domingo, 27 de fevereiro de 2011

Democracia Finita e infinita - Partes VI e VII

6.

Antes de prosseguir, paremos um instante sobre considerações linguísticas. Que se trate de processos etimológicos dotados de sentido ou ainda de acasos históricos (no mais, as duas ordens se separam mal na formação e evolução das línguas), o presente estado do nosso léxico político oferece uma forte fonte de pensamento: "democracia" é formada por um sufixo que remete à força, à imposição violenta, diferentemente do sufixo -arquia que remete ao poder fundado, legitimado num princípio. A coisa é clara quando se considera a série: plutocracia, aristocracia, teocracia, tecnocracia, autocracia, ou burocracia (ou ainda oclocracia, "poder da massa") - tal como ela se distingue desta outra: monarquia, anarquia, hierarquia, oligarquia. Sem procurar entrar numa análise precisa das histórias desses termos (o que implicaria a de alguns outros como nomarquia, tetrarquia, ou ainda, fisiocracia ou mediocracia, com consideração de diferenças de épocas, de níveis, de registros de língua), discerne-se como a designação de um princípio fundador se distingue claramente da imputação de uma força dominadora (o que implica, naturalmente, que "teocracia" seja um termo pensado de um ponto de vista oposto à ideia de uma legítima soberania divina e que mesmo "aristocracia" possa implicar uma contradição entre a ideia de "melhores" e aquela de sua dominação mais ou menos arbitrária).

Ainda que sejam, mais uma vez, fenômenos estritamente linguísticos, é certo que a palavra "democracia" parece manter a coisa longe da possibilidade de um princípio fundador. E, de fato, é preciso dizer que a democracia implica por essência algo de uma anarquia, que poderia ser dita quase de princípio, se por isso não podia autorizar-se justamente essa contraditio in adjecto.

Não há "demarquia": o "povo" não faz princípio. Ele faz no máximo oximoro ou paradoxo de princípio sem principado. É também porque o direito ao qual remete a instituição democrática só pode viver em verdade numa relação sempre ativa e renovada em face de sua própria falta de fundação. Que a primeira modernidade tenha forjado a expressão "direito do homem" e que a implicação filosófica dessa expressão continue a ser ativa, mas sobre um modo implícito e confuso, na expressão "direitos do homem" (ou do animal, da criança, do feto, do meio ambiente, da própria natureza etc.)

É mais que tempo de reafirmar e trabalhar essa afirmação cujo conteúdo e alcance são, no entanto, teoricamente, bem estabelecidos: não somente não há "natureza humana", mas o "homem", querendo confrontá-lo à ideia de uma "natureza" (de uma ordem autônoma e auto-finalizada), não tem outras características do que a de um sujeito em falta de "natureza" ou em excesso sobre toda espécie de "natureza": o sujeito de uma desnaturação no sentido, pior ou melhor, em que se pretenda tomar essa palavra.

A democracia enquanto política, não podendo ser fundada sobre um princípio transcendente, é necessariamente fundada, ou infundada, sobre a ausência de uma natureza humana.

7.

Segue, no plano da política, de suas ações e de suas instituições, duas consequências maiores.

A primeira consequência diz respeito ao poder. A democracia implica o direito, ou parece implicar - é precisamente sobre o semblante ou a realidade que é preciso aqui se pronunciar - uma desaparição ao menos tendencial da instância específica e separada do poder. Ora, já vimos, é precisamente a anulação de uma tal separação que se torna o problema. É para "um povo de deuses" que uma tal anulação poderia ser efetiva. O modelo dos "conselhos" (ou sovietes) cuja forma ideal é, em suma, o povo em assembleia permanente e a designação de delegados para tarefas determinadas, de acordo com a revogabilidade permanente desses mesmos delegados. Que seja possível e desejável, em vários tipos de níveis ou de escalas sociais, praticar fórmulas de co-gestão ou de participação que tendem mais ou menos para esse modelo não impede que à escala de uma sociedade inteira ele não seja praticável. Mas não é simplesmente um problema de escala: é um problema de essência. A sociedade, por si, existe na exterioridade de relações. Nesse sentido, uma "sociedade" começa somente onde cessa a integração em interioridade de um grupo que solidifica seu sistema de parentesco e sua relação aos mitos, figuras ou totens do próprio grupo. Pode-se mesmo dizer que a distinção, isto é, a oposição, entre "sociedade" e "comunidade", tal qual formulada desde o fim do século XIX e tal como está implícita em todas as considerações da idade clássica sobre a "insociável sociabilidade" dos homens (Kant) não é por acaso contemporânea da democracia - assim como a dissolução das comunidades de vida rural não era estranha ao nascimento das cidades. A cidade - a polis - representava já uma forma de ligação à exterioridade, em relação a qual a democracia devia resolver o problema.

É claro que não se trata de tomar esses termos - "interioridade, exterioridade" - ao pé da letra, nem sob o registro do grupo ou sob o do indivíduo. Mas é preciso ter em conta que o fato de as representações que eles induzem sejam ou não recebidas e implementadas. A sociedade moderna (não temos senão tal termo genérico para a matéria) se representa segundo a exterioridade de seus membros (supostos indivíduos) e de suas relações (supostas de interesses e de forças). Uma antropologia inteira - para não dizer uma metafísica - está subentendida desde que se fala de "sociedade" e de socialidade, de sociabilidade, de associação. Associa-se a partir de uma exterioridade e a dissociação é sempre o corolário possível de uma associação.

É também porque o poder, em sociedade, parece apenas manter os traços da "violência legítima" e mais nada de uma função simbólica que seria ligada à verdade "interna" do grupo.

A democracia tem dificuldade em assumir um poder que trai a ausência de um tal simbolismo no sentido mais forte da palavra (digamos, no sentido em que uma vez a religião, civil ou não, outra vez a aliança feudal, outra a unidade nacional puderam parecer ao garantir a força). Nesse sentido, o verdadeiro nome que a democracia deseja, e aquele que ela tem, de fato, engendrado e levado durante cento e cinquenta anos como seu horizonte, é o comunismo. Esse nome tem sido o do desejo de criação de uma verdade simbólica da comunidade em face a qual a sociedade sabia-se totalmente em falta. Esse nome está talvez caduco, mas não é isso que discutirei aqui. Ele tem sido o nome portador de uma ideia - somente uma ideia, de modo algum um conceito no sentido estrito, um pensamento, uma direção de pensamento segundo a qual a democracia, de fato, se interrogava sobre sua própria essência e sobre sua própria destinação.

Não é mais suficiente hoje - longe disso! - denunciar tal ou qual "traição" do ideal comunista. É preciso muito mais levar em conta isto: a ideia comunista não tinha que ser um ideal - utópico ou racional - pois ela não operava sobre a dialética da exterioridade social e de uma interioridade (ou simbolicidade, ou consistência ontológica: é tudo um) comum ou comunitária. Ela tinha como tarefa abrir a questão do quê a sociedade, como tal, deixa em suspenso: precisamente o simbólico, ou o ontológico, ou ainda, banalmente, o sentido ou a verdade do ser-junto.

O comunismo não era político e não tinha que ser. A denúncia de que ele engajava a separação da política não era ela mesma política. O comunismo não o soube, nós devemos agora saber.

Mas é importante, nessas condições, não se seduzir pelo poder. Este não é somente o expediente exterior destinado a sustentar bem ou mal a insocial sociedade e do qual se aprende por predileção os próprios apetites mais exteriores, ou os mais friamente estrangeiros ou mesmo os mais hostis ao corpo da sociedade. Pois, precisamente, trata-se desse "corpo" e de saber se ele é um em interioridade orgânica ou se ele é um agregado suscetível aos meios de organização.

Que o poder organize, gira e governe não torna condenável a separação de sua esfera própria. É justo porque nós encontramos hoje, quão "comunistas" que podemos nos imaginar, o sentido de uma necessidade do Estado (com a qual, e não contra a qual, se colocam outras questões para além do Estado: as questões do direito internacional e dos limites da soberania clássica).

Mas é preciso não se contentar em decidir-se em relação ao que seria inevitável. No poder, há mais do que uma necessidade de governo. Há um desejo próprio, uma pulsão de dominação e uma pulsão correlativa de subordinação. Não se pode reduzir todos os fenômenos de poder - político assim como simbólico, cultural, intelectual, de palavra ou de imagem etc. - a uma mecânica de forças rebelde à moral ou a um ideal de uma comunidade de justiça e de fraternidade (pois é sempre, no fim das contas, uma condenação desse gênero que está sob nossas análises do ou dos poder[es]). Uma tal redução ignora aquilo que a pulsão em questão pode ter de distinta do simples desejo de destruir ou de morte. No impulso para a maestria, à influência ou à dominação, ao comando e ao governo, não é interdito (mesmo que justamente o seja para a psicanálise) considerar ao mesmo tempo o furor da sujeição, do aviltamento ou da destruição e o ardor da tomada em mãos, da potência de manter, conter e trabalhar em vista de uma forma e daquilo que uma forma pode expor. A conjunção, ou a mistura desses dois aspectos não é evitável e não se pode contentar-se em desejar uma polícia de pulsões que classifique entre as más e as boas domesticações. Barbárie e civilização se tocam aqui perigosamente, mas esse perigo é o índice da indeterminação e da abertura do movimento que impulsiona a comandar e a possuir.

Esse movimento é tanto de vida como de morte, de sujeito em expansão como de objeto de sujeição, é tanto o fato de um crescimento do ser no seu desejo quanto aquele de seu afundamento na satisfação plena. Esse é o desafio profundo do conatus de Spinoza ou da vontade de potência de Nietzsche, para tomar as figuras mais visíveis daquilo que em toda parte no pensamento indica esse impulso - o qual só pode ser ambivalente se não é pré-formado nem predestinado a tal ou qual fim.

O poder político é certamente destinado a garantir a socialidade, até na possibilidade de lhe contestar e refundar suas relações estabelecidas. Mas é pela destinação ao que a socialidade pode encontrar de acesso a fins indeterminados sobre os quais o poder como tal é sem poder: os fins sem fim do sentido, dos sentidos, das formas, das intensidades de desejo. O impulso do poder ultrapassa o poder ainda que ao mesmo tempo persiga o poder por ele mesmo. A democracia coloca, em princípio, uma ultrapassagem do poder - mas como sua verdade e sua grandeza (ou seja, majestade!) e não como sua anulação.


Jean-Luc Nancy. La Démocratie finie et infinie. In.: Démocratie dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009. pp. 84-90. (Trad. Vinícius Nicastro Honesko). Posto a tradução das últimas 3 partes nos próximos dias.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Democracia finita e infinita - Partes I a V

1.

Há um sentido em dizer-se "democrata"? É claro que se pode e que se deve igualmente responder: "não, o menor sentido, já que não é mais possível dizer outra coisa" - ou: "sim, claro, já que por toda parte são ameaçadas a igualdade, a justiça e a liberdade - pelos plutocratas, pelos tecnocratas, pelos mafiocratas".

"Democracia" tornou-se um caso exemplar de insignificância: forçada a representar o todo da política virtuosa e a única maneira de garantir o bem comum, a palavra acabou por absorver e por dissolver todo caráter problemático, toda possibilidade de interrogação ou de pôr-se em questão. Ainda restam certas discussões marginais sobre as diferenças entre diversos sistemas ou diversas sensibilidades democráticas. "Democracia" quer, em suma, tudo dizer - política, ética, direito, civilização - e, portanto, não quer dizer nada.

Essa insignificância deve ser tomada muito seriamente, e é isto que faz o trabalho contemporâneo do pensamento, como testemunha a presente "investigação": não se contenta mais em deixar flutuar as intermitências do sentido comum. Exige-se fazer comparecer a insignificância democrática diante do tribunal da razão.

Recorro a essa metáfora kantiana pois penso que se trata de uma exigência igual à que se impunha a Kant de submeter ao discernimento crítico o sentido mesmo do "saber". No entanto, de qualquer modo que se pretenda fazer isso, não se pode mais anular agora, mesmo tendencialmente, a demarcação entre objeto de conhecimento para um sujeito e o saber - digamos "de sujeito sem objeto" para tornar abruptamente mais simples (e mesmo sem explicá-la em outra parte). Ou precisamos, num curto espaço de tempo, tornarmo-nos capazes de uma demarcação mais clara e consistente entre dois sentidos, dois valores e duas questões que cobrem indistintamente a insignificância confusa da palavra "democracia".

De um lado essa palavra designa - de um modo parecido, para girar a analogia, ao regime kantiano do "entendimento" - as condições das práticas possíveis de governo e de organização, desde que nenhum princípio transcendente não as possa regrar (compreendido que nem o "homem", nem o "direito" podem, a esse respeito, valer transcendência).

De outro lado, essa mesma palavra designa - sob um modo desta vez parecido ao regime da "razão" - a Ideia do homem e/ou aquela do mundo desde que, subtraída à toda aliança com um além-mundo, eles não postulem a respeito disso nada mais do que sua capacidade de serem por si próprios, sem se furtarem à sua imanência, sujeitos de uma transcendência incondicionada, isto é, capazes de implantar uma autonomia plena. (Como se deve imaginar, eu emprego o verbo "postular" segundo a analogia kantiana para designar o modo legítimo, em regime de finitude, isto é, de "morte de Deus", de uma abertura ao infinito.)

Essa segunda acepção certamente não pode ser dita "própria" e nenhum dicionário a autoriza. Mas mesmo não sendo um significado do termo, é a significação que se lhe acopla: a democracia promove e promete a liberdade de todo ser humano na igualdade de todos os seres humanos. Nesse sentido, a democracia moderna compromete o homem absolutamente, ontologicamente e não somente o "cidadão". Ou ainda, ela tendencialmente confunde os dois. Em todo caso, a democracia moderna corresponde muito mais do que a uma mutação política: a uma mutação de cultura ou de civilização tão profunda que ela tem valor antropológico, juntamente com a mutação técnica e econômica da qual ela é solidária. É por isso que o contrato de Rousseau não institui somente um corpo político: ele produz o homem mesmo, a humanidade do homem.

2.

Para que seja possível tal anfibologia de uma palavra, tinha de ser possível uma ambiguidade, ou uma confusão ou indistinção qualquer, sobre o registro de origem e de uso dessa palavra, a saber, o registro da política.

É como efeito de uma dualidade ou de uma duplicidade constitutivas da "política" que procede a ambivalência mal discernida e mal regrada da "democracia". A política jamais cessou, desde os Gregos até nossos dias, de se manter numa disposição dupla: de uma parte o único regramento da existência comum, de outra a assunção do sentido ou da verdade dessa existência. Às vezes a política destaca claramente sua esfera de ação e de pretensão, às vezes, ao contrário, ela a estende à totalidade da existência (portanto, indiscernivelmente comum e singular). Nada espantoso se as grandes tentativas de cumprimento político do século XX foram feitas sob o signo de tal assunção: que o ser comum venha como auto-ultrapassagem ou auto-sublimação das relações e das forças. Essa ultrapassagem ou essa sublimação que pôde ser nomeada "povo", "comunidade" ou ainda com outros nomes (dentre os quais a "república"), representou exatamente o desejo da política de ultrapassar a si mesma (necessariamente eliminando-se como esfera separada e, por exemplo, absolvendo e dissolvendo o Estado). É dessa auto-ultrapassagem - ou auto-sublimação - que procedem a ambivalência e a insignificância da "democracia".

3.

Tudo começa, na realidade, com a política mesmo. Pois é preciso lembrar que ela começou. Nós estamos frequentemente prontos a pensar que há desde sempre e por toda parte política. Mas não houve desde sempre política. Ela é, com a filosofia, uma invenção grega e, como a filosofia, é uma invenção resultante do fim das presenças divinas: cultos agrários e teocráticos. Do mesmo modo que o logos se edifica sobre a desqualificação do mythos, assim também a política se ordena sobre a desaparição do deus-rei.

A democracia é, portanto, o outro da teocracia. Isso quer dizer também que ela é o outro do direito dado: o direito, ela deve inventá-lo. Ela deve inventar a si própria. Contrariamente às imagens piedosas que amamos (e por causa delas...) fazer da democracia ateniense, a história dessas mostra-nos imediatamente e sempre dentro da inquietude dela mesma e das preocupações de sua reinvenção. Toda a questão de Sócrates a Platão se produz nesse contexto, como a busca pela logocracia que deveria colocar fim às falhas da democracia. Essa busca, no fundo, é perseguida até nossos dias por meio de muitas transformações dentre as quais a mais importante foi a tentativa de estabelecer com o Estado e sua soberania uma fundação decididamente autônoma do direito público.

Transferindo a soberania ao povo, a democracia moderna mostrou o que permanecia ainda (mal) dissimulado pela aparência de "direito divino" da monarquia (ao menos francesa): a saber, que a soberania não é fundada nem no logos, nem no mythos. Desde seu nascimento, a democracia (aquela de Rousseau) sabe-se infundada. É sua sorte e sua fraqueza: nós estamos no coração desse quiasma.

É preciso discernir para onde levam respectivamente a sorte a fraqueza.

4.

Comecemos, por isso, observando que a democracia não começou nem recomeçou sem ser acompanhada de "religião civil". Ou melhor: enquanto ela acreditou em si, soube também que lhe era preciso não certamente "secularizar" a teocracia, mas inventar o que poderia ser, em relação ao direito dado, um equivalente sem ser um sucedâneo ou um substituto: uma figura da doação que seria tutelar para a invenção sempre por fazer. Uma religião portanto que, sem fundar o direito, daria sua benção à sua criação política.

É assim que Atenas e Roma viveram religiões políticas e delas fizeram uso - as quais talvez jamais, ou raramente, tiveram toda a consistência tutelar esperada. Não é por acaso que Sócrates é condenado por impiedade em relação à religião civil, não é também por acaso que o cristianismo se separa ao por sua vez da religião civil de Roma (esta já enfraquecida, tendo cedido em relação a sua verdadeira fé, que era a República). A filosofia e o cristianismo acompanham a longa derrota da religião civil na Antiguidade. Quando o cristianismo desocupar o lugar, não justamente o de uma nova teocracia nem o de uma religião civil, mas o de uma partição ambígua - associação, competição, dissociação - entre o trono e o altar, a religião civil poderá procurar renascer no seu ensino (na América) ou no seu exemplo (na França), mas ela será votada a permanecer mais civil do que religiosa e, em todo caso, querendo-se discutir as palavras, mais política do que espiritual.

Dá-se uma atenção muito pequena à relação de Platão com a democracia. A reverência que se dá àquele que não é o primeiro dos filósofos somente no sentido cronológico, mas que tem um papel estritamente fundador, tem por efeito que no nosso habitus democrático nós admitimos como um simples desvio, como uma tendência aristocrática, sua hostilidade em relação ao regime ateniense tal como ele o conhecia. Mas a questão é muito mais importante: o que Platão reprova na democracia é o fato de ela não ser fundada em verdade, de não poder produzir os títulos de sua legitimidade primeira. A suspeita em relação aos deuses da cidade - e a suspeita em relação aos deuses e mitos em geral - abre a possibilidade de uma fundação em logos (em um logos cujo theos, no singular, torna-se um outro nome).

5.

Desde então, uma alternativa atravessa toda nossa história: ou bem a política é infundada e assim deve permanecer (com o direito), ou bem ela se dá um fundamento, uma "razão suficiente" leibniziana. No primeiro caso, ela se contenta com móveis faltas de razão(ões): a segurança, a proteção contra a natureza e contra a insociabilidade, a junção de interesses. No segundo caso, a razão ou Razão invocada - direito divino ou razão de Estado, mito nacional ou internacional - transforma inevitavelmente a assunção comum que ela anuncia em dominação e em opressão.

A sorte da ideia de "revolução" foi jogada na articulação entre os dois lados da alternativa. A democracia exige de fato uma revolução: fazer girar a base mesma da política. Ela deve expô-la à ausência de fundamento. Mas ela não permite, no entanto, que a revolução retorne ao ponto suposto de um fundamento. Revolução suspensa, portanto.

Nos últimos tempos vimos se desenvolver em muitos estilos pensamentos da revolução suspensa, pensamentos do momento insurrecional opostos à instalação - ao Estado - revolucionária, pensamentos da política como ato sempre renovado de uma revolta, crítica e subversão despojadas de pretensão fundadora, pensamentos do assédio continuo mais do que da destruição do Estado (isto é, literalmente, daquilo que está estabelecido, assegurado, e, assim, supostamente fundado na verdade). Esses pensamento são justos: eles assumem tudo isto, que "política" não legitima a assunção da humanidade, nem do mundo (já que, a partir de então, homem, natureza, universo são indissociáveis). É um passo necessário para a dissipação daquilo que foi uma grande ilusão da modernidade, aquela que há muito tempo foi expressa por meio do desejo de desaparecimento do Estado, isto é, da substituição do fundamento reconhecido não consistindo de um fundamento em verdade - a verdade mesma residindo na projeção democrática do homem (e do mundo) igual, justo, fraterno e subtraído ao poder.

Torna-se necessário dar um passo a mais: pensar como a política infundada e, de alguma maneira, em estado de revolução permanente (se é possível desviar assim esse sintagma...) tem por tarefa permitir a abertura de esferas que lhe são por direito estrangeiras e que são, por sua parte, as esferas de verdade ou do sentido: aquelas que designam mais ou menos os nomes da "arte", do "pensamento", do "amor", do "desejo" ou todas as outras designações possíveis da relação ao infinito - ou, para melhor dizer, da relação infinita.

Pensar a heterogeneidade dessas esferas em relação à esfera propriamente política é uma necessidade política. Ou a "democracia" - isso que nós cada vez mais temos o hábito de nomear assim - tende, ao contrário, segundo esse hábito, a apresentar uma homogeneidade dessas esferas ou dessas ordens. Mesmo se ela permanece vaga e confusa, essa homogeneidade presumida nos desvia do caminho.


Jean-Luc Nancy. La démocratie finie et infinie. In.: Démocratie, dans quel état? Paris: La fabrique, 2009. pp. 77-82. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Pretendo traduzir e postar a parte final do texto (VI - X) nos próximos dias.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Do diário de apartamento

Seu sonho maior: ser Dionisio. Dionísio dormindo a céu aberto, desconhecedor de cercanias, cão uivando ao luar e às estrelas da infitude vazia. Um labiríntico e multiforme território pontuado por suas ralas pegadas - que logo mais desaparecerão ao vento - e das bestas conhecidas e desconhecidas que povoam as histórias mais audazes. Um Dionísio mortal, que não deixasse de sucumbir às intempéries, ao mar, à alegria e à embriaguez como o mais mundano dos camponeses. Que também necessitasse de um teto provisório, do calor do fogo, de um amor na paragem próxima, da viagem como alimento e fonte imediata da vida não dilacerada. De uma bela morte.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Praeludioum


Domingo de manhã e o começo da Suíte para Cello em Sol maior de Bach lançou objetos passados de novo à luz do dia. O famoso Praeludioum tinha um sabor bitter sweet (Richard Ashcroft disse há uns 14 anos que that's life) e a sinestesia era a marca do dia que estava por vir. Todo o traquejo que certos convívios requisitavam parecia-lhe faltar e a vontade de isolamento surgia às vezes como uma saída (covarde, ele sabia). A coragem do contato, da exposição era uma aspiração, uma vontade de sair do Praeludioum da vida para entrar curioso num novo mundo, este repleto de coisas de outra ordem ou de outro caos. Tudo era uma questão de personagens, mas sabia que o perecimento do molde no qual cunhara suas mil faces não implicava a morte das palavras já proferidas por qualquer um dos seus eus. Estas, as palavras de outrora, eram ecos e, como tais, continuam a reverberar ainda que já muito distantes da boca que as pronunciara.
Como os objetos empoeirados que retirara dos cantos sujas da memória podiam querer outro estatuto? Como queriam sair à luz e novamente darem seu corpo à reflexão dos fótons? Como as palavras queriam ser coisas? Como fazer coisas com as palavras (ah, malditos speech acts)? Mas era tudo distante da questão central: por que tanta insegurança? A loucura, os despojos de outros estados, a cerveja que o deixava ébrio, nada respondia à pergunta sobre seu momento. Era um momento bom ou ruim? Não havia como responder; não há senão momentos e o juízo de valor que fazemos sobre eles é sempre posterior, atrasado, aliás, um outro momento. Lançar-se na vida talvez fosse uma resposta. Mas de que modo? Em que frequência? Não havia como pegar um "bonde chamado desejo", mas só restar imóvel no cone de sombras da vida mesma; sentir o pulsar que se irradia com o batimento cardíaco, sentir o sangue correndo quente pelas artérias... talvez este seja o bom momento.
Ouvir o som de Bach parecia um amálgama de sentimentos: já não hesitava e sabia que a fragilidade do momento só podia ser do momento e, portanto, eterna. Como conchas que são agrupadas por uma criança que brinca à beira da praia, sua vida era agora um amontoado de instantes; mas onde estava a criança para brincar com eles? Talvez a força da precisão técnica imprimida por Starker no seu cello pudesse dar novo alento para o dia; talvez o gosto dessas suítes (acabou escutando as 6) fosse uma intrusão sinestésica demasiadamente insuportável, mas à qual, tal como à vida, era necessário fazer girar novos sentidos...

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Moi et personne


A tristeza hedionda do vazio,
do buraco onde não há nada,
não sopra o nada,
não há nada,
é em torno ao buraco,
no ponto em que as palavras se retiram,
um buraco sem palavras,
sílaba sem som.

Entre o corpo e o corpo não há nada,
nada além de mim.
Isso não é um estado,
um objeto,
um espírito,
um fato,
ainda menos o vazio de um ser,
absolutamente nada de um espírito, nem do espírito,
não um corpo,
é o intransplantável eu.
Mas não um eu,
eu não o tenho.
Eu não tenho eu, mas há somente eu e ninguém,
não há encontro possível com o outro,
o que eu sou é sem diferenciação nem oposição possível,
é a intrusão absoluta de meu corpo, em toda parte.

Antonin Artaud. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. pp. 1383-1384. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Nomear



Aparenta-se à loucura reduzir o mundo e a palavra. Jogados em um universo impenetrável tentamos nomeá-lo, teimosamente, cônscios da nossa insuficiência. A nomeação, ato inteligente, é também - e por isso - um ato aflito. Daí as aventuras da linguagem, expressão - com as suas contorções, buracos, obscuridades - dessa tentativa tão desesperada.
Sim.
Como nomear o que nos foge, o que se nega, o que se oculta
- e como vislumbrar, sem nomear,
o que se oculta, nega, foge?
Nomeamos.
Isto é romper sem cessar os nossos olhos contra pontas de aço.
Mas insistimos:
experimentamos a nomeação, inventamos linguagens.
Ofício? Encargo? Desafio?
Difícil, bem sabemos, nomear e ver
- expressões de lucidez.
Vida e morte, contudo, iluminam-se? Ante elas transitais sem sobressaltos e tranquilamente medis a extensão dos cemitérios, insensíveis à extensão ilimitada da morte? Sois o repetidor, servil, de uma linguagem formalizada, convicta da própria eficiência, pois o real, pretendeis, é tangível e sem sombras? Nesse caso, entre vós e nós, os que vemos tão pouco e sabemos ver pouco, e falamos com os dentes soltos na boca, pois vemos pouco, as imagens da Terra obstruindo (folhas de treva?) nossas órbitas perplexas, entre vós e nós existem muros.
Sabemos não ver porque vemos. Estais certos de ver e tudo credes nomear? Isto é ofício de loucos.

Osman Lins. A Rainha dos Cárceres da Grécia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. pp. 103-104.

Imagem: Nikos Economopoulos. During the election campain (Kalamata, 1981).

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Respirar


Impecavelmente mal dormida! Essa poderia ser a definição da última noite. Habitada por fantasmas, novos e velhos, a madrugada se alongava nas trilhas duma quase falta de ar. Mas quase queria dizer muito a respeito do intervalo entre a inspiração e a expiração. Acordo para reexaminar antigas notas e percebo minha letra ilegível, o azul quase ofuscante daquela caneta de tinta molhada, certas dobras nas orelhas das páginas, vejo que havia uma vontade de escrever que era similar à vontade de respirar de hoje cedo. Engraçado como olhar para estas notas no começo da manhã fez sacudir impressões que já tinham se dado no tempo; parece estranho reviver uma visão no instante mesmo em que o objeto olhado já não está mais à disposição dos olhos, já não é matéria sensível, mas puro delay, pura matéria-memória.
Uma longa conversa à distância com Chico me vem à mente. Lembro-me que o assunto sobre o qual falávamos era justamente a memória. Conversávamos sobre os antigos, sobre os que se foram, sobre os corpos dos nossos que agora eram pura imaginação. A certa altura eu faço um comentário - ingênuo, digamos - a respeito de como a ausência dessas pessoas às vezes parece não ser tão dura em virtude das lembranças. Chico, com seu calmo e peculiar tom de voz, adverte-me: "Pois é, meu caro, mas a morte chega até mesmo para essa matéria que compõe nossas lembranças individuais." A conversa continuou mas essa frase me atingiu o peito e, agora que a releio gravada na tinta azul, vejo que até mesmo ela pareceu morrer nos últimos tempos.
O jogo desta manhã estava se formando em tons nada cordiais e os paradoxos das idas e vindas, dos aparecimentos e sumiços eram agora irreversíveis. Os fantasmas da noite não poderiam ficar de fora da nova conversa imaginária com Chico. Eu poderia lhe dizer: "Olha, Chico, eles estão aqui!". Ao que ele poderia responder, talvez citando Furio Jesi: "Do passado o que importa é o que se esquece...". É, talvez a experiência do presente vivente seja a curiosa forma de fazer o passado falar sem ameaças, sem interromper nossa respiração. Respirar é preciso! E talvez ficar ofegante não seja uma maneira de enfrentar as interrupções do balé da inspiração/expiração.
Depois do diálogo com Chico acabei por me lembrar de que quando vi as "Tentações de Santo Antônio" de Bosch tive como um alento para meu cansaço (cheguei ao Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa exausto e já ofegante depois de horas de caminhada), ainda que tenha ficado um tanto quanto conturbado por aquelas imagens. A primeira impressão era de reversão: criaturas aladas com formas de peixe nos céus, cidades a queimar, seres demoníacos de todas as ordens. Era o mal que invadia o mundo, era uma visão pessimista da história e da vida humana. No centro do tríptico o Santo Antônio sereno, ajoelhado diante de uma imagem do Cristo, olha para os espectadores e, numa espécie de tentativa extrema de saída da destruição, parece dizer: "O centro da minha vida está no Cristo, na renúncia à minha vida para - como diz São Paulo - poder dizer que não sou mais eu quem vivo, mas Cristo que vive em mim. E essa é minha esperança e por isso resisto às tentações." Ora, renunciar a vida em prol da vida. O paradoxo do cristianismo oficial sacode a beleza do quadro. Entretanto, a visão do santo não me aliviou em nada a tensão das imagens circundantes (talvez minha sensação fosse fruto da minha tentativa de rejeição à "esperança oficial" cristã). Aliás, bastou-me dar alguns passos para ver que atrás dos painéis haviam outros dois esboços do pintor: o caminho para o Calvário e o encontro de Cristo com Verônica. Aqui, nada além de um vazio desértico e uma desolação quase que irremediável. Os rascunhos, que estão atrás dos painéis laterais do tríptico, são as sombras constantes (literais, poderia dizer) da esperança esboçada na imagem central de Santo Antônio.
As lembranças continuam, mas a vida parece estar numa pausa. Talvez lembrar do pessimismo de Bosch possa ser uma pedra de toque para seu reverso: tentar encontrar a matéria experimentada na vida presente. Não digo uma "vontade de otimismo", não digo um voo para os céus das contemplações de uma vida outra (como as que estão presentes na face do santo diante da imagem do cristo no painel central), mas talvez apenas uma vontade de respirar.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O relógio

No Palazzo d'Accursio um relógio parado me dizia uma hora eterna: 9:16. Era estranho entrar naquele quarto todo decorado, com papel de parede verde, com cerâmicas italianas de motivos árabes (aquelas que, de outra maneira, ainda hoje podemos encontrar em lojinhas de Taormina), mobília nobiliárquica de fins de século XVIII e começo de século XIX, quando existiram as então repúblicas Cispadana e Cisalpina, criadas pela invasão napoleônica. A hora, 9:16, era eterna e não poderia eu saber nada além da colocação dos ponteiros imóveis. Teria aquele relógio estado por ali durante os eventos da conquista de Napoleão, quando ele observou Bolonha do alto das colinas (onde depois seu subalterno Aldini mandaria construir uma Villa, na qual o Imperador jamais botou os pés) e disse: "C'est superbe!"? A história tinha me pegado a contrapelo. Eu não sabia de nada e de nada adiantava saber naquele momento. A hora do Vander Cruse de Paris era um fosso no qual eu caia: 9:16. Será mesmo que o ponteiro estava já na casa dos dezesseis minutos? Será que eu tinha entrado na coleção comunal de arte preparado para encontrar a minha hora?
Os dias se passaram e o quarto verde era algo de que não conseguia me esquecer. Era muito similar aos outros, onde também existiam cerâmicas, pequenas estatuetas, mobílias riquíssimas em madeira nobre e veludo, quadros de natureza-morta e relógios parados. Mas alguma razão existia para que eu me concentrasse, mesmo hoje (não sei quanto tempo depois), no quarto verde e, principalmente, no Vander Cruse que marcava 9:16. Razões podem ser inventadas de mil e uma formas diferentes, com variantes infindáveis, com causas quase que óbvias (porque fora o primeiro a visitar, porque fora ali que decidira fazer as anotações do que estava sentindo... enfim); mas de modo algum a passagem da impressão daquele momento à esta alegoria de um sentimento passado pode ser desvendada. Talvez eu até possa "saber inconscientemente" (sem o saber doloroso da consciência), mas o porquê permanece obscuro. Quis pensar a respeito das histórias que poderiam ter sido inventadas a partir das horas marcadas naquele relógio, quis inventariar algo para aquele quarto. Pensei na dama da alta sociedade bolonhesa que poderia estar agoniada pelas 9:20 enquanto uma serviçal lhe apertava o espartilho; também pensei nas senhoras que esperavam a hora certa para tomar seu chá; pensei nos militares prontos e à espera da próxima incursão... tudo o que a partir daquele relógio pode ter sido criado como mito e ficção de outros tentei minimamente imaginar. Claro que a pretensão era imensa e maior que a minha capacidade de cruzar o mundo e os tempos imaginados. Mas a hora estava marcada: 9:16.
Talvez eu tinha algum compromisso marcado para uma outra hora. Conferi o meu relógio - do celular, digital e sem o mínimo de pompa - e vi que era tarde, talvez demais para o momento. A interrupção, o corte no tempo acontece. Parei, deixei o texto que estava escrevendo sobre o relógio para encontrar-me com as horas. Tarde demais. Já passava das 9:16 e o canto do galo que tinha alertado Pedro não chegou a mim; nem as onomatopeias mais perfeitas eram capazes de me despertar do sonho com a hora exata. Por que deixei de estar na hora marcada onde eu queria ter estado? Ou talvez, por que estive nas horas marcadas e não faltei?
O relógio da parede do quarto verde do Palazzo d'Accursio era um indício que não poderia mais desprezar: paro o tempo, paro a vida, interrompo o fluxo circular que não indica senão o infortúnio de vidas que se cruzam sem se olharem e, como os ponteiros a girar, vagueiam vazias e impotentes diante do triunfo da morte (este quadro de Brueghel que sempre me fez pensar sobre a vida). As histórias que imaginei terem sido guiadas pelo tique-taque do relógio não sobreviveram, as damas da sociedade e os militares sucumbiram e, à beira da miséria humana, pareço sentir, à distância de horas, o meu momento presente. Tique-taque, tique-taque... e a proximidade é destronada, o giro dos ponteiros remove as pétalas das rosas que outrora ocupavam o caminho, o vazio se mostra... olho para o relógio... tento esquecê-lo...