quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Circo nosso



Por alguma estranha sorte e pelas contingências territoriais deste país imenso e de vasto interior, não fazemos parte de uma geração - ou de uma cultura, já que muitos não são tão novos assim - que se acostumou com a brutal invasão do mundo do trabalho alienado para todas as esferas da vida. Capitalismo neoservil - chamemo-lo como for, esta forma de vida gestada a partir da obediência e da violência disciplinar, da infantilização midiática e abovinação massiva, da nova religião que perdoa a destruição de tudo para salvar algumas instituições bancárias.   

Resta-nos, isolados, este sentimento de ira que surge, vez ou outra, após o trabalho esvaziado e repetitivo, após a incompreensão cotidiana, após a marmitinha comida na servidão. Vivemos nas neogalés e sabemos que estamos derrotados. Mas não ousamos nos resignar. 

Com uma carta amiga nos chega este poema do poeta pescador dos campos gerais,  um canto daqueles que, como escreveu o grande bardo, desesperadamente grita em português. O poema de P.W.Z. exige-nos inverter a famosa frase benjaminiana: é preciso mobilizar para a embriaguez reinante as energias da revolução. Que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês. 

Meu circo

Meu luto é diferente
Luto por tanta gente
Que às vezes me canso 
E danço pra fingir ser manso... e  contente.

Ouço as vozes dos anjos em volta
E não sei dizer se escuto
Fico puto
E nada me livra, nada me solta

Livre fui, num dia qualquer no tempo
Hoje sou dinheiro
Sou fome de fúria, sou lamento
Sou o trabalho de um dia inteiro

No escuro minha mão tateia
E não encontra teu corpo que era chama
Que não é mais minha cama 
Durmo no chão que agora incendeia

Recebo os cumprimentos
O prêmio Nobel da retidão
Sorrio (mas choro e lamento)
Meus trinta anos de escravidão...

Sinto cheiro da flor de laranjeira
Nostalgia primaveril de meados de 80
Que agora é conversa burra e ligeira
Lisonjeira mentira de quem tenta

Sou o peso que eu não queria
Sou o amigo do formal, do alinhado
Do hipócrita silêncio de patifaria
Do filho da puta engomado
Bom dia Dr.
Bom dia Senhores e Senhoras
Bem vindos a mais um espetáculo
Do palhaço amordaçado
Pelos tentáculos
Pelos testículos do sistema
Sejam bem vindos e fiquem à vontade
Por que eu não estou... mas .. quem se importa.
Eu me junto ao vosso coro... e por entre dentes xingo e insulto e me lembro:
“poeta bom meu bem, poeta morto”.

PWZ (2012 - PG). 

Imagem: Brassaï. L’allumeur du bec de gaz. Boulevard Edgar Quinet. 1932

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Todos mortos



Perdido em minha demência caminho por entre galáxias absortas. Sinto o cheiro das palavras que há pouco saíram das bocas maledicentes. E a ilusão do cheiro confunde-se com a sensação de as ter visto escritas, nas paredas das galáxias perdidas em desvarios. Paro, olho para o lado, confronto com meu irmão gêmeo, o nada. Labirintos de uma noite em claro à espera das obrigações do mundo dos práticos. Estes, os detesto, os detesto! Esfrego os olhos em busca de ofuscamento. Tento ver, tento ver, ainda que não queira. Há cheiros onde antes haviam formas, há formas onde não havia nada - ele, que já seria alguma coisa. Ah, as galáxias! Ah, as galáxias! Espaços vazios que me fazem ficar cheio de tudo. E viva Leminski! E viva Caproni! E viva Murilo! E viva Pessoa! Todos eles, como eu, mortos...

Imagem: Hieronymus Bosch. Dois Monstros. Staatliche Museen, Berlin.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Pequeno parágrafo sobre o desterro


Pequeno sulco de realidade. Realidade? Sonhos avessos e palavras à espreita, e eis que o temor do despertar inaugura o dia. Desterrado na vigília, via-me perdido em meio a uma multidão absorta no vazio dos gestos vazios, no sem sentido da vida sem sentido. Estrondoso foi então o grito que vi sair das páginas de um livro qualquer: "A eternidade não é muito mais longa que a vida". Olhei vários rostos e tentei desenhá-los com palavras. Senti que era impossível, senti que a realidade era impossível. Só me restava a ironia de saber-me acordado, vagando por entre desenhos inacabados e palavras empalidecidas pelo temor do reingresso naquele pequeno sulco que a próxima noite já começava a anunciar.

Imagem: Francisco de Goya e Lucientes. Morreu a verdade. 1810-1814.

sábado, 4 de agosto de 2012

O Silêncio das Palavras

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Poucos meses antes de morrer, em um entrevista, Ingeborg Bachmann relembra nestes termos a sua tese de láurea (Dissertation) sobre Heidegger:

Quando falo dessa tese de láurea, digo sempre que me laureei contra Heidegger. Porque, então, com vinte e dois anos, pensei: agora derrubarei esse homem. E era esta, mais uma vez, a raiva; porque já os lógicos de Viena, Carnap e outros, tinham procurado reduzir Heidegger ad absurdum. Naturalmente, Heidegger foge por completo à problemática deles. (...) O entusiasmo, a alegria, tanto no atacar quanto no admirar, era muito grande aos vinte e dois anos. Naturalmente, não derrubei Heidegger. Mas, à época, estava absolutamente convicta de que ele não teria sobrevivido à tese. De resto, ele a conhece, é uma das poucas pessoas que a conhece. E teve um estranho desejo, sem saber nada antes; para o seu aniversário de setenta anos desejava de sua editora, para a sua Festschrift, uma poesia de Paul Celan e uma minha. E nós dois dissemos não (...)[1].

Considerada como uma análise crítica do pensamento de Heidegger, a tese de Bachmann corre o risco de desiludir seus leitores. Como já foi observado[2], as citações dos textos heideggerianos são com frequência de segunda mão e é possível que os conhecimentos da jovem laureanda, aparentemente dominada pelas teses do positivismo lógico, teriam sido insuficientes para a tarefa (tarefa esta excluída pelo próprio título da Dissertation, que se limita à “recepção crítica da filosofia existencial de M. Heidegger”).
Mais surpreendente é que, com um extraordinário intuito filosófico, Bachmann consiga romper em um ponto decisivo os esquemas dos próprios mestres vienenses e captar, com uma radicalidade que não encontra equivalentes na literatura filosófica daqueles anos, justamente o problema-limite do pensamento de Heidegger depois do encontro com Hölderlin: a relação entre poesia e pensamento.
Para dar conta disso, é preciso partir da conclusão da Dissertation, que enuncia a única tese em sentido próprio que esse escrito juvenil contém. Bachmann parece então retomar o argumento de Carnap, segundo o qual a metafísica heideggeriana, enquanto tenta, na forma de uma teoria, dar expressão a conteúdos que não são racionalizáveis, coloca-se fora do âmbito do conhecimento e acaba necessariamente por produzir um insuficiente substituto  da poesia:

A metafísica heideggeriana, que tem a forma de uma teoria, mostra-se, assim, inadequada para exprimir um sentimento vital que, segundo a opinião de alguns autores, deve ser confiado à metafísica. (...) À necessidade de expressão desse outro âmbito de realidade, que se subtrai à fixação por meio de uma filosofia existencial sistematizadora, responde, todavia, em medida infinitamente mais alta, a arte com as suas múltiplas possibilidades. Quem quer encontrar o “nada nulificante” experimentará trêmulo a violência do horror e do aniquilamento mítico no quadro de Goya – Kronos devora os seus filhos –, e poderá provar como um testemunho linguístico da extrema possibilidade de exposição (Darstellung) do indizível, o soneto de Baudelaire Le gouffre, no qual encontra expressão o confronto (Auseinandersetzung) do homem moderno com a angústia e com o ‘nada’[3].

É suficiente refletir sobre essa conclusão para dar-se conta de que o que em Carnap visava a uma clara delimitação de competências entre poesia e conhecimento, aqui dá lugar a uma confusão territorial na qual poesia e filosofia perigosamente acabam coincidindo quanto ao seu âmbito. Elas são separadas apenas por um naufrágio, no sentido em que a poesia se substitui in extremis à filosofia no ponto em que esta falha diante da tarefa de uma exposição do indizível. O naufrágio da filosofia, na sua Auseinandersetzung com o nada, delimita a esfera em que o poeta se aventura não por meio de um salto no irracional, mas com um “testemunho linguístico da extrema possibilidade de exposição do indizível”. A filosofia não mais se apresenta aqui, como em Carnap, como uma substituta da poesia; ao contrário, é a poesia que se sub-roga ao naufrágio linguístico do pensamento. A exposição do limite da filosofia é, ao mesmo tempo, o anúncio de uma tarefa poética.

Em um documento singular, cuja importância fugiu à filologia heideggeriana (ou, no caso de quem, como Gadamer, presumivelmente dele tinha conhecimento, foi suprimida), o filósofo parece subscrever de modo antecipado o diagnóstico de Bachmann. Em dezembro de 1941, Heidegger manda a Max Kommerell o texto da sua conferência Hölderlins Hymne: “Wie wenn am Feiertage”. Em 22 de dezembro, Kommerell comunica a Gadamer sua impressão:

Heidegger me enviou o seu texto. É um produtivo infortúnio ferroviário (Eisenbahn Unglück), a propósito do qual os vigias da história literária – se são honestos – deverão se descabelar. Não posso decidir-me a lê-lo como uma interpretação – nele acontece alguma coisa [...].

Escrevendo algum tempo depois ao próprio Heidegger, Kommerell retoma, no fim da sua carta, a imagem do “infortúnio”: “E, se posso ser ainda franco depois de tanta sinceridade, não poderia – não digo: é –, não poderia ser seu ensaio um infortúnio (ein Unglück)!?”[4]. Respondendo a essa carta, em 04 de agosto de 1942, Heidegger escreve:

Você tem razão, o escrito é um infortúnio (Unglück). Também Ser e Tempo foi um incidente (Verunglückung). E toda exposição imediata do meu pensamento seria hoje o maior infortúnio (das gröbte Unglück). Talvez é esse um primeiro testemunho do fato de que as minhas tentativas às vezes se aproximam de um verdadeiro pensar. Diferentemente do poeta, todo pensamento sincero é, no seu efeito imediato, um infortúnio. Disso se entenderá que eu não posso de modo algum me identificar com Hölderlin. Aqui está em curso um confronto (Aus-ein.ander-setzung) de um pensamento com um poeta, e apenas o confronto coloca o respondente. É isso arbítrio ou a mais alta liberdade?[5]

Talvez apenas uma outra vez em toda história da filosofia é possível encontrar uma declaração comparável a essa confissão, na qual o autor define, sem meios termos, como um infortúnio a obra-prima da filosofia do século XX: é quando o velho Platão, na sétima carta, afirma, apagando de uma vez os seus diálogos, não ter escrito uma só linha sobre o que considera verdadeiramente sério. Entretanto, decisivo é, na perspectiva que aqui nos interessa, que Heidegger, no momento mesmo em que sanciona o necessário naufrágio do filósofo, situe em um confronto (em uma “posição recíproca”) entre filosofia e poesia o experimentum crucis do pensamento. Compreende-se então sem dificuldades por que, muitos anos depois, ele tenha podido pedir justamente para Bachmann uma poesia para sua Festschrift. Mas isso significa que o poeta tem êxito onde o filósofo falha? De fato, é essa a tese conclusiva da Dissertation de Bachmann? E de que modo devemos entender a exposição do indizível que acontece na poesia, se aquilo de que nela se faz experiência é apenas “violência do horror e aniquilamento”?

Em um carta a Neuffer, de 12 de novembro de 1798, Hölderlin, depois de ter evocado as faltas das suas exposições (Darstellungen) e o “errar poético” (das poetische Irren) em que se encontra aprisionado, apresenta, ainda nos termos de um infortúnio, a relação entre poesia e filosofia:

Por certo há um asilo no qual todo poeta que, como eu, é desafortunado (auf meine Art verunglückte Poet) pode encontrar refúgio com honra: a filosofia.

Muitas declarações de Bachmann, sucessivas à tese de láurea, poderiam dar testemunho de uma análoga falência da poesia, da qual a primeira lição de Frankfurt contém um elenco exemplar[6]. De outro lado, a tensão em direção ao “asilo” do pensamento (e, em particular, a reflexão sobre a linguagem) jamais faltou na obra de Bachmann e, por isso, o último romance publicado em vida, Malina, pôde ser definido como uma “passagem da poesia na filosofia”[7]. Nessa perspectiva, a tese conclusiva da Dissertation é integrada no sentido em que tanto a filosofia quanto a poesia representam uma forma de falência na exposição do indizível, que constitui sua tarefa comum. Mas, por razões que devem ser esclarecidas, essa falência é mais essencial do que a própria tarefa – ou, ao menos, dela é parte integrante, uma vez que verdadeiro poeta e verdadeiro filósofo é apenas quem de tal tarefa pode fazer experiência. Isto é, a exposição do indizível implica um paradoxo similar àquele que Kleist indicava no exemplo do arco, que é sustentado pela sua própria queda, e que Bachmann exprime em uma poesia escrevendo que “todos que caem têm asas”[8].
Nas conferências sobre A essência da linguagem (que Bachmann não podia conhecer à época da tese de láurea), Heidegger tem em mente uma experiência do gênero, quando escreve que nós fazemos de fato experiência da linguagem apenas onde os nomes nos faltam, onde as palavras se quebram nos nossos lábios. Na transmissão radiofônica sobre Wittgenstein, Bachmann aproxima a experiência do falhar da linguagem (Sprachlosigkeit) em Heidegger ao silêncio que fecha o Tractatus. Mas o que aqui deve ser propriamente calado? O que é o indizível que, segundo uma outra proposição do Tractatus (4.115), à qual Bachmann volta várias vezes, só é significado por meio da clara exposição do dizível?
O indizível, para Wittgenstein, por certo não é algo, um quid do qual se poderia eventualmente dizer o que seja, bastando para isso encontrar a expressão correta (em termos filosóficos: ele não é da ordem de uma essência), mas é uma pura existência, o puro fato de que o mundo seja. A proposição 6.432, que Bachmann define “a mais amarga” do Tractatus[9], não diz respeito a um Deus que está escondido, por assim dizer, atrás do mundo, mas à própria existência do mundo. O que não se revela no mundo é o simples fato de que o mundo exista; as proposições da linguagem, que dizem como (wie) o mundo é, não podem dizer que (dab) o mundo é. De que modo, com efeito, é pensável, nos termos da Dissertation, a tarefa de uma exposição do indizível?
Além da proposição 4.115 (“Ela [isto é: a filosofia] significará o indizível, naquilo que ela expõe claramente [klar darstellt] o dizível”), Wittgenstein acena para esse problema na conferência sobre a ética (publicada apenas em 1965 e que Bachmann não podia, por isso, conhecer à época dos seus escritos sobre Wittgenstein). “A única expressão adequada na língua para o milagre da existência do mundo – ele escreve –, ainda que não seja nenhuma proposição na língua, é a existência da própria linguagem”.
A tarefa poética do pensamento se desloca aqui de uma expressão por meio da linguagem a uma expressão pela existência da linguagem. Mas como pode a existência da linguagem – o fato de que a linguagem seja – ser atestado de maneira independente de proposições proferidas na linguagem?
Aquilo de que se trata então de fazer experiência no “infortúnio” constitutivo do pensamento e da poesia (na falência poetante do filósofo e na falência pensante do poeta) é a própria linguagem. Isto é, experiência não de linguagem, mas da linguagem como tal, do seu ter lugar no silêncio das proposições significantes. Por isso a proposição 4.115 do Tractatus não pode ser lida, segundo a tradição do positivismo lógico, como uma simples posição de confins, mas todo o problema torna-se o do significado do adjetivo klar, da “clarificação” (Klarwerden von Sätzen), em que a proposição 4.112 indica o resultado da filosofia – não por acaso, de fato, a Klarheit der Darstellung que Hölderlin, na carta a Böhlendorf de dezembro de 1801, assinalava como tarefa própria à “sóbria” poesia ocidental, e a propósito da qual escrevia que “o uso livre do próprio é a coisa mais difícil”.
Na clareza, na claritas, o que aparece é a própria língua, a sua pura exterioridade, o factum da sua existência. Se chamamos agora experimentum linguae essa experiência que se faz não com objetos ou com coisas significadas, mas com a própria linguagem, podemos então dizer que para todo poeta e para todo pensador dá-se um tal experimentum linguae que define o modo e o âmbito singular do “infortúnio” por meio do qual ele responde à sua tarefa. O experimentum linguae de Heidegger certamente se situou, por volta da metade dos anos trinta, no confronto (no infortúnio) com Hölderlin. Qual é, então, o experimentum linguae que define o lugar próprio de Bachmann?

O breve discurso proferido por ocasião do prêmio Wildgans, em maio de 1972, responde tais questões com duas autocitações: “a linguagem é a pena” e “não uma palavra, ou palavras”[10].
A primeira, retirada do romance Malina, introduz uma espécie de trágica reformulação do ditado de Anaximandro:

Revelarei para vocês um segredo terrível: a linguagem é uma pena. Nela todas as coisas devem entrar e em seguida novamente perecer segundo a sua culpa e a medida da sua culpa[11].

Não é impossível que aqui Bachmann tivesse em mente também a lenda kafkiana Na colônia penal, em que o condenado, para expiar a sua culpa, é introduzido em uma máquina de tortura que insere na sua carne o texto da norma que ele transgrediu. Em todo caso, decisivo é que, nesse terrível segredo, o âmbito da linguagem – das proposições que podem ser ditas – coincide com o de um incessante e mortal castigo. Essa linguagem do castigo é a que “nós encontramos já pronta”[12], uma “linguagem má”[13], composta só de frases feitas[14]. A sua palavra é a “palavrório” sobre a qual fala uma das mais belas poesias de Anrufung des Groben Bären: “palavra que semeia o dragão”, “rumo da culpa”, que imita “o verso da besta”[15]. Ela pode apenas “retirar-se atrás de outras palavras”, como a frase atrás de “outras frases”[16].
O poder que coloca um limite a essa linguagem e, ao mesmo tempo, define, no experimentum linguae, a tarefa da poesia, é expresso na injunção paradoxal da segunda citação: “não uma palavra, ou palavras”[17]. Ela ordena ao próprio discurso não fazer palavras naquilo que nomeia. O silêncio que está em questão no experimento bachmanniano não é, com efeito, silêncio na linguagem, privação de palavra, mas silêncio da linguagem, palavra em que a palavra se cala.
É uma aporia do mesmo gênero que Benjamin tinha em mente quando, na carta a Buber, falava de uma “direção intensiva da palavra no coração do mais íntimo calar-se” e de uma “cristalina eliminação do indizível na linguagem”[18]; e no mesmo sentido parece indicar Celan no discurso de Bremen:

Ela, a língua, permanecia não perdida, apesar de tudo. Mas devia então passar através da própria falta de respostas, atravessar um tremendo calar-se, atravessar as mil obscuridades dos discursos que trazem a morte. Ela atravessou tudo isso e não deu palavra para o que aconteceu [...][19].

O mutismo, que essa singular omertà impõe, é um estatuto eminente da palavra. O que nela se mostra não é o não-linguístico (que, como tal, é apenas um obscuro pressuposto da palavra), mas a “inteira língua” (die ganze Sprache),[20] que constitui a “utopia da linguagem” em direção a qual, segundo a última lição de Frankfurt (que, de maneira exata, retoma uma metáfora heideggeriana), a literatura se mantém incessantemente a caminho[21]. Essa visão da inteira língua, “que ainda não reinou”[22], é a Klarheit der Darstellung, de que falavam Hölderlin e Wittgenstein, e, por isso, “ver o mundo como um todo limitado” só pode significar, nessa perspectiva, ver a linguagem como um todo silencioso.
A utopia da linguagem, em direção a qual a literatura está a caminho, coincide com o irreparável caráter tópico das proposições significantes: ela não é uma outra palavra, mas apenas o seu mudo ter lugar, o halo de silêncio que as delimita e expõe.
Isso, e somente isso, é a palavra “livre, clara, bela” para a qual se volta a invocação final de Rede und Nachrede: “ó, minha palavra, salva-me!”. Mas o espaço que se abre nesse evento de um limite que coloca fim à pena da linguagem é onde se poderia, pela primeira vez, aparecer aquela “que tem o lugar do instante em que poesia e música encontram, uma em relação a outra, seu momento de verdade”[23], e que, sozinha, tem o poder de fazer calar a linguagem sem aboli-la, dando-lhe – antes – lugar: “uma voz humana”[24]. Segundo o significado original do termo latino, claritas é, antes de mais nada, um atributo da voz.

Maio de 1989.  


[1] I. Bachmann. In cerca di frasi vere. Trad. Cinzia Romani. Roma-Bari 1989, p. 225.
[2] Por F. Wallner, no Nachwort a I. Bachmann, Die kritische Aufnahme der Existentialphilosophie Martin Heideggers, München 1985, p. 178.
[3] Ivi, pp. 129-30.
[4] M. Kommerell, Briefe un Aufzeichnungen, Walter 1967, p. 402.
[5] Ivi, p. 405.
[6] I. Bachmann, Werke, a cura di C. Koschel, Inge von Weidenbaum, Clemens Münster, vol. IV, München 1978, pp. 187-88.
[7] Da Wallner, op. cit., p. 196.
[8] Das Spiel is aus, in I. Bachmann, Anrufugn des Groben Bären, München 1956, p. 8.
[9] Bachmann, Werke, vol. IV, cit. , p. 116.
[10] Ivi, p. 297.
[11] Id. Werke, vol. III, p. 97.
[12] Id. Werke, vol. IV, cit., p. 270.
[13] Ivi, p. 84.
[14] I. Bachmann, In cerca di frase vere, cit., p. 142.
[15] Bachmann, Anrufung, cit., p. 46.
[16] Ihr Worte, in Id., Werke, vol. I, p. 162.
[17] Ivi, p. 297. O original alemão (Kein Sterbenswort / Ihr Worte, literalmente: “Não uma palavra de morte / ou vós palavras”) remete à expressão idiomática: Kein Sterbenswort sagen, não suspirar, não dizer uma palavra.
[18] W. Benjamin, Briefe, Frankfurt a. M. 1966, vol. I, p. 127.
[19] P. Celan, Ausgewählte Gedichte, Frankfurt a. M. 1968, p. 128.
[20] Bachmann, Werke, vol. IV, cit., p. 268.
[21] Utopie der Sprache […] Unterwegssein zu dieser Sprache […]”, ibid. A coletânea heideggeriana Unterwegs zur Sprache acabava de ser publicada à época das lições de Frankturt (1959-60).
[22] Ivi, p. 270.
[23] Ivi, p. 62.
[24]Eine menschliche Stimme”, ibid.

Giorgio Agamben. Il Silenzio delle Parole. In.: BACHMANN, Ingeborg. In Cerca di Frase Vere. Roma-Bari: Laterza, 1989. Trad.: Cinzia Romani. pp.: V-XV. (Trad. para o português: Vinícius Nicastro Honesko).

Imagem: Ingeborg Bachmann.