O espírito do liberalismo clássico está ligado, sem sombra de dúvidas, à reivindicação de uma aliança paritária e horizontal entre os membros individuais da comunidade contraposta às estruturas verticais que, ainda em pleno século XIX, eram endossadas por todo gênero de autoridade constituída: tanto a política quanto, e não menos, a moral e a religiosa. A ideia liberal era que a desenvoltura[1] dos indivíduos, deixados livres para perseguir os próprios fins subjetivos, pudesse gerar uma ordem espontânea, maleável e criativa, em benefício de todos. E que a rede de privilégios autorizados pela ordem constituída só poderia reprimir e frear a dinâmica criativa, em nome de hipotéticos valores coletivos na realidade modelados sob medida por meio do poder exercido pelas classes dominantes. A economia – que, à época, significava a indústria, o comércio e a circulação de mercadorias – valia como exemplo comprobatório de quanto uma similar ordem espontânea era superior àquela passível de se obter por meio do comando. Tal modelo de liberalismo econômico parece ter falido de modo irreparável nos anos entre as duas guerras mundiais e, entre as tantas respostas mais ou menos radicais para tal falência, o neoliberalismo foi a única a manter-se fiel à intuição de partida: a superioridade da ordem espontânea em relação a qualquer possível configuração da ordem constituída. Explicar a falência dos mercados e para eles projetar uma reviravolta adequada à profundidade da crise torna-se assim o problema candente. Em certo sentido, a resposta neoliberal já estava implícita no ponto de partida. Se a ordem espontânea havia falido apesar de sua intrínseca superioridade, a única explicação para isso era a de que grupos e sujeitos mais ou menos organizados tivessem conseguido abusar dela, manipulando a dinâmica espontânea exclusivamente em proveito próprio e, assim, às custas da desenvoltura coletiva. Apontar o dedo contra a especulação e os monopólios ou, da mesma forma, contra as organizações sindicais e os grupos de pressão com caráter explicitamente político mudava pouco as coisas, naquela altura, do ponto de vista lógico. A receita ainda permanecia a de criar as condições técnicas e jurídicas para que o mercado pudesse estabelecer de maneira unívoca e objetiva o valor efetivo das atuações, protegido de qualquer possível abuso. Na nova perspectiva, a preparação de um dispositivo técnico imparcial, posto que cego, valia como garantia de que, para o jogo da cataláxia, vencesse, no fim, verdadeiramente o melhor, e não o representante da vez do poder constituído. E o sucesso do programa, em última análise, se deu por conta da capacidade de interceptar um gênero de desejo que os processos de dinamização estavam tornando cada vez mais profundo e difuso: o desejo de ver reconhecidas e realizadas as próprias potencialidades, expondo os próprios sonhos à prova dos fatos, porque, em um mundo dominado pela contingência, é esse o único modo de fazer com que se consolide seu autêntico valor. A questão basilar tornara-se, em suma, a correta medição do valor (o valor de toda performance, de toda ideia, projeto ou empresa). A vida social foi assim invadida, de modo maciço, por tecnologias de medição e de incremento do valor, cujo escopo declarado era valorizar ao máximo a desenvoltura coletiva, com o pressuposto de que apenas confiando sua medição a algoritmos impessoais e cegos se neutralizaria na raiz o risco do abuso de poder. Sabemos agora, por experiência direta, que o pressuposto não correspondia à realidade dos fatos. Aliás, que era verdade seu contrário. Que quanto mais a fundo os dispositivos de cálculo penetram na vida social, mais essa “vida” é colocada a serviço das relações de poder, a criatividade é submetida ao controle e a inteligência é esvaziada e transformada em mera técnica administrativa. Procurando neutralizar e escapar das figuras tradicionais do poder, as práticas administrativas sugeridas pelo neoliberalismo favorecem, na realidade, a gênese de grandes aglomerados de poder com caráter reticular, nos quais força econômica, autoridade política e competência técnica são agora facetas de um mesmo cristal. E a tornar o processo inevitável é justamente a pretensão de fundo de calcular o valor e, com ele, a potencialidade e a desenvoltura intrínsecas à vida coletiva. Porque calculável não é, justamente, a potencialidade em si mesma, mas apenas o poder.
[1] N.T.: O termo utilizado por De Carolis é intraprendenza, que também poderíamos traduzir por empreendimento. De fato, o uso deste último – assim como seus correlatos, como “empreendedorismo” – tem se expandido no que diz respeito sobretudo a temas relacionados à dinâmica econômica no âmbito dos mercados. Porém, optei por utilizar desenvoltura por dar maior abrangência à ideia de “cálculo” a respeito da qual De Carolis trata no texto.
Trecho extraído de Massimo De Carolis. Il rovescio della libertà. Macerata: Quodlibet, 2017. Disponível em: https://www.quodlibet.it/de-carolis-valore-intraprendenza (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Vincenzo Campi. Vendedora de frutas. 1580 c. Pinacoteca di Brera, Milano.