Em Hamburgo com Sigfried Giedion
Muito tempo antes, em 18 de novembro de 1958, Sigfried Giedion havia enviado à Avenida Rainha Margherita, em Turim – onde Furio, órfão do judeu Bruno, vivia com a mãe Vanna Chirone – uma carta (inédita) que começava com estas palavras: “Caro dr. Jesi, lembro com grande prazer de nossa breve conversa em Hamburgo”. Naqueles dias, o célebre historiador da Arquitetura havia falado de Jesi ao Diretor Associado da Fundação Rockefeller, John D. Marshall, e fará isso novamente lembrando, um par de meses depois, o quanto tinha ficado “impressionado por seu saber e instinto para as relações no congresso [internacional] de pré-história de Hamburgo de 1958”. É claro que o jovem que havia esboçado, num dia de fim de agosto, suas teses inovadoras sobre as instituições pré-históricas do culto e da magia não era, e nunca será, “doutor”: depois de ter publicado, em 1956, um artigo no renomado “Journal of Near Eastern Studies”, Jesi havia abandonado o liceu para seguir em Hildesheim e Bruxelas os próprios estudos de egiptologia. Tinha então fundado a revista “Archivio internazionale di Etnografia e Preistoria”, apresentando no primeiro número seu ensaio sobre as Conexões arquetípicas (1958), que pode ser definido como o núcleo de sua especulação subsequente, e até mesmo do mais completo e famoso “modelo cognoscitivo”, a máquina mitológica: amadureciam aqui as leituras da “coleção violeta” de Cesare Pavese e Ernesto De Martino, em particular das Raízes históricas do conto maravilhoso, de Propp, da História da civilização africana, de Leo Frobenius, e, sobretudo, dos Prolegômenos ao estudo científico da mitologia, de Jung e Kerényi, volumes que Jesi tinha levado consigo e sobre os quais tinha refletido no ano anterior, durante uma estada para pesquisa sobre o neoplatonismo e a religiosidade greco-ortodoxa no monastério da Gran Meteora. Operando, contra Jung, um genial deslocamento das “figuras orgânicas” dos arquétipos às constantes das relações compositivas da linguagem mitológica, ele revelava assim seu traço mais típico: o instinct for relationships, citado por Giedion, e sempre animado pela desconfiança em relação a qualquer hipóstase extra histórica e, assim, pronta para lançar sobre a história e a vida – portanto, como mito e violência do poder – o véu de sua imóvel eternidade. Se o precoce germanista que discorria sobre Mann com Barbara Allason iniciava naqueles anos o incansável confronto com a tradução das Elegias de Duíno, o adolescente egiptólogo revelava um caráter decididamente de mitólogo. Será Kerényi a lhe indicar o caminho e, ao definir os Prolegômenos como uma criatura centáurica, a distanciá-lo de tal modo de Jung que mesmo as “conexões arquetípicas”, julgadas “com a vocação moralista dos 16, 17 anos (...) ‘valores’ gnosiológicos”, para ele se mostrarão como “uma espécie de indecência emocional”. E será o mesmo magister, agora já conhecido e com quem se encontrou em Turim em 1965, a se tornar objeto, a contragosto, da mesma atitude crítica (e, ao mesmo tempo, rigorosamente autocrítica). Kerényi, com efeito, havia distinguido o mito tecnicizado para fins políticos do mito “genuíno”, ao qual chamara, com as palavras de Goethe, de fenômeno originário (Urphänomen). Jesi, pelo contrário, reconhecerá a origem mesma como produto de uma elaboração e aproximará de novo Kerényi de Jung afastando qualquer concepção marcada pelos sufixos Ur- ou arché-: não só o mito falso e fabricado para as massas, mas a própria presunção de uma relação privilegiada do poeta ou do exegeta com o “mito genuíno” e a palavra “verdadeira” equivalia, para ele, a uma apologética legitimação do poder que exclui a maioria da fonte do conhecimento.
Inspirado também por Martin Buber, Jesi não podia conceber uma autêntica relação com o mito que não fosse vivido “em estado de vigília” como experiência de verdade coletiva, isto é, que não implicasse a destruição consciente dos limites da cultura dominante, dos sistemas de poder que isolam os videntes e os mestres da massa dos sonâmbulos. Assim, se em 1967 havia encaminhado para publicação o fundamental Alemanha secreta, depois do Maio francês, quando a publicação de Literatura e mito provocava o rompimento, ao mesmo tempo teórico e político, com Kerényi, ele começa a escrever Spartakus. Simbologia da revolta[1], um cruzamento febril entre crônica e análise mitológica, montagem brechtiana e, ao mesmo tempo, um tipo de Finnegans Wake suspenso entre Nietzsche, Bakunin e Tambores na noite. A relação com o mito para ele já era uma relação com o atualmente incognoscível, mantido por meio das técnicas da paródia (como no “romance de vampiros”, A última noite) ou do estranhamento, e a pesquisa se tornava estudo das próprias modalidades de não conhecimento, ou melhor, tornava-se, a partir de 1972, com o esplêndido Leitura do “Bateau ivre” de Rimbaud (agora publicado em O tempo de festa[2]), análise do funcionamento da máquina mitológica, dispositivo que alude ao mito, seu centro escondido e experiência presumida, dando em troca disso as narrativas, os testemunhos legíveis na superfície da história. Um ensaio atual como A acusação de sangue (1973, Bollati Boringhieri 2007) se perguntava, nesse sentido, sobre a produção mitológica antissemita, animada – como no caso dos Protocolos dos sábios de Sião – por documentos que se mostram perigosamente verossímeis porque sua autenticidade permanece inverificável.
Vértices estilísticos na forma-ensaio
Elaborada em diálogo com amigos e correspondentes como Dumèzil, Starobinski, Scholem, a riquíssima produção jesiana circulava, no intervalo de poucos anos, das monografias sobre Kierkegaard e Bachofen (Bollati Boringhieri) a Mitologias ao redor do iluminismo, a A linguagem das pedras (Rizzoli 1978) ou a Materiais mitológicos, publicado em 1979 com Cultura de direita[3], e tocava vértices estilísticos e compositivos que a situam dentre os maiores exemplos da forma-ensaio contemporânea. Central se tornava, por fim, o tema simpateticamente benjaminiano da tradução, estudada no signo do mito da “pura língua” (um volume conclusivo dos Estudos sobre Rainer Marie Rilke, deveria ter indagado os problemas da traducibilidade e da duplicidade das linguagens).
Em cada um desses livros resplandece para nós o intenso e inesperado raio que afetou Giedion. “Autor como produtor”, crítico da cultura de elite e do analfabetismo de massa, Jesi não deixa de ensinar permanecendo como oposto do divulgador: se justamente quem quer ser “mais comunicativo” sobe de fato num pedestal indevido, dele se pode dizer o que escreveu sobre Scholem: “o indivíduo sapientíssimo, cuja sabedoria é inteiramente vivida, pode aparecer a si e aos outros como portador de uma coroa especial. Mas (...) valem aqui algumas palavras de Goethe: (...) Ainda assim, justamente por isso, eu era apenas um homem como os outros”.
[1] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Spartakus. Simbologia da revolta. São Paulo: N-1, 2018, trad. Vinícius N. Honesko
[2] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. “Leitura do ‘bateau ivre’ de Rimbaud”, in. Outra Travessia, n. 19 (2015), Florianópolis, UFSC, pp. 61-76, trad. Fernando Scheibe e Vinícius N. Honesko
[3] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Cultura de Direita, Belo Horizonte: Âyiné, 2022, trad. Davi Pessoa.