite para nos vestirmos, mais uma vez (e mais outra, outra...), com esse nosso hábito. Mas talvez o milagre do despertar e a cor dessa veste impossível de não vestir também sejam o caminho para nossa condição fundamental: somos seres amantes. Um filósofo italiano escreveu:
"Nós amamos porque morremos. Se não morrêssemos não amaríamos. Tanto é verdade que jamais amamos como no momento em que percebemos que a pessoa amada está para morrer. E por que a amamos? Porque sabemos que por mais esforços que façamos, por mais que tenhamos o desejo de iludir-nos, não podemos segui-la na morte. Nós a abandonamos ao seu destino: tampouco um pai pode seguir na morte um filho, e se por acaso o seguisse, por exemplo através do suicídio, não o segue de fato na morte, porque cada um morre sozinho. A minha morte não é a sua e, vice-versa, a sua morte não é a minha. E a morte não une, mas separa, para sempre. Só porque somos mortais somos capazes de amar. Não há experiência maior do que o amor por Deus, pela pessoa amada, pelos filhos, pelos sofredores... mas essa experiência é possível graças ao fato de existir a morte."
Morremos só, mas, ao mesmo tempo, caro filósofo, também um pouco juntos. Cada um que parte leva consigo um pedaço de nosso hábito e, assim, passamos a vida a remendar nossa veste coletiva com um pouco do tecido das vidas que vamos encontrando. Nesses encontros, partilhamos a vida com esses outros e, como que com linha e carretel em mãos, costuramos juntos, um ao outro, nosso hábito coletivo.


Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madri.


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Pequeno parágrafo sobre o lugar



Habitamos o tempo e sentimos o cheiro de nossa vida embolorada, alheia à matéria que compõe o espelho ao qual dirigimos nosso olhar e, ininterruptamente, ousamos dizer eu. A persistente vigília e alguns versos que caem de um livro tomado ao acaso zombam de nossa habitação: "Talvez o persistente trigo esconda um pouco da verdade / Talvez seja de Deus o nosso tempo // E a alegria é uma casa demolida". Seguimos a imagem do tempo, seguimos, portanto, esse eu tentando desmentir a fábula daquele cheiro que há pouco nos nauseava. "É a vida! É a vida!" poderia talvez gritar algum personagem ditirambo, ciente de que do passado o que verdadeiramente importa é o que se esquece. Mas uma luz brilhante nos cega e um verso apenas reverbera enquanto escrevemos o livro de nossas vidas: "a luz do futuro não deixa um só instante de nos ferir."

Imagem: Francis Bacon. 1946 Painting.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Pequeno parágrafo sobre o amor III



Conjugar o verbo amar é tocar as bordas do impossível, traçar seus esboços, fingir entender a vida. Mas fingere não é a porta à ficção? E não é a ficção a entrada da vida destes animais falantes que somos? É sempre a distância a dominar nosso corpo, e são as palavras que preenchem cada frase os alforjes vazios a nos iludir com possibilidades. De que valem a vontade de dizer e os desenhos de amor se valer pode ser só mais um verbo intransitivo? Nenhuma conjugação do amor é suficiente para libertar essa sensação que vem do balanço deste ônibus que nos leva ao único possível: o distante. Aí, nesse lugar algum, os verbos são conjugados sem a preocupação do sentido e a vida transcorre em seu leito vaporoso, etéreo, tocando coisas silenciosas e apagando os rastros disso que um dia ousamos dizer amor.

Imagem: Pieter Brueghel (o jovem). Dois casais camponeses. 1600-10.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Brasil, 1964-2016


Em 28 de outubro de 2002, o ex-operário e líder  de um dos maiores partidos de esquerda da América Latina, recém empossado presidente do Brasil, dá sua primeira entrevista no cargo ao Jornal Nacional, da Rede Globo de Telecomunicações, uma grande empresa que apoiou o golpe militar de 1964 e se fortaleceu durante o período da ditadura. 
De 2002 a 2016, ano em que a sucessora de Lula é confrontada por um processo golpista, apoiado por esta emissora e gestado pelo parlamentar que mais se beneficiou com os desvios na petrolífera estatal, membro da bancada evangélica e conhecido nos subsolo do crime organizado, e em que o próprio ex-presidente Lula é ameaçado de prisão por supostos crimes cometidos durante o cargo, nada foi feito para rever as concessões de empresas de rádio e TV declaradamente envolvidas com o governo dos militares e com tudo aquilo que o período de ditadura representou: torturas, desaparecimentos, emparelhamento das questões brasileiras aos interesses ianques (ver documentos do wikileaks divulgados no documentário "O dia que durou 21 anos", https://www.youtube.com/watch?v=U91gtFREBY0 - imprescindível quem busca entender as aporias políticas que ainda cercam o país).
Em 31 de março de 1964 tratava-se de derrubar um presidente democraticamente eleito que pretendia estabelecer reformas (capitalistas) de base, como uma redistribuição menos injusta e produtivamente eficaz no campo, uma reforma educacional, reformas no setores bancário, fiscal, administrativo, às voltas com um debate desenvolvimentista acerca de uma maior presença estatal em áreas estratégicas, como a produção da energia nacional ou o intervencionismo econômico. 
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, como foi chamada uma série de manifestações de massa ocorridas no mês de março de 1964, formada por membros da classe média e endinheirados da aristocracia econômica brasileira, bradou contra "o comunismo", em nome de um moralismo reacionário preocupado com o fantasma da ameaça soviética no Brasil e propiciou o fantasmático suporte de legitimidade para o golpe dos militares (que, sabe-se, já possuíam o auxílio da IV Frota ianque na hipótese de resistência de João Goulart). 
Em 2016, trata-se de derrubar um partido que em quatorze anos de gestão propiciou um paraíso na terra aos banqueiros (os lucros de Itaú e Bradesco estão acima do PIB de muitos estados nacionais), empreiteiras e aos imperadores da mídia - que já se beneficiavam de todas as regalias previstas no pacto não declarado de transição pós-ditadura -, embora com algumas concessões em direitos sociais e, ao menos nos mandatos de Lula, um maior protagonismo no campo internacional, fortalecendo tratados comuns entre países não alinhados na América Latina. 
Mesmo sem confrontos declarados por parte do PT, um partido tão adepto às políticas neoliberais e resiliente à gestão governamental (no sentido foucaultiano do termo) que já não por ser chamado como um partido de esquerda, consensualista e dócil com as elites ao ponto de manter absolutamente intocados os temas que ainda fazem do Brasil um país semi-colonial (cujas fortunas remetem ao grileiros, donos de escravos e detentores da dívida pública), os herdeiros da marcha de 64 voltam às ruas clamando pela destituição de uma presidente eleita, pela punição dos "corruptos" e pela "extirpação religiosa de todos os males" em um país que não conseguiu levar aos tribunais nem mesmo os torturadores ligados à máquina ditatorial, cujos presidentes militares, golpistas criminosos, ainda são nomes de ruas e tratados como heróis nacionais. 
O PT se acovardou. Em um cenário de chantagens vindas de pequenos golpistas, não ousa demonstrar o mínimo de poder - legitimado pelas urnas - e cassar a concessão de uma empresa golpista como a Rede Globo de Televisão. 
Os militares foram substituídos por pequenas hienas carniceiras de toga - http://flanagens.blogspot.com.br/2012/11/o-que-e-uma-hiena.html -, as faculdades de direito no Brasil foram e continuam a ser o dispositivo por excelência da razão colonial no país (durante o império, os bacharéis em direito que retornavam de Coimbra formaram o primeiro corpo de burocratas nacionais a serviço de um projeto colonial) e o obscuro juiz Moro é a expressão hegeliana da sórdida arrogância, da politicagem pequenez e do autoritarismo da minoria que venceu no Brasil pós-colonial. É o velho capitão do mato com as vestes do magistrado provinciano. Assim como Gilmar Mendes é a reencarnação contemporânea do dono de escravos aspirante a capitão hereditário, lambedor das botas do colonizador (seja da antiga Lisboa ou da atual Miami).    
Entre o presidencialismo neoliberal de coalizão, exposto pelo sistema partidário brasileiro que capturou seus partidos de esquerda, e o retrocesso autoritário representado pelo coxinhas neo-fascistas com camisetas caras da CBF de José Maria Marin, e contra as falsa alternativa do bom-mocismo do moralismo cristão despolitizado, capitalismo gerencial e "fofo" simbolizado em Marina Silva e na "política" das redes sociais, é preciso pensar uma via radical e estrutural, concreta, que passe por uma lei de mídias consistente (abolindo os monopólios), um controle efetivo sobre o capital especulador e uma revolução agrária que deixe efetivamente no passado a imagem colonial do pais exportador de commodities. 
Dado que há um bloqueio institucional a estas alterações, só nos resta pensar ao modo zapatista, que inclui o dispositivo de um Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN): territórios livres, não utópicos, em que pensar um outro mundo possível seja possível. 

“É verdade, somos profissionais. Mas a nossa profissão é a esperança. Um belo dia decidimos virar soldados para que noutro dia os soldados não sejam mais necessários. […] Por isso somos soldados que querem deixar de ser soldados. Mas para que os soldados não sejam mais necessários é preciso virar soldado e disparar uma certa quantidade de chumbo quente, escrevendo liberdade e justiça para todos, não para alguns, mas para todos, todos os mortos de ontem e de amanhã, os vivos de hoje e de sempre, por todos aqueles que chamamos de povo e pátria, os excluídos, os que nasceram para perder, os sem nome, os sem rosto."

                     

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Pequeno parágrafo sobre o íntimo



A A.F.

Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo
sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia
depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um
parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco-
bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava 
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o 
que fazer...
Herberto Helder 

Já se disse que "existe história precisamente porque nenhum legislador primitivo pôs as palavras em harmonia com as coisas". Mas o que querem das coisas as palavras? Ou, melhor dizendo, o que queremos nós, com palavras, das coisas? O nome muito estrangeiro de Amor difunde uma multiplicação de mãos em meio às noites, numa plantação de espelhos, refletindo nossas imagens bêbadas de mãos, suor, toques, risos, sons, cores. Corremos sem sono, numa dança que emoldura os espelhos, para dentro da noite. Nenhuma harmonia entre palavras e coisas, só um frouxo deleite em que ousamos contar histórias que nos indicam não um futuro, mas um devir, um porvir a nós de todo desconhecido, a nós completamente estrangeiro. Não dizemos nenhum nome ao apontarmos com nossos dedos em uníssono a noite escura que se avoluma. Acabamos por nos dar conta de que todos os lugares continuam sendo no estrangeiro e, ainda assim, estamos aqui, nesta plantação de espelhos onde deitamos fora nossas distâncias e chamamos um superlativo que diz interior intimo meo. Desenhamos então um nome, intimidade, o qual nos contém por completo mas que é incapaz de nos retirar do estrangeiro. E nenhum legislador primitivo pode harmonizar este prazer que se alonga entre palavras e coisas pois permanecemos na noite, na difusão das mãos que, mais do que nomear, tentam segurar esta coisa, de nome estrangeiro, sempre em fuga e que a nós se mostra, sorridente, de espelho em espelho. A coisa, ou seu nome, não podemos segurar nem nomear e, talvez por isso, também corremos nós soltos, felizes, com um gosto doce na boca, neste desconhecido campo onde nos vemos per speculum et aenigmate, mas, ao mesmo tempo, sub specie aeternitatis. 

Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.

 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Teses hermético-caosmológicas II


Ausências eram recordações soltas pela casa... e talvez isso que do Cortázar estava já há muito no campo dos esquecidos tenha aparecido com a canção dos mortos. Araucárias, grilos e cigarras arrancam às vozes soltas pelo vento suas verdades nuas: são muito mais os mortos que os vivos. E mesmo a lástima de trombar em silêncio com essas recordações já não diz nada a não ser: são muito mais os mortos que os vivos. God is in the radio, dizia-me uma outra voz. Nenhum espaço pode ser comum se as ausências são detentoras de nosso silêncio. Com elas, que já andam soltas desde há muito, pensei que havia esquecido os diários de Alejandra Pizarnik que tanto gostaria de ter lido nos dias de espectro: "A veces necesito ausentarme"... ausentar-se para estar tão em si mesma para que o prazer dessa abstração seja o da evasão, poderia ter ela me dito embaixo de uma dessas araucárias. E talvez o Cortázar que há pouco surgira do esquecido seja o que escrevia para Pizarnik. Ou não. Decerto era Pizarnik escrevendo a Cortázar? Excessos. "Me excedí, supongo. Y he perdido, viejo amigo de tu vieja Alejandra que tiene miedo de todo salvo (ahora, ¡Oh, Julio!) de la locura y de la muerte." Nem da loucura nem da morte, velha amiga Alejandra. Você mesma disse que a vida é uma espécie de complô, não? E, agora, são muito mais os mortos que os vivos. Eles não dizem nada mas me ensurdecem. Deito em um tempo de excessos também eu, Pizarnik, mas não sei se me evado. Já não há distâncias entre os delírios calmos de uma manhã e aqueles criados por paraísos artificiais. E mais uma vez alguém me grita que God is in the radio. E me pergunto: mas poderia escrever a quem quer que seja? Poderia pensar todas as cartas que já escrevi como mapas de lugares onde dificilmente podemos chegar sozinhos? E como voltar desse lapso em que me esqueço de que há muito mais mortos que vivos? 


Imagem: Paul Gauguin. Visão depois do sermão (Jacob Wrestling com o Anjo). 1888. National Gallery of Scotland, Edinburgh.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Estudo sobre a memória XII



Palavras deitam-se e destroem
páginas outrora agoniadas
à espera de vida.

Uma mistura de areia e mel,
ao fundo, paredes brancas
assoladas pela imagem de Mussolini.

Pediam-me abrigo as palavras
confundindo-me com as imagens
de um tempo já findo.

Copos plásticos, pão francês,
imberbe e ainda matreiro.
Mil novecentos e que?

Deixe-nos contar os dias,
as horas e os porquês,
diziam-me as palavras.

Uma kombi arrastava jogadores,
noites de fumaça e cartas.
Mil novecentos e que?

Onde havia agonia e branco
agora há a tolice das palavras
que roubam a cena.

Cartas aleatórias, quadros de Tiziano
e uma agradável voz nova
que já parece tão antiga.

Como marcar o branco,
matar Mussolini e ainda assim
dizer palavra?


Imagem: Kazimir Malevich. Branco sobre branco. 1918. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A nostalgia não é suficiente, mas é um bom começo



Entrevista com Giorgio Agamben
Organizada por Valeria Montebello

Nesta entrevista, gentilmente concedida por Giorgio Agamben, discutem-se alguns dos temas mais caros a Pier Paolo Pasolini, seja do ponto de vista teorético, seja do ponto de vista pessoal. Agamben conhecia Pasolini e interpretou o papel de Filippo em O Evangelho segundo São Mateus. A conversa tem como centro a anarquia do poder, o desaparecimento dos vaga-lumes e a potência aristotélica, com a intenção de trazer à vida esses conceitos, evocando cenários. Das lembranças de Agamben do presente, através da instrumentalização da comida, da decadência das cidades, até o futuro, acenando a um novo modo de habitar e a uma política que possa estar à sua altura. (Valeria Montebello)

***

Valeria Montebello:
Pasolini foi um lúcido analista do Poder que definia “sem rosto” e de sua congênita arbitrariedade. A propósito da origem anárquica que o diferencia – anarquia que, no fundo, também seria seu fim – e sua referência a “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, no livro Nudez (“a única verdadeira anarquia é aquela do poder”), como se insere o ingovernável, “aquilo que está para além do governo e até mesmo da anarquia”? Podemos pensá-lo, antes, como uma forma de resistência, de princípio, em vez que de reação?

Giorgio Agamben:
O poder se constitui capturando em seu interior a anarquia, na forma do caos e da guerra de todos contra todos. Por isso, a anarquia é algo que se torna pensável somente se conseguimos, em primeiro lugar, expor e destituir a anarquia do poder. Klee, em suas aulas, diferencia o verdadeiro caos, princípio genético do mundo, do caos como antítese da ordem. No mesmo sentido, penso que se deva diferenciar a verdadeira anarquia, princípio genético da política, da anarquia como simples antítese da arché (em seu duplo significado de “princípio” e “comando”). Mas, em todo caso, ela é algo que se tornará acessível apenas quando uma potência destituinte tiver desativado os dispositivos do poder e tiver libertado a anarquia que eles capturaram.

Montebello:
Micciché,[1] anos atrás, propunha ler a “Trilogia da vida” com “Saló”, incorporando os últimos filmes numa “Tetralogia da morte”. De fato, o último filme pode ser visto também como a mescla entre impulso sádico ao gozo e pulsão de morte, o imperativo do gozo como forma de destruição da vida?

Agamben:
Diria que num certo momento Pasolini talvez acreditasse poder aceder diretamente à anarquia. “Saló” é certamente uma representação da anarquia do poder, mas uma representação desesperada, que não procura arrancar a anarquia das mãos do poder, como se Pasolini não conseguisse mais distinguir a sua anarquia daquela dos quatro hierarcas malvados. De um modo mais geral, nos últimos anos ele parece querer ultrapassar a obra para chegar imediatamente aos seus fantasmas (“Por que fazer uma obra quando se pode sonhá-la”?). Acredito que isso não seja possível e que, como você sugere – embora não ame as categorias psicológicas –, essa tentativa possa coincidir com uma pulsão de morte.

Montebello:
Inicialmente “Saló” devia ser um filme sobre um industrial milanês, que colocasse a nu a mistificação da grande produção alimentar. Sobrevive mais de um eco disso na cena do filme em que o hierarca ordena ao jovem: “então, coma a merda”. O consumidor médio come merda, é consciente disso e continua a fazê-lo. O que você pensa da EXPO, em seu logo “Alimentar o planeta, energia para a vida” e em sua quase obrigatória tendência atual?

Agamben:
Sinto não sei se comiseração ou desprezo pela tentativa, atualmente em curso por parte de um grande punhado de miseráveis, de colocar a gastronomia, a moda e o espetáculo artístico-cultural (não a arte) no lugar da poesia, do pensamento e daquilo que resta de vida espiritual. Isso coincide, de resto – do momento em que as duas coisas caminham sempre juntas e os miseráveis também são sempre pagos – com o projeto por parte do capital internacional de transformar a Itália (que é aos poucos metodicamente vendida) num parque de férias e de passatempo gastronômico-cultural.

Montebello:
“Eu daria toda a Montedison por um vaga-lume”: o famoso desaparecimento dos vaga-lumes anunciado por Pasolini, por causa dos “refletores ferozes do poder”. Didi-Huberman fala de amizade “estrelar” entre Agamben – horizonte apocalíptico – e Pasolini – nostalgia – sob o signo do desespero do presente. Vem em minha mente a potência, o papel que tal conceito aristotélico tem em sua obra e sua possível resistência ao ato. A transparência pode acolher a luz ou permanecer em sua escuridão. Assim, parecem delinear-se vários níveis de visibilidade: há um ser exposto à luz como algo de inevitável, ou se pode pensar numa forma de resistência, a dos vaga-lumes, como a dos peixes nos abismos de que fala Aristóteles em De anima, de algo que só pode estar sob a força das trevas. Poderíamos considerar a amizade “estrelar” entre Pasolini e Agamben sob o signo da resistência. Você também afirma, de fato, que não é necessário deixar-se “cegar pelas luzes do século”, os mesmos “refletores ferozes do poder” de Pasolini e, ainda em Nudez, você escreve que olhar para “a escuridão da época” e perceber nela “uma luz que, direcionada para nós, se distancia infinitamente de nós” é a tarefa de um pensamento crítico voltado à atualidade...

Agamben:
A resistência ao moderno em nome dos vaga-lumes se produziu não por acaso numa cultura, como a italiana, em que o desenvolvimento industrial chegou atrasado. Pasolini nasceu num país cuja população era composta em 70% de camponeses e na qual o fascismo havia procurado conciliar a industrialização com o controle social. Pode ocorrer, no entanto, que justamente uma situação aparentemente atrasada, malgrado suas contradições, passe a ser em certos aspectos mais avançada do que outras, que perderam toda capacidade de resistir. Mesmo Ivan Illich, ou seja, o mais profundo e coerente entre os críticos da modernidade, provinha de uma sociedade, num certo sentido, atrasada. Apesar disso eu me lembro de ter visto quando criança um rebanho de ovelhas que percorria todas as manhãs a Rua Flaminia até a Praça do Povo, para depois entrar na Villa Borghese; a minha infância coincidiu, ao contrário, com o início do processo frenético de industrialização e destruição que se deu depois da Segunda Guerra Mundial. Diferentemente de Pasolini e de Elsa Morante (que lhe era próxima), eu não podia criar ilusões sobre a sobrevivência daquilo que num certo tempo se chamava de povo ou de criaturas edênicas não contaminadas. Às vezes, pergunto-me o que teria dito Elsa e Pier Paolo se tivessem podido ver a transformação atual dos seres humanos e de suas relações por efeito dos celulares e, mais em geral, dos dispositivos fornidos de uma tela. Minha crítica do moderno é, por isso, menos impregnada de nostalgia e tomou necessariamente a forma de uma pesquisa arqueológica voltada a identificar no passado as causas e as razões do que aconteceu. Mas não acredito que seja por isso menos radical. Em questão, em todo caso, está a compreensão do presente.

Montebello:
A propósito da decadência das cidades e das periferias que se tornam os novos centros, falemos do Pigneto,[2] bairro muito caro a Pasolini, onde caminhava entre as pessoas “pobres e reais”. Estive há pouco tempo, à noite, em Necci,[3] um local que Pasolini frequentava e, realmente, seu rosto vem à tona por todos os lados, das fotos nas paredes aos broches de 1 EURO dentro de um velha máquina de venda de gomas de mascar. Sem que pudesse fazer nada, a nostalgia tomou conta de mim. Uma nostalgia de algo que jamais conheci, mas que talvez vivi sentindo os carinhos de minha avó – com suas sábias mãos ao reconhecer as ervas nos campos, ao desenredar os fios. Penso que uma certa nostalgia de retorno, de habitação, nos une; poder ser vista como um retorno a si mesmo, como algo que diz respeito a cada um tão intimamente e, exatamente por isso, não pode senão dizer respeito a todos?

Agamben:
Vivemos uma fase de extrema decadência da cidade, no sentido que os homens parecem ter perdido qualquer relação com o lugar em que vivem. É evidente que – como acontece em muitas cidades italianas – se a cidade se transforma num assim chamado ‘centro histórico’, que só deve servir ao consumo turístico e à diversão de fins de semana, ela não tem mais razão alguma de ser. A cidade era, antes de tudo, o lugar da vida política e, ao mesmo tempo, do habitar como prerrogativa humana. Tanto a política quanto a faculdade de habitar (e não simplesmente de se alojar) estão desaparecendo, graças também às iniciativas conjuntas dos capitalistas e dos arquitetos. A nostalgia não é suficiente. Seria necessária uma nova forma de vida que possa reencontrar, ao mesmo tempo, a capacidade de habitar e a vida política. É óbvio que tanto o habitar como a política deveriam ser pensados desde o início e redefinidos. Ugo di San Vittore[4] distinguia três modos de habitar: aquele pelo qual a pátria é doce, aquele pelo qual todo solo é pátria, e, o terceiro, aquele pelo qual o mundo todo é um exílio. É necessário inventar um quarto modo e, com este, uma política que esteja à sua altura.



Publicada em “Lo Sguardo: Rivista di Filosofia”, n. 19, 2015 (III), Roma: dossiê Pier Paolo Pasolini: resistenze, dissidenze, ibridazioni. ISSN: 2036-6558. Organizada por Luciano De Fiore e Antonio Lucci. Disponível em: http://www.losguardo.net/wp-content/uploads/2015/12/2015-19-Indice.pdf (Tradução de Davi Pessoa.)


[1] Lino Micciché (1934-2004), historiador e crítico de cinema italiano.

[2] Bairro de Roma, formado a partir de 1870. Durante a Segunda Guerra Mundial foi palco de manifestações populares antifascistas.

[3] Restaurante fundado em 1924; Pasolini o frequentava com frequência durante as filmagens de “Accattone”.

[4] Ugo di San Vittore (1096-1141), teólogo, filósofo e cardeal francês.