Poucos
meses antes de morrer, em um entrevista, Ingeborg Bachmann relembra nestes
termos a sua tese de láurea (Dissertation)
sobre Heidegger:
Quando falo dessa tese de láurea, digo sempre que me
laureei contra Heidegger. Porque, então, com vinte e dois anos, pensei: agora
derrubarei esse homem. E era esta, mais uma vez, a raiva; porque já os lógicos
de Viena, Carnap e outros, tinham procurado reduzir Heidegger ad absurdum. Naturalmente, Heidegger foge por completo à problemática deles. (...) O entusiasmo, a alegria, tanto
no atacar quanto no admirar, era muito grande aos vinte e dois anos.
Naturalmente, não derrubei Heidegger. Mas, à época, estava absolutamente
convicta de que ele não teria sobrevivido à tese. De resto, ele a conhece, é
uma das poucas pessoas que a conhece. E teve um estranho desejo, sem saber nada
antes; para o seu aniversário de setenta anos desejava de sua editora, para a
sua Festschrift, uma poesia de Paul
Celan e uma minha. E nós dois dissemos não (...)[1].
Considerada
como uma análise crítica do pensamento de Heidegger, a tese de Bachmann corre o
risco de desiludir seus leitores. Como já foi observado[2],
as citações dos textos heideggerianos são com frequência de segunda mão e é
possível que os conhecimentos da jovem laureanda, aparentemente dominada pelas
teses do positivismo lógico, teriam sido insuficientes para a tarefa (tarefa
esta excluída pelo próprio título da Dissertation,
que se limita à “recepção crítica da filosofia existencial de
M. Heidegger”).
Mais
surpreendente é que, com um extraordinário intuito filosófico, Bachmann consiga
romper em um ponto decisivo os esquemas dos próprios mestres vienenses e captar,
com uma radicalidade que não encontra equivalentes na literatura filosófica daqueles
anos, justamente o problema-limite do pensamento de Heidegger depois do
encontro com Hölderlin: a relação entre poesia e pensamento.
Para
dar conta disso, é preciso partir da conclusão da Dissertation, que enuncia a única tese em sentido próprio que esse
escrito juvenil contém. Bachmann parece então retomar o argumento de Carnap,
segundo o qual a metafísica heideggeriana, enquanto tenta, na forma de uma
teoria, dar expressão a conteúdos que não são racionalizáveis, coloca-se fora
do âmbito do conhecimento e acaba necessariamente por produzir um insuficiente
substituto da poesia:
A metafísica heideggeriana, que tem a forma de uma
teoria, mostra-se, assim, inadequada para exprimir um sentimento vital que,
segundo a opinião de alguns autores, deve ser confiado à metafísica. (...) À
necessidade de expressão desse outro âmbito de realidade, que se subtrai à
fixação por meio de uma filosofia existencial sistematizadora, responde,
todavia, em medida infinitamente mais alta, a arte com as suas múltiplas possibilidades.
Quem quer encontrar o “nada nulificante” experimentará trêmulo a violência do
horror e do aniquilamento mítico no quadro de Goya – Kronos devora os seus filhos –, e poderá provar como um testemunho
linguístico da extrema possibilidade de exposição (Darstellung) do indizível, o soneto de Baudelaire Le gouffre, no qual encontra expressão o
confronto (Auseinandersetzung) do
homem moderno com a angústia e com o ‘nada’[3].
É
suficiente refletir sobre essa conclusão para dar-se conta de que o que em Carnap
visava a uma clara delimitação de competências entre poesia e conhecimento, aqui dá lugar a uma confusão territorial na qual poesia e filosofia
perigosamente acabam coincidindo quanto ao seu âmbito. Elas são separadas apenas por um naufrágio, no sentido em que a
poesia se substitui in extremis à filosofia
no ponto em que esta falha diante da tarefa de uma exposição do indizível. O
naufrágio da filosofia, na sua Auseinandersetzung
com o nada, delimita a esfera em que o poeta se aventura não por meio de um
salto no irracional, mas com um “testemunho linguístico da extrema
possibilidade de exposição do indizível”. A filosofia não mais se apresenta
aqui, como em Carnap, como uma substituta da poesia; ao contrário, é a poesia
que se sub-roga ao naufrágio linguístico do pensamento. A exposição do limite
da filosofia é, ao mesmo tempo, o anúncio de uma tarefa poética.
Em
um documento singular, cuja importância fugiu à filologia heideggeriana (ou, no
caso de quem, como Gadamer, presumivelmente dele tinha conhecimento, foi suprimida),
o filósofo parece subscrever de modo antecipado o diagnóstico de Bachmann. Em
dezembro de 1941, Heidegger manda a Max Kommerell o texto da sua conferência Hölderlins Hymne: “Wie wenn am Feiertage”. Em
22 de dezembro, Kommerell comunica a Gadamer sua impressão:
Heidegger me enviou o seu texto. É um produtivo
infortúnio ferroviário (Eisenbahn Unglück),
a propósito do qual os vigias da história literária – se são honestos – deverão
se descabelar. Não posso decidir-me a lê-lo como uma interpretação – nele
acontece alguma coisa [...].
Escrevendo
algum tempo depois ao próprio Heidegger, Kommerell retoma, no fim da
sua carta, a imagem do “infortúnio”: “E, se posso ser ainda franco depois de
tanta sinceridade, não poderia – não digo: é –, não poderia ser seu ensaio um
infortúnio (ein Unglück)!?”[4].
Respondendo a essa carta, em 04 de agosto de 1942, Heidegger escreve:
Você tem razão, o escrito é um infortúnio (Unglück). Também Ser e Tempo foi um incidente (Verunglückung).
E toda exposição imediata do meu pensamento seria hoje o maior infortúnio (das gröbte Unglück). Talvez é esse um primeiro testemunho do fato de que
as minhas tentativas às vezes se aproximam de um verdadeiro pensar. Diferentemente do poeta, todo
pensamento sincero é, no seu efeito imediato, um infortúnio. Disso se entenderá
que eu não posso de modo algum me identificar com Hölderlin. Aqui está em curso
um confronto (Aus-ein.ander-setzung)
de um pensamento com um poeta, e apenas o confronto coloca o respondente. É
isso arbítrio ou a mais alta liberdade?[5]
Talvez
apenas uma outra vez em toda história da filosofia é possível encontrar uma
declaração comparável a essa confissão, na qual o autor define, sem meios termos,
como um infortúnio a obra-prima da filosofia do século XX: é quando o velho
Platão, na sétima carta, afirma, apagando de uma vez os seus diálogos, não ter
escrito uma só linha sobre o que considera verdadeiramente sério. Entretanto, decisivo é, na perspectiva que aqui nos interessa, que Heidegger, no momento
mesmo em que sanciona o necessário naufrágio do filósofo, situe em um confronto
(em uma “posição recíproca”) entre filosofia e poesia o experimentum crucis do pensamento. Compreende-se então sem
dificuldades por que, muitos anos depois, ele tenha podido pedir justamente
para Bachmann uma poesia para sua Festschrift.
Mas isso significa que o poeta tem êxito onde o filósofo falha? De fato, é essa a tese conclusiva da Dissertation
de Bachmann? E de que modo devemos entender a exposição do indizível que
acontece na poesia, se aquilo de que nela se faz experiência é apenas
“violência do horror e aniquilamento”?
Em
um carta a Neuffer, de 12 de novembro de 1798, Hölderlin, depois de ter evocado
as faltas das suas exposições (Darstellungen)
e o “errar poético” (das poetische Irren) em que se encontra aprisionado, apresenta, ainda nos termos de um infortúnio,
a relação entre poesia e filosofia:
Por certo há um asilo no qual todo poeta que, como
eu, é desafortunado (auf meine Art
verunglückte Poet) pode encontrar refúgio com honra: a filosofia.
Muitas
declarações de Bachmann, sucessivas à tese de láurea, poderiam dar testemunho
de uma análoga falência da poesia, da qual a primeira lição de Frankfurt contém
um elenco exemplar[6].
De outro lado, a tensão em direção ao “asilo” do pensamento (e, em particular,
a reflexão sobre a linguagem) jamais faltou na obra de Bachmann e, por isso, o
último romance publicado em vida, Malina,
pôde ser definido como uma “passagem da poesia na filosofia”[7].
Nessa perspectiva, a tese conclusiva da Dissertation
é integrada no sentido em que tanto a
filosofia quanto a poesia representam
uma forma de falência na exposição do indizível, que constitui sua tarefa
comum. Mas, por razões que devem ser esclarecidas, essa falência é mais
essencial do que a própria tarefa – ou, ao menos, dela é parte integrante, uma vez
que verdadeiro poeta e verdadeiro filósofo é apenas quem de tal
tarefa pode fazer experiência. Isto é, a exposição do indizível implica um
paradoxo similar àquele que Kleist indicava no exemplo do arco, que é
sustentado pela sua própria queda, e que Bachmann exprime em uma poesia
escrevendo que “todos que caem têm asas”[8].
Nas
conferências sobre A essência da
linguagem (que Bachmann não podia conhecer à época da tese de láurea),
Heidegger tem em mente uma experiência do gênero, quando escreve que nós
fazemos de fato experiência da linguagem apenas onde os nomes nos faltam,
onde as palavras se quebram nos nossos lábios. Na transmissão radiofônica sobre
Wittgenstein, Bachmann aproxima a experiência do falhar da linguagem (Sprachlosigkeit) em Heidegger ao
silêncio que fecha o Tractatus. Mas o
que aqui deve ser propriamente calado? O que é o indizível que, segundo uma
outra proposição do Tractatus (4.115),
à qual Bachmann volta várias vezes, só é significado por meio da clara
exposição do dizível?
O
indizível, para Wittgenstein, por certo não é algo, um quid do qual se
poderia eventualmente dizer o que seja, bastando para isso encontrar a
expressão correta (em termos filosóficos: ele não é da ordem de uma essência), mas é uma pura existência, o puro fato de que o mundo
seja. A proposição 6.432, que Bachmann define “a mais amarga” do Tractatus[9],
não diz respeito a um Deus que está escondido, por assim dizer, atrás do mundo, mas à própria existência
do mundo. O que não se revela no
mundo é o simples fato de que o mundo exista; as proposições da linguagem, que
dizem como (wie) o mundo é, não podem dizer que
(dab)
o mundo é. De que modo, com efeito, é pensável, nos termos da Dissertation, a tarefa de uma exposição
do indizível?
Além
da proposição 4.115 (“Ela [isto é: a filosofia] significará o indizível,
naquilo que ela expõe claramente [klar
darstellt] o dizível”), Wittgenstein acena para esse problema na conferência
sobre a ética (publicada apenas em 1965 e que Bachmann não podia, por isso,
conhecer à época dos seus escritos sobre Wittgenstein). “A única expressão
adequada na língua para o milagre da existência do mundo – ele escreve –, ainda
que não seja nenhuma proposição na língua,
é a existência da própria linguagem”.
A
tarefa poética do pensamento se desloca aqui de uma expressão por meio da linguagem a uma expressão pela existência da linguagem. Mas como
pode a existência da linguagem – o fato de que a linguagem seja – ser atestado de maneira independente de proposições proferidas na
linguagem?
Aquilo
de que se trata então de fazer experiência no “infortúnio” constitutivo do
pensamento e da poesia (na falência poetante do filósofo e na falência pensante
do poeta) é a própria linguagem. Isto é, experiência não de linguagem, mas da linguagem
como tal, do seu ter lugar no silêncio das proposições significantes. Por isso
a proposição 4.115 do Tractatus não
pode ser lida, segundo a tradição do positivismo lógico, como uma simples
posição de confins, mas todo o problema torna-se o do significado do adjetivo klar, da “clarificação” (Klarwerden von Sätzen), em que a
proposição 4.112 indica o resultado da filosofia – não por acaso, de fato, a
Klarheit der Darstellung que Hölderlin,
na carta a Böhlendorf de dezembro de 1801, assinalava como tarefa própria à
“sóbria” poesia ocidental, e a propósito da qual escrevia que “o uso livre do
próprio é a coisa mais difícil”.
Na
clareza, na claritas, o que aparece é
a própria língua, a sua pura exterioridade, o factum da sua existência. Se chamamos agora experimentum linguae essa experiência que se faz não com objetos ou
com coisas significadas, mas com a própria linguagem, podemos então dizer que
para todo poeta e para todo pensador dá-se um tal experimentum linguae que define o modo e o âmbito singular do
“infortúnio” por meio do qual ele responde à sua tarefa. O experimentum linguae de Heidegger certamente se situou, por volta
da metade dos anos trinta, no confronto (no infortúnio) com Hölderlin. Qual é,
então, o experimentum linguae que
define o lugar próprio de Bachmann?
O
breve discurso proferido por ocasião do prêmio Wildgans, em maio de 1972,
responde tais questões com duas autocitações: “a linguagem é a pena” e “não uma
palavra, ou palavras”[10].
A
primeira, retirada do romance Malina, introduz
uma espécie de trágica reformulação do ditado de Anaximandro:
Revelarei para vocês um segredo terrível: a linguagem
é uma pena. Nela todas as coisas devem entrar e em seguida novamente perecer
segundo a sua culpa e a medida da sua culpa[11].
Não
é impossível que aqui Bachmann tivesse em mente também a lenda kafkiana Na colônia penal, em que o condenado,
para expiar a sua culpa, é introduzido em uma máquina de tortura que insere na
sua carne o texto da norma que ele transgrediu. Em todo caso, decisivo é que,
nesse terrível segredo, o âmbito da linguagem – das proposições que podem ser
ditas – coincide com o de um incessante e mortal castigo. Essa linguagem do
castigo é a que “nós encontramos já pronta”[12],
uma “linguagem má”[13],
composta só de frases feitas[14].
A sua palavra é a “palavrório” sobre a qual fala uma das mais belas poesias de Anrufung des Groben
Bären: “palavra que semeia o dragão”, “rumo da culpa”, que imita “o verso
da besta”[15].
Ela pode apenas “retirar-se atrás de outras palavras”, como a frase atrás de “outras
frases”[16].
O
poder que coloca um limite a essa linguagem e, ao mesmo tempo, define, no experimentum linguae, a tarefa da
poesia, é expresso na injunção paradoxal da segunda citação: “não uma palavra,
ou palavras”[17]. Ela
ordena ao próprio discurso não fazer palavras naquilo que nomeia. O silêncio
que está em questão no experimento bachmanniano não é, com efeito, silêncio na linguagem, privação de palavra, mas
silêncio da linguagem, palavra em que
a palavra se cala.
É
uma aporia do mesmo gênero que Benjamin tinha em mente quando, na carta a
Buber, falava de uma “direção intensiva da palavra no coração do mais íntimo
calar-se” e de uma “cristalina eliminação do indizível na linguagem”[18];
e no mesmo sentido parece indicar Celan no discurso de Bremen:
Ela, a língua, permanecia não perdida, apesar de tudo.
Mas devia então passar através da própria falta de respostas, atravessar um
tremendo calar-se, atravessar as mil obscuridades dos discursos que trazem a
morte. Ela atravessou tudo isso e não deu palavra para o que aconteceu [...][19].
O mutismo,
que essa singular omertà impõe, é um
estatuto eminente da palavra. O que nela se mostra não é o não-linguístico
(que, como tal, é apenas um obscuro pressuposto da palavra), mas a “inteira
língua” (die ganze Sprache),[20]
que constitui a “utopia da linguagem” em direção a qual, segundo a última lição
de Frankfurt (que, de maneira exata, retoma uma metáfora heideggeriana), a literatura
se mantém incessantemente a caminho[21].
Essa visão da inteira língua, “que ainda não reinou”[22],
é a Klarheit der Darstellung, de que
falavam Hölderlin e Wittgenstein, e, por isso, “ver o mundo como um todo
limitado” só pode significar, nessa perspectiva, ver a linguagem como um
todo silencioso.
A
utopia da linguagem, em direção a qual a literatura está a caminho, coincide
com o irreparável caráter tópico das proposições significantes: ela não é uma
outra palavra, mas apenas o seu mudo ter lugar, o halo de silêncio que as
delimita e expõe.
Isso,
e somente isso, é a palavra “livre, clara, bela” para a qual se volta a
invocação final de Rede und Nachrede:
“ó, minha palavra, salva-me!”. Mas o espaço que se abre nesse evento de um
limite que coloca fim à pena da linguagem é onde se poderia, pela
primeira vez, aparecer aquela “que tem o lugar do instante em que poesia e
música encontram, uma em relação a outra, seu momento de verdade”[23],
e que, sozinha, tem o poder de fazer calar a linguagem sem aboli-la, dando-lhe
– antes – lugar: “uma voz humana”[24].
Segundo o significado original do termo latino, claritas é, antes de mais nada, um atributo da voz.
Maio
de 1989.
[2] Por F. Wallner, no Nachwort
a I. Bachmann, Die kritische Aufnahme
der Existentialphilosophie Martin Heideggers, München 1985, p. 178.
[3] Ivi, pp. 129-30.
[6] I. Bachmann, Werke,
a cura di C. Koschel, Inge von Weidenbaum, Clemens Münster, vol. IV, München
1978, pp. 187-88.
[17] Ivi, p. 297. O original alemão (Kein Sterbenswort / Ihr Worte, literalmente: “Não uma palavra de
morte / ou vós palavras”) remete à expressão idiomática: Kein Sterbenswort sagen, não suspirar, não dizer uma palavra.
[21] “Utopie der
Sprache […] Unterwegssein zu dieser Sprache […]”, ibid. A coletânea heideggeriana Unterwegs
zur Sprache acabava de ser publicada à época das lições de Frankturt
(1959-60).
[24] “Eine
menschliche Stimme”, ibid.
Giorgio Agamben. Il Silenzio delle Parole. In.: BACHMANN, Ingeborg. In Cerca di Frase Vere. Roma-Bari: Laterza, 1989. Trad.: Cinzia Romani. pp.: V-XV. (Trad. para o português: Vinícius Nicastro Honesko).
Imagem: Ingeborg Bachmann.
Um comentário:
E como acha esse texto dela?
Aliás parabéns por este texto. Possui mais reflexões sobre Heidegger e a relação entre poesia e filosofia?
Abs
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