terça-feira, 22 de novembro de 2022

Jesi, o mito vivido em estado de vigília - Andrea Cavalletti



Andrea Cavalletti



“Tudo isso é para mim, hoje, o significado da palavra mito. Uma máquina que serve para muitas coisas, ou, ao menos, é o presumido coração misterioso desta, o suposto motor imóvel e invisível de uma máquina que serve para muitas coisas, para o bem e para o mal. É memória, relação com o passado (...); e arqueologia, e pensamentos que gritam nos quadros da escola, e que, então, levam a se tornar mestres para provocar também nos outros as sensações do grito. E é violência, mito do poder; e, portanto, é suspeita que jamais pode ser apagada diante de evocações de mitos encarregados de uma função específica; a (...) de consagrar as formas de um presente que quer ser coincidência com um ‘eterno presente’.” Furio Jesi escrevia essas palavras em 1976, num de seus livros mais densos e bonitos, Esoterismo e linguagem mitológica. Estudos sobre Rainer Marie Rilke, que agora volta às livrarias em nova edição revista (apesar de um evidente erro de digitação) publicada pela editora Quodlibet em homenagem aos quarenta anos da morte do grande estudioso. De fato, foi em 17 de junho de 1980 que Jesi perdeu a vida, com apenas trinta e nove anos, em razão de um vazamento de gás carbônico em seu apartamento, em Gênova, onde ensinava Literatura alemã depois de ser nomeado por conta de sua evidente fama e de um período na Universidade de Palermo.

Em Hamburgo com Sigfried Giedion

Muito tempo antes, em 18 de novembro de 1958, Sigfried Giedion havia enviado à Avenida Rainha Margherita, em Turim – onde Furio, órfão do judeu Bruno, vivia com a mãe Vanna Chirone – uma carta (inédita) que começava com estas palavras: “Caro dr. Jesi, lembro com grande prazer de nossa breve conversa em Hamburgo”. Naqueles dias, o célebre historiador da Arquitetura havia falado de Jesi ao Diretor Associado da Fundação Rockefeller, John D. Marshall, e fará isso novamente lembrando, um par de meses depois, o quanto tinha ficado “impressionado por seu saber e instinto para as relações no congresso [internacional] de pré-história de Hamburgo de 1958”. É claro que o jovem que havia esboçado, num dia de fim de agosto, suas teses inovadoras sobre as instituições pré-históricas do culto e da magia não era, e nunca será, “doutor”: depois de ter publicado, em 1956, um artigo no renomado “Journal of Near Eastern Studies”, Jesi havia abandonado o liceu para seguir em Hildesheim e Bruxelas os próprios estudos de egiptologia. Tinha então fundado a revista “Archivio internazionale di Etnografia e Preistoria”, apresentando no primeiro número seu ensaio sobre as Conexões arquetípicas (1958), que pode ser definido como o núcleo de sua especulação subsequente, e até mesmo do mais completo e famoso “modelo cognoscitivo”, a máquina mitológica: amadureciam aqui as leituras da “coleção violeta” de Cesare Pavese e Ernesto De Martino, em particular das Raízes históricas do conto maravilhoso, de Propp, da História da civilização africana, de Leo Frobenius, e, sobretudo, dos Prolegômenos ao estudo científico da mitologia, de Jung e Kerényi, volumes que Jesi tinha levado consigo e sobre os quais tinha refletido no ano anterior, durante uma estada para pesquisa sobre o neoplatonismo e a religiosidade greco-ortodoxa no monastério da Gran Meteora. Operando, contra Jung, um genial deslocamento das “figuras orgânicas” dos arquétipos às constantes das relações compositivas da linguagem mitológica, ele revelava assim seu traço mais típico: o instinct for relationships, citado por Giedion, e sempre animado pela desconfiança em relação a qualquer hipóstase extra histórica e, assim, pronta para lançar sobre a história e a vida – portanto, como mito e violência do poder – o véu de sua imóvel eternidade. Se o precoce germanista que discorria sobre Mann com Barbara Allason iniciava naqueles anos o incansável confronto com a tradução das Elegias de Duíno, o adolescente egiptólogo revelava um caráter decididamente de mitólogo. Será Kerényi a lhe indicar o caminho e, ao definir os Prolegômenos como uma criatura centáurica, a distanciá-lo de tal modo de Jung que mesmo as “conexões arquetípicas”, julgadas “com a vocação moralista dos 16, 17 anos (...) ‘valores’ gnosiológicos”, para ele se mostrarão como “uma espécie de indecência emocional”. E será o mesmo magister, agora já conhecido e com quem se encontrou em Turim em 1965, a se tornar objeto, a contragosto, da mesma atitude crítica (e, ao mesmo tempo, rigorosamente autocrítica). Kerényi, com efeito, havia distinguido o mito tecnicizado para fins políticos do mito “genuíno”, ao qual chamara, com as palavras de Goethe, de fenômeno originário (Urphänomen). Jesi, pelo contrário, reconhecerá a origem mesma como produto de uma elaboração e aproximará de novo Kerényi de Jung afastando qualquer concepção marcada pelos sufixos Ur- ou arché-: não só o mito falso e fabricado para as massas, mas a própria presunção de uma relação privilegiada do poeta ou do exegeta com o “mito genuíno” e a palavra “verdadeira” equivalia, para ele, a uma apologética legitimação do poder que exclui a maioria da fonte do conhecimento.

Inspirado também por Martin Buber, Jesi não podia conceber uma autêntica relação com o mito que não fosse vivido “em estado de vigília” como experiência de verdade coletiva, isto é, que não implicasse a destruição consciente dos limites da cultura dominante, dos sistemas de poder que isolam os videntes e os mestres da massa dos sonâmbulos. Assim, se em 1967 havia encaminhado para publicação o fundamental Alemanha secreta, depois do Maio francês, quando a publicação de Literatura e mito provocava o rompimento, ao mesmo tempo teórico e político, com Kerényi, ele começa a escrever Spartakus. Simbologia da revolta[1], um cruzamento febril entre crônica e análise mitológica, montagem brechtiana e, ao mesmo tempo, um tipo de Finnegans Wake suspenso entre Nietzsche, Bakunin e Tambores na noite. A relação com o mito para ele já era uma relação com o atualmente incognoscível, mantido por meio das técnicas da paródia (como no “romance de vampiros”, A última noite) ou do estranhamento, e a pesquisa se tornava estudo das próprias modalidades de não conhecimento, ou melhor, tornava-se, a partir de 1972, com o esplêndido Leitura do “Bateau ivre” de Rimbaud (agora publicado em O tempo de festa[2]), análise do funcionamento da máquina mitológica, dispositivo que alude ao mito, seu centro escondido e experiência presumida, dando em troca disso as narrativas, os testemunhos legíveis na superfície da história. Um ensaio atual como A acusação de sangue (1973, Bollati Boringhieri 2007) se perguntava, nesse sentido, sobre a produção mitológica antissemita, animada – como no caso dos Protocolos dos sábios de Sião – por documentos que se mostram perigosamente verossímeis porque sua autenticidade permanece inverificável.

Vértices estilísticos na forma-ensaio

Elaborada em diálogo com amigos e correspondentes como Dumèzil, Starobinski, Scholem, a riquíssima produção jesiana circulava, no intervalo de poucos anos, das monografias sobre Kierkegaard e Bachofen (Bollati Boringhieri) a Mitologias ao redor do iluminismo, a A linguagem das pedras (Rizzoli 1978) ou a Materiais mitológicos, publicado em 1979 com Cultura de direita[3], e tocava vértices estilísticos e compositivos que a situam dentre os maiores exemplos da forma-ensaio contemporânea. Central se tornava, por fim, o tema simpateticamente benjaminiano da tradução, estudada no signo do mito da “pura língua” (um volume conclusivo dos Estudos sobre Rainer Marie Rilke, deveria ter indagado os problemas da traducibilidade e da duplicidade das linguagens).

Em cada um desses livros resplandece para nós o intenso e inesperado raio que afetou Giedion. “Autor como produtor”, crítico da cultura de elite e do analfabetismo de massa, Jesi não deixa de ensinar permanecendo como oposto do divulgador: se justamente quem quer ser “mais comunicativo” sobe de fato num pedestal indevido, dele se pode dizer o que escreveu sobre Scholem: “o indivíduo sapientíssimo, cuja sabedoria é inteiramente vivida, pode aparecer a si e aos outros como portador de uma coroa especial. Mas (...) valem aqui algumas palavras de Goethe: (...) Ainda assim, justamente por isso, eu era apenas um homem como os outros”.




[1] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Spartakus. Simbologia da revolta. São Paulo: N-1, 2018, trad. Vinícius N. Honesko

[2] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. “Leitura do ‘bateau ivre’ de Rimbaud”, in. Outra Travessia, n. 19 (2015), Florianópolis, UFSC, pp. 61-76, trad. Fernando Scheibe e Vinícius N. Honesko

[3] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Cultura de Direita, Belo Horizonte: Âyiné, 2022, trad. Davi Pessoa. 
 
Publicado em Il manifesto, 14/06/2020. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko




sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Caixa de bóia



"O pensamento é ainda na criança, enquanto é criança, um estado de brincadeira. E o estado de brincadeira é sempre, na criança, um estado de graça”. José Bergamin. A decadência do analfabetismo. 


Enquanto sonha com a família do comercial de margarina, com uma esposa que ainda não apareceu em sua história, filhos, talvez gatos e cães soltos no quintal, ele não escreve: trabalha com materiais de escrita, prepara suas aulas, deixa, ou melhor, esconde em um canto da memória sua origem e sua condição de marginal. Escrever e se aventurar eram sinônimos em sua vida, uma paixão consumia a outra, a escrita e o tremor da contingência, um estado infantil de graça em plena maturidade. Mas o tempo de casamentos - desfeitos - e quarentenas cibernetizadas levaram-no à lassidão e à poupança (econômica e existencial). Poupar-se para o melhores anos vindouros, poupar-se para quando a pessoa certa entrasse em sua vida, poupar-se para uma velhice saudável. Os tempos de digladiagem - digladiar e vadiar - haviam se encerrado e, com eles, a fissura da escrita. Menos um poeta inexpressivo em um nicho também inexpressivo, menos um marginal para ser caçado pela polícia ou pelos fascistas, entidades que há muito se indiferenciaram. A escrita fora substituída pelo cálculo e a vida pela espera, alistamento voluntário e febril às hostes dos servos da escatologia do futuro. 

Porém, quando o demônio da meia noite e da carnificina bate-lhe à porta na forma do absurdo, ele, só e agoniado, lembra-se, e esta lembrança rápida e viva o salva. Sua madeleine é uma caixa de bóias, sim, a caixa de comidas, dessas que os caminhoneiros usam na lateral das carrocerias dos caminhões. Essas caixas, onde também estão alguns mantimentos, pratos e canecas esmaltadas, talheres e a velha faca de borracheiro.

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Sim, Reinaldo Moraes, não só as frases de caminhão podem nos salvar de desilusões amorosas ou existenciais, o acolhimento no meu caso veio da lembrança de uma cozinha portátil, que talvez expresse a minha condição inescapável no mundo, aquela da qual quero fugir - ou esconder - mas sempre retorno, a do exilado, sem lugar próprio, sem casa, condenado a errar. Aquele que instala - não constrói - acolhimentos provisórios durante a travessia, em lugares para os quais talvez nunca mais volte e provavelmente nunca mais serão por ele lembrados. Uma imagem de juventude que relampeja no momento crítico e perigoso de minha deserção.  

***           

Era o maior entroncamento rodoferroviário do sul do país, lugar de muitas oficinas de caminhão e autopeças, casarios decaídos no centro antigo, arenitos e ventos, pois só com ventos incessantes as rochas do entorno adquiriram as formações mais inusitadas, sendo populares as que se assemelhavam a grande objetos cotidianos, como uma taça, o símbolo geológico da cidade. Passei a morar em um bairro do entorno, eram meus anos de faculdade, vivendo sozinho fora da casa em que passara minha infância. A cidade era uma rota necessária no trabalho de meu pai, caminhoneiro, que transportava material reciclado – cargas altas de papel velho – para São Paulo. Foi em meu novo bairro que ele abriu uma conta de bar na única rua próxima em que ele podia parar o caminhão, um casarão que durante as manhãs servia um café adoçado com pão, preparado por uma senhora atenciosa, mas à noite, e meu pai não sabia deste detalhe, virava um bar mal afamado, frequentado pelas pessoas que não podiam pagar o preço das doses de pinga vendidas mais ao centro. Foi ali que começou minha fama marginal, pois costumava levar colegas da faculdade, pessoas nascidas em famílias de classe média, para o único lugar que naqueles anos me deu crédito, um risca-facas perigoso da Avenida Souza Naves. 

Quando estava muito cansado meu pai pedia para acompanhá-lo na viagem. Eu então deixava das modorrentas aulas de direito romano para atravessar a Régis Bittencourt, à época a Rodovia da Morte, com o Mercedes 1313, azul marinho, de propriedade do Sr. Albari, um senhorzinho com barriga d'agua, relógio e bijuterias douradas no pulso, que sofria com um filho dependente químico. O detalhe é que não dormíamos. 

A lembrança que guardo comigo: um desjejum tomado à beira da rodovia, com o sol nascendo, a caixa de bóia aberta com as fumaças do café preto e de um virado de feijão. A noite e o dia eram contíguos, o mundo era vasto e o 1313 era uma nau.

***

Voltar para a cidade dos arenitos, à rotina regrada e solar de um estudante de direito, ao lado de pessoas engomadas, todas em busca de seriedade e posições no Estado, sabendo que meu pai ainda continuaria a estrada de retorno, deixava-me muito angustiado. Foi nessa época que começou minha evasão, que provavelmente durará enquanto eu estiver vivo.   

Também havia os livros velhos retirados da carga e vendidos nos sebos da cidade para eu conseguir ter alguns trocados, além do escambo pelos títulos que realmente eu queria ler. Minha relação com os livros no início da vida adulta foi a do desvio de carga, da interceptação ilegal, da troca clandestina. Mas, acima de tudo, do salvamento de brochuras antes de virarem uma pasta homogênea na fábrica de papel. Minha primeira biblioteca foi construída com o lixo.    

Mas é quase manhã em minha memória. É o entorno de uma cidade, naqueles arrabaldes em que a rotina da roça sobrevive nas franjas urbanas. Há uma mata e um brejo ao fundo, há coaxar de sapos e ainda persistem vagalumes, sim, mesmo ao amanhecer e perto da rodovia, eles não sumiram de todo.

***  

Meu nome vem da estrada. Passar por várias cidades e possuir um nome comum nos anos 80, como João da Silva, era arriscar-se a ser levado para uma delegacia e ter de provar aos tiras que você, forasteiro, não era a mesma pessoa de um homônimo que ali descumpriu a lei, algo que não raro acontecia com meu pai, que também possui um nome comum, alguém que em um único dia poderia atravessar vários estados da federação, em tempos de sistemas estaduais independentes de identificação e quando a internet era algo impensável (os mapas amarelos serviam como GPS, assim como as cartas náuticas dos antigos). Ter um nome como Francisco Barbosa poderia significar prisões indesejáveis, além da suspeita constante que pesava sobre alguém sem origem nobre, calças furadas e tênis chinesinho, assistente de caminhoneiro. Um nome diferente significava não apenas diferenciação forçada, mas acima de tudo proteção contra confusões. Disso, desde o início, minha mãe me salvou. Do bullying entre meus pares, termo que não conhecia à época, defendia-me com socos e pontapés.  

*** 

O 1313 é só uma lembrança, meu pai não tem mais idade para atravessar a antiga Estrada da Morte sem dormir, é um trecho que faço hoje com a Mad Max (meu imaginário veículo pós-apocalíptico, apenas uma estilização pop para um ferro velho ambulante), descansando nos lugares que restam de nossas antigas paradas. Uma rodovia interestadual brasileira é uma rota forasteira e perigosa de passagem, mas para quem nela vive há sempre os lugares de abrigo, tão familiares quanto uma casa conhecida, onde se pode tomar um banho, descansar, permanecer. Tais lugares pouco a pouco estão desaparecendo, os antigos donos ou estão muito idosos ou já faleceram, transferindo a filhos que vendem estes antigos comércios para grandes franquias e conglomerados, onde não é possível permanecer sem fazer as honras obrigatórias ao capitalismo imperial de nosso tempo: consumir. Força motriz da uniformidade atroz que assola o mundo, cada vez mais disseminada. O Japonês da Serra do cafezal, da parmegiana em plena madrugada, famosa no trecho, que superava as parmegianas que vim depois a conhecer em São Paulo, com toda a poesia de um comércio japonês especialista em parmegianas, este restaurante, tão caro às minhas memórias de estrada, foi comprado pela rede Graal e transformado em uma loja de conveniência. 

Não se pode edulcorar a forma capitalista que quase destruiu o corpo de meu pai, por anos atravessando insone milhares de quilômetros para levar material a ser reciclado, que virou novos utensílios hoje certamente já descartados. Esse capitalismo infernal não foi derrotado, foi conquistado e federado por forças de acumulação ainda mais predatórias e absolutas, sem lugar para arrabaldes ou marginais, sem lugar para improvisos e evasões. Mas um 1313, um Jacaré ou um Fenemê ainda trafegam como mamutes de uma era extinta, com suas caixas de boia. Ao lado do parque temático monstruoso, na estrada de terra, escondidos dos guardas, as tendas ciganas ou um circo mambembe teimam em aparecer, um bar antigo e uma sintonia camarada sobrevivem. Uma chama de vida, mesmo que de um vaga-lume perdido em um jardim cercado por casas e  minifúndios, ainda alumia e insiste.    

***

Sim, era um escritor otimista e crédulo das insistências. Não sabia o que lhe esperava. Pasolini estava certo. Não só os vagalumes desapareceram de sua vida, e não convém criar metáforas distópicas com as faíscas dos cachimbos da minicraco instalada no quarteirão. Assim como os caminhoneiros lumpen de sua infância, mestres da improvisação, dos ilegalismos e do destemor, tornaram-se tão fascistas quanto a polícia militar que os perseguia.  


jonnefer francisco barbosa 2/9/22 


sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Anjos e demônios - Giorgio Agamben




Os discursos que com tanta frequência hoje escutamos sobre o fim da história e o início de uma época pós-humana e pós-histórica se esquecem do simples fato de que o homem está sempre no ato de se tornar humano e, portanto, também de deixar de sê-lo e, por assim dizer, de morrer ao humano. A reivindicação de uma animalidade alcançada ou de uma humanidade realizada do homem no fim da história não dá conta dessa constitutiva incompletude do ser humano.

Considerações similares também valem para os discursos sobre a morte de Deus. Assim como o homem está sempre no ato de se tornar humano e de deixar de sê-lo, também o tornar-se divino de Deus está sempre em curso e jamais é cumprido de uma vez por todas. Nesse sentido é que deve ser compreendida a frase de Pascal sobre Cristo em agonia no fim dos tempos. Em agonia – isto é, segundo o étimo, em luta ou em conflito com a própria divindade, por isso, jamais morto, mas sempre, por assim dizer, moribundo para si mesmo. O único sentido da história humana está nessa incessante agonia e os palavrórios sobre o fim da história parecem ignorar o fato – ainda que evidente – de que a história está sempre no ato de acabar.

Daí a insistência do último Hölderlin sobre os semideuses e sobre as figuras quase divinas ou mais que humanas. A história é feita por seres já e ainda não divinos, já e ainda não humanos: isto é, há uma “semi-história” assim como existem semideuses e quase humanos. Por isso, as únicas chaves para interpretar a história são a angelologia e a demonologia, que vêm nela – como haviam feito os Padres e o próprio Paulo, quando chama de anjos (ou demônios) as potências e os governos deste mundo – uma luta sem trégua entre menos que deuses e mais – ou menos – que homens. E se podemos dizer algo sobre nossa condição presente é que nos últimos dois anos vimos com inaudita clareza os demônios operando ferozmente na história e os endomoniados seguindo-os de forma cega em sua vã tentativa de enxotar para sempre os anjos – aqueles anjos que, de resto, antes de sua infinita queda na história, eles próprios eram. 
 
 
04 de agosto de 2022
 
Original disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-angeli-e-demoni?fbclid=IwAR0i-O4YTBXh2iZJlAWG22EjSTSpNJQGmY2FNn_5E_7Ncwq1Dqm9_7SeUwQ
 
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko


terça-feira, 19 de julho de 2022

Sobre o direito de resistência - Giorgio Agamben





Giorgio Agamben

Procurarei partilhar com vocês algumas reflexões sobre a resistência e sobre a guerra civil. Não estou aqui lembrando a vocês de que um direito de resistência existe já no mundo antigo – que conhece uma tradição de elogios do tiranicídio – e na idade média. Tomás compendiou a posição da teologia escolástica no princípio segundo o qual o regime tirânico, enquanto substitui o bem comum pelo interesse de uma parte, não pode ser iustum. A resistência – Tomás diz a pertubatio – contra esse regime não é, por isso, uma seditio.

É óbvio que a matéria comporta necessariamente um nível de ambiguidade quanto à definição do caráter tirânico de determinado regime, do qual dão testemunho as cautelas de Bartolo, que em seu Tratado sobre os guelfos e gibelinos, distingue um tirano ex defectu tituli de um tirano ex parte exercitti, mas depois tem dificuldades em identificar uma iusta causa resistendi.

Essa ambiguidade reaparece nas discussões de 1947 sobre a inscrição de um direito de resistência na constituição italiana. Dossetti havia proposto, como vocês sabem, que no texto figurasse um artigo assim: “A resistência individual e coletiva aos atos do poder público que violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos por esta constituição é um direito e um dever dos cidadãos”. O texto, que havia sido sustentado também por Aldo Moro, não foi incluído, e Meuccio Ruini, que presidia a chamada Comissão dos 75 que iria devia preparar o texto da constituição – e que, alguns anos depois, como presidente do Senado, iria distinguir-se pelo como com o qual procurou impedir a discussão parlamentar sobre a assim chamada lei-golpe –, preferiu adiar a decisão para o voto da assembleia, que ele sabia que seria negativo.

Não se pode negar, todavia, que as hesitações e objeções dos juristas – dentre os quais Costantino Mortati – não tinham argumentos, quando apontavam que não se pode regular juridicamente a relação entre direito positivo e revolução. É o problema que, a propósito da figura do partigiano, tão importante na modernidade, Schmitt definia como o problema da “regulamentação do irregular”. É curioso que os juristas falassem de relação entre direito positivo e “revolução”: teria sido mais correto falar de “guerra civil”. Como traçar, com efeito, um limite entre direito de resistência e guerra civil? Não seria talvez a guerra civil o êxito inevitável de um direito de resistência seriamente compreendido?

A hipótese que pretendo hoje lhes apresentar é a de que nesse modo de colocar o problema da resistência se deixa escapar o essencial, ou seja, uma mudança radical que diz respeito à própria natureza do estado moderno – isto é, por assim dizer, pós-napoleônico. Não se pode falar de resistência se não se refletir antes sobre essa transformação.

O direito público europeu é essencialmente um direito de guerra. O estado moderno se define não só, em geral, por meio de seu monopólio da violência, mas, de modo mais concreto, por meio de seu monopólio do jus belli. A este direito o estado não pode renunciar, mesmo com o custo, como vemos hoje, de se inventar novas formas de guerra. O jus belli não é apenas o direito de fazer e conduzir guerras, mas também o de regular juridicamente a conduta de guerra. Ele distinguia assim entre o estado de guerra e o estado de paz, entre o inimigo público e o delinquente, entre a população civil e o exército combatente, entre o soldado e o partigiano.

Agora, sabemos que justamente essas características essenciais do jus belli já há tempos acabaram, e minha hipótese é que isso implica uma mudança muito essencial na natureza do estado. Já ao longo da Segunda Guerra Mundial a distinção entre população civil e exército combatente foi progressivamente sendo obliterada. Um indicativo disso é que as convenções de Genebra de 1949 reconhecem um estatuto jurídico à população que participa da guerra sem pertencer ao exército regular, com a condição, porém, de que fosse possível identificar comandantes, que as armas fossem exibidas e houvesse alguma marca visível.

Mais uma vez, essas disposições não me interessam enquanto levam a um reconhecimento do direito de resistência – de resto, como vocês viram, muito limitado: um partigiano que exibe as armas não é um partigiano, é um partigiano inconsciente –, mas porque implicam uma transformação do próprio estado enquanto detentor do jus belli. Como vimos e continuamos a ver, o estado, que do ponto de vista estritamente jurídico já ingressou de forma estável no estado de exceção, não abole o jus belli, mas perde ipso facto a possibilidade de distinguir entre guerra regular e guerra civil. Hoje, temos diante de nós um estado que conduz uma espécie de guerra civil planetária, a qual não pode de modo algum reconhecer como tal.

Resistência e guerra civil são portanto rubricadas como atos de terrorismo e aqui não será inoportuno lembrar que a primeira aparição do terrorismo no pós-guerra foi obra de um general do exército francês, Raoul Salan, comandante supremo das forças armadas francesas na Argélia, que havia criado, em 1961, a OAS, que significa: Organisation armée secrète. Reflitam sobre a fórmula “exército secreto”: o exército regular se torna irregular, o soldado se confundo com o terrorista.

Parece-me evidente que diante desse estado não se pode falar de um “direito de resistência”, eventualmente codificável na constituição ou que pode ser obtido a partir desta. E isso ao menos por duas razões: a primeira, é que a guerra civil não pode ser regulada, como o estado por sua vez está procurando fazer por meio de uma série indefinida de decretos, que alteraram de cima a baixo o princípio de estabilidade da lei. Temos diante de nós um estado que conduz e procura codificar uma forma camuflada de guerra civil. A segunda, que constitui para mim uma tese irrenunciável, é que nas condições presentes a resistência não pode ser uma atividade separada: ela só pode se tornar uma forma de vida. Haverá verdadeiramente resistência apenas se e quando cada um souber extrair dessa tese as consequências que lhe dizem respeito.



Texto originalmente publicado em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-sul-diritto-di-resistenza

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

Foto: Monumento ao partigiano, em Bergamo.


sexta-feira, 25 de março de 2022

[Quase um testamento] - trechos (Pier Paolo Pasolini)


 

Temas religiosos

 

Sou um marxista que escolhe temas religiosos. Que legal! Agora existe também um monopólio sobre a religião? Eis a conclusão de quarenta anos de propaganda horrenda e de macarthismo! Muitos dos homens mais profundamente religiosos deste século são comunistas. Penso, por exemplo, em Gramsci (o fundador do PCI). Eles lutaram pelo puro altruísmo e deram a sua vida apenas um alto ideal (que podemos definir, sem mais, acético), pelo qual desafiaram a prisão, torturas e a morte. Compreenda-se que quando digo religioso não pretendo dizer crente numa religião confessional.

Os comunistas são, com efeito (quase todos), laicos e positivistas. Mas eles herdaram o laicismo e o positivismo da civilização burguesa (a grande civilização burguesa que fez a revolução liberal antes, e, depois, a revolução industrial). Só que, depois, no burguês, o laicismo e positivismo permaneceram como tais (patrimônio, todavia, de uma elite burguesa), enquanto o nacionalismo e o imperialismo, nascidos como consequência direta do capitalismo, levaram o burguês médio, muito rapidamente, às velhas posições clericais: a cultivar uma religião de puro interesse, hipócrita, estatal e até mesmo feroz (veja-se o clero czarista e franquista). Portanto, quando muito, a pergunta legítima de fato não é “pode um comunista ser religioso?”, mas, antes, “pode um burguês ser religioso?”.

 

Creio em Deus?

 

Sempre, desde os quatorze anos, me defini como não crente. Nos últimos meses, pela primeira vez concebi, de algum modo, uma ideia, mesmo que imanentista e científica, de Deus.

Como cheguei a ela é algo muito curioso. Sempre me interessei por problemas linguísticos, ainda que no campo estritamente italianístico, e na Itália acabo considerado como um linguista interessante, mesmo que mal informado e estranho. Recentemente, me apaixonei pelas pesquisas linguísticas sobre o cinema. E, é natural, não podia deixar de recorrer à semiologia, ciência para a qual os sistemas de signos são infinitos e não apenas linguísticos.

Cheguei à conclusão de que o “cinema”, ao reproduzir tal ciência, faz uma perfeita descrição semiológica da realidade; e de que o sistema de signos do cinema é, na prática, o mesmo sistema de signos da realidade. Portanto, a realidade é uma linguagem! É preciso fazer a semiologia da realidade mais do que a do cinema! Mas se a realidade fala, quem é que fala e com quem fala? A realidade fala com si mesma: é um sistema de signos por meio do qual a realidade fala com a realidade. Tudo isso não é spinoziano? Essa ideia da realidade não se assemelha à de Deus?

 

Golpes de Estado

 

Tanto a tentativa de golpe de estado na Itália de 1964 quanto a de golpe, bem sucedida, na Grécia são acontecimentos no âmbito da OTAN. Na Itália, teve início um processo contra os jornalistas do “Espresso” que denunciaram à opinião pública alguns dos responsáveis pela tentativa de golpe de Estado. A investigação parlamentar, no entanto, foi parada pelo partido católico (democrata cristão) com o apoio dos socialistas. Evidentemente, não se quer chegar à responsabilidade internacional.

Nós, intelectuais (nesse acontecimento muito grave), brilhamos por nossa ausência. É verdade que nos jantares, nos bares, falamos a torto e a direito contra a classe política dirigente, contra a burguesia italiana que a exprime, e, em geral, contra este pequeno, marginal, provinciano, indiferente e miserável país que é a Itália. Mas, e nós? O que fazemos? Talvez somos melhores? O que é que nos faz ser ausentes e mudos? O medo? A prudência? A desconfiança? A preguiça? A ignorância? Sim, tudo isso. 

 

Trecho de [Quasi un testamento], publicado em Pier Paolo Pasolini, Saggi sulla politica e sulla società, org. de Walter Sitti e Silvia De Laude, Milão, Mondadori, 1999, pp. 866-869. Originalmente, [Quasi un testamento] foi fruto de uma série de encontros entre Pasolini e o jornalista inglês Peter Dragadze. O texto foi publicado em 17/11/1975 em "Gente". Trad.: Vinícius N. Honesko

segunda-feira, 21 de março de 2022

O problema do fim do mundo - Ernesto de Martino


 Ernesto de Martino

 

Quando o professor Prini anunciou o tema desta minha intervenção difundiu-se na sala uma reação que nos velhos relatórios parlamentares era indicada com a palavra sensacional. Dentre outras coisas, para muitos deve ter parecido que num congresso sobre as perspectivas do mundo de amanhã seria ao menos impertinente (no duplo sentido: não pertinente e descaradamente provocador) pedir a palavra para lembrar aos participantes de que amanhã o mundo, enquanto mundo cultural humano, pode acabar e que uma resposta qualquer ao como o mundo poderá e deverá ser amanhã comporta uma resposta preliminar: se amanhã haverá um mundo e se hoje não há o risco de que pelo menos certas forças conspiram para seu fim. Outros dentre os participantes poderiam mesmo pensar que a simples proposição de um problema do gênero é algo ligeiramente arguto, no sentido napolitano do termo, e que chamar a atenção para tal possibilidade extrema tem como único efeito deprimir os ânimos com sinistras evocações e induzir aos comportamentos defensivos, entre o sério e o irreverente, que constituem as esconjurações utilizadas nessas circunstâncias. No entanto, devo convidar os presentes à superação dessas reações imediatas, assegurando-lhes ao mesmo tempo que minha intervenção não tem nenhuma intenção de deprimir os ânimos, mas simplesmente de trazer uma contribuição, ainda que modesta, à justa proposição de um problema que, justamente, se ignorado ou ligeiramente deixado de lado pode comportar soluções catastróficas negativas para toda a humanidade.

No fundo, como problema preliminar em relação ao do mundo de amanhã está a relação homem-mundo, na forma como essa se configura na moderna consciência cultural. Creio que essa relação se articula em dois momentos distintos e ligados, acerca dos quais o mundo contemporâneo mostra ter uma sensibilidade particularmente aguda. Por um lado, o mundo, isto é, a sociedade dos homens atravessada pelos valores humanos e operável segundo tais valores, não deve acabar, mesmo se – e, aliás, justamente porque – os indivíduos singulares fruem de uma existência finita; por outro lado, o mundo pode acabar, e não tanto no sentido natural de uma catástrofe cósmica que pode destruir ou tornar inabitável o planeta Terra, mas no sentido de que a civilização humana pode auto-aniquilar-se, perder o sentido dos valores intersubjetivos da vida humana, e empregar as mesmas potências de domínio técnico da natureza segundo uma modalidade que, por excelência, é privada de sentido, isto é, para aniquilar a própria possibilidade da cultura. Se tivesse que especificar nossa época em seu caráter fundamental, diria que ela vive, talvez como jamais aconteceu na história, na dramática consciência desse deve e daquele pode: na alternativa entre o mundo que deve continuar mas que pode acabar, entre a vida que deve ter um sentido mas que pode também perdê-lo para sempre, e de que o homem, apenas o homem, carrega toda a responsabilidade desse deve e desse pode, não sendo garantido por nenhum plano da história universal operante, independentemente das decisões reais do homem em sociedade.

Sem dúvida, na consciência cultural de nossa época a relação entre o que poderíamos chamar de ethos da transcendência da vida nos valores intersubjetivos e aquilo que, pelo contrário, representa a ruína desse ethos com a correlativa perda de sentido e de operacionalidade do mundo, apresenta uma grande variedade de concretas manifestações que uma pesquisa sistemática deveria colocar em evidência e submeter ao juízo. A manifestação extrema, na qual o risco se revela da forma mais radical, adquire aspectos nitidamente psicopatológicos, como por exemplo na Weltuntergangserlebnis esquizofrênica; mas mesmo sem chegar a esses casos limites, nuances mórbidas do gênero mostram-se copiosas na ruína das linguagens artísticas, assim como em certas correntes existencialistas e em certas modalidades do costume. Quando Heidegger em Sein und Zeit teoriza o Geworfenheit[1] do ser-aí; quando Sartre em La nausée ilustra o mundo indigesto aprofundando-se no nada; quando David Herbert Lawrence lamenta que perdemos o sol, os planetas e o Senhor com as sete estrelas da Ursa recebendo, por outro lado, o “pobre, achatado e mesquinho mundo da ciência e da técnica”; quando Moravia em La noia descreve “a doença dos objetos”, vemos nessas expressões culturais, ainda que tão diversas, uma Stimmung comum, a assinalação de um mesmo risco radical, isto é, a possibilidade de um mundo que se arruína quando se arruína o ethos cultural que o condiciona e o sustenta. Por outro lado, expressões culturais tão heterogêneas como o instinto de morte de Freud e o ocaso do ocidente de Spengler parecem acenar na mesma direção.

Não é improvável que uma tão aguda consciência cultural do fim do mundo na época moderna tenha se alimentado também da possibilidade da guerra nuclear ou dos terrificantes episódios de genocídio dos campos nazistas. Mas já o fato de que tivemos necessidade dos 200.000 de Hiroshima ou dos 6.000.000 de judeus mortos nos campos de extermínio nos indica quão profundas são as raízes de nossa crise. De fato, deveria ser o suficiente imaginar apenas um rosto humano que carrega os signos da violência e da ofensa sofrida por outro humano para colocar em movimento, em quem observa aquele rosto, a dramática tensão do mundo que pode mas não deve acabar. Que os rostos perdidos por culpa humana sejam 200.000 ou 6.000.000 não acrescenta nada ao escândalo daquele único rosto, e não é preciso mais do que aquele único rosto para questionar o mundo e para mobilizar o ethos cultural humano que sempre é chamado a tornar mais habitável e mais familiar o planeta Terra para cada um e para todos. Mas, à parte Hiroshima e os campos de concentração, existem outros aspectos de nosso mundo moderno que tornaram particularmente aguda nossa sensibilidade em relação ao risco do fim. As rapidíssimas transformações nos gêneros de vida introduzidas pela difusão do progresso técnico, as correntes migratórias do campo à cidade, de regiões subdesenvolvidas a regiões industriais, o salto repentino de economias mais ou menos atrasadas ou mesmo de sociedades tribais a economias e sociedades agora inseridas no mundo ocidental levaram à crise um grande número de pátrias culturais tradicionais sem que, no entanto, a integração na nova pátria cultural tivesse tido tempo de amadurecer. Os rápidos processos de transição, as lacerações e os vazios que tais processos comportam, a perda de modelos culturais numa situação em que não podem mais ser utilizados aqueles familiares induzem a crises graves e repropõem, da maneira mais dramática, os problemas elementares da relação com o mundo. Apenas nesse quadro conseguimos compreender, por exemplo, as reflexões de um operário francês como Navel, que em seus Parcours expõe, de modo autobiográfico, a passagem de sua origem camponesa à condição operária exprimindo, ademais, de maneira recorrente, a reconquista do mundo e do próprio corpo que a vida de uma fábrica moderna colocava em causa de forma radical. De noite, o operário Navel volta a seu quarto e prepara para si a janta, e eis que se surpreende no ato de abrir a porta do armário e pegar o saleiro para temperar a comida.

A mão, sensível às percepções decorrentes da madeira do armário, do ferro do puxador, do vidro do saleiro e da pitada de sal, me maravilha: eu me espantava por encontrar tamanho tesouro de conhecimentos na simples pele dos dedos. Procurava viver completamente acordado, sempre consciente do momento, da coisa, do gesto. O adulto vive dormindo em suas rotinas. É sempre bom aprender sobre a vida, e, de repente, eu estava apreendendo sobre a árvore verde pelo contato direto. Não há senão a vida, sobre a qual nos perguntamos se vale a pena ser vivida. Enquanto a mão segurava sua pitada de sal em cristais diminutos, sabia que ela era similar àquela de todas as mulheres da terra quando fazem o gesto de abrir o saleiro para salgar a comida, o gesto que eu via minha mãe fazer; e eu dialogava com ela na fugacidade do sonho: “Eu salgo minha comida, minha mão é a tua, e tu não estás morta”. Mas além de minha mãe, eu estava em relação com todos os mortos, com todas as presenças que tinham me dado uma mão como esta, similar às outras. O homem vive com suas mãos. A minha tinha pertencido a uma geração de servos. Com frequência eu tinha preenchido sua solidão no fornilho quente de um cachimbo, depois de um dia trabalhando com o machado nas florestas cobertas de neve. A vida é o que se toca, e as mesmas sensações induzem aos mesmos sonhos. Lenhadores, vinicultores, camponeses ao me darem suas mãos tinham me dado também aquilo que havia passado por suas cabeças, pouco importa se tivessem sido ruivas ou loiras.

Certa vez, percorrendo uma estrada da Calábria, acabei perguntando a um velho pastor algumas indicações sobre uma encruzilhada que estava procurando e, dado que suas informações eram pouco claras, propus que ele me acompanhasse no carro até a encruzilhada em questão, para depois trazê-lo de volta ao lugar onde havíamos nos encontrado. O velho pastor aceitou com extrema desconfiança meu convite e, durante o percurso, olhava com crescente agitação pela janela, como que procurando alguma coisa muito importante. De repente gritou: “Onde está o campanário de Marcellinara? Não o vejo mais!”. Efetivamente, o campanário daquela vila havia desaparecido no horizonte e, com isso, o mundo familiar e o espaço doméstico desse arcaico pastor havia sido profundamente alterado, ele que, com esse desaparecimento, experimentava angustiosamente o desabamento de sua pequeníssima pátria cultura, com sua habitual paisagem que servia de cenário cotidiano a seus deslocamentos com o rebanho. Assim, não foi possível ir adiante na companhia de nosso pastor, e foi necessário levá-lo de volta ao ponto de partida, onde saudou com alegria o reaparecimento do campanário sumido. Esse é um exemplo extremo, e quase caricatural, da ligação com uma pátria cultural como condição de operacionalidade do mundo; mas essa ligação é bem conhecida do estudioso das civilizações e é particularmente evidente nas civilizações arcaicas.

O que pode acontecer quando numa situação colonial determinada corrente migratória muda repentinamente de habitat e passa de condições tribais de vida a uma civilização de tipo industrial já foi várias vezes apontado. Aqui, lembrarei do caso do qual se ocupou o etnólogo Jean Rouch em Accra, na Costa do Ouro, quando ainda havia o regime colonial britânico; um caso particularmente interessante, documentado, dentre outros, também por um documentário do próprio Rouch, que foi projetado alguns anos atrás no festival internacional do filme etnológico de Florença. Trata-se de uma corrente migratória dos negros Bambara do médio Níger – onde viviam da pesca e da agricultura – para as muito mais civilizadas regiões da costa. Os Bambara eram atraídos pelos fabulosos ganhos esperados na nascente sociedade industrial da costa onde, de fato, encontraram condições materiais de vida certamente muito melhores do que aquelas de sua pátria tribal. Exceto que na nova localidade se verificou um duplo fato: por um lado, todo o dispositivo cultural do qual dispunham os emigrantes na pátria para enfrentar os momentos críticos de suas vidas como agricultores e pescadores, isto é, seu panteão, seus ritos, suas cerimônias, não eram mais utilizáveis na nova localidade, ligados como eram a um habitat então abandonado, a momentos críticos que tinham perdido seu sentido e a relações tribais agora em dissolução; por outro lado, os Bambara eram acometidos por uma grave série de episódios traumatizantes em suas vidas de emigrados. O governador inglês, o exército, a polícia, a burocracia, os carros, os trens etc. constituíam um conjunto de elementos que eles não conseguiam inserir em nenhum horizonte cultural e que representavam o resultado terminal de um processo histórico ao qual eles permaneciam substancialmente estranhos. Nessa situação, muito rapidamente foram verificadas na comunidade Bambara de Accra uma série de desordens psíquicas muito graves, caracterizadas pela insurgência de impulsos inconscientes que não podiam ser nem controlados nem sublimados em determinados horizontes culturais. A comunidade em Accra foi assim afetada por uma verdadeira epidemia de desordens psíquicas, que alarmou as autoridades, ainda mais porque médicos e psiquiatras não conseguiam intervir de maneira eficaz na situação, que escapava aos quadros nosológicos da medicina e da psiquiatria europeias. Por sua vez, quem conseguiu resolver a situação foi um bambara, homem de grande experiência e que tinha maiores capacidades do que os outros emigrantes. Este tomou alguns elementos do velho dispositivo cultural – por exemplo, o altar cônico no centro de um descampado – modificando-os em função da nova situação. Dividiu assim o altar tradicional em várias seções, a mais alta delas hospedava o governador como nova divindade do panteão industrial e colonial, e depois, um de cada vez, o médico, o chefe da polícia, a mulher do médico etc.. Na base do altar cônico, que representava em certo sentido uma imagem mítica da situação colonial, estava o lugar das ofertas sacrificiais. Mas o que tornava particularmente interessante essa readaptação da religião tribal à nova situação eram os ritos e as cerimônias. Os bambaras, mantendo os velhos ritos de possessão característicos de sua tradição mágico-religiosa, deixavam-se então possuir pelas divindades do novo panteão. Assim, ao longo das cerimônias celebradas junto ao altar, eles eram possuídos pelo espírito do governador inglês, ou pelo chefe da polícia, ou pelo maquinista das ferrovias e usavam como fórmulas litúrgicas as fórmulas burocráticas que constituíam outro elemento traumatizante de sua nova vida na cidade. Desse modo, os traumas e os conflitos acumulados cotidianamente, e que antes explodiam em verdadeiras desordens psíquicas, agora eram levados a fluir à ordem ritual da possessão e recebiam um horizonte nas figurações míticas definidas. Assim, o novo dispositivo cultural pôde absorver uma função de reequilíbrio e reintegração, e as desordens psíquicas encontraram sua mais apropriada modalidade de controle.

Esse episódio singular estimula algumas observações. Sem dúvida, a ciência e a técnica do ocidente, nascidas de um ethos cultural particular que é fruto de uma longa história, constituem valores não apenas universais, mas universalizáveis. Todavia, são valores universalizáveis na medida em que entram com um ritmo crescente no processo de socialização e na medida em que a ciência e a técnica desenvolvem inteiramente o ethos adequado ao tipo de humanismo integral e de integral democracia que, certamente, ciência e técnica encerram, ao menos potencialmente. A tal propósito, não deve ser esquecido que um longo caminho ainda resta a ser percorrido, e que como há uma magia negra há também um modo de compreender a ciência como tecnicismo moralmente indiferente e, portanto, compatível, por exemplo, com o segredo atômico e com a guerra nuclear. O problema central do mundo de hoje se mostra, assim, na fundação de um novo ethos cultural não mais adequado ao campanário de Marcellinara, mas a todo o planeta Terra, que agora os astronautas contemplam das solidões cósmicas e que está, de fato, se tornando, ainda que por meio de contradições e resistências, nossa pátria cultural fundamentalmente unitária, com toda a riqueza de suas memórias e de suas perspectivas. Na medida em que esse novo ethos se tornará realmente operante e unificador, recolhendo numa consciente ecumenicidade de valores comuns a originária dispersão e divisão das gentes e das culturas, o mundo que não deve acabar sairá vitorioso da recorrente tentação do mundo que pode acabar, e o fim de um mundo não significará o fim do mundo, mas, simplesmente, o mundo de amanhã.       

 

 

Originalmente publicado em Il mondo di domani, organizado por Pietro Prini, Roma, Edizioni Abete, 1964. Encontro sobre o tema O mundo de amanhã, organizado pelo instituto de filosofia da Universidade de Perúgia. Republicado em Ernesto de Martino, Oltre Eboli. Ter saggi. Org. por Stefano de Matteis, Roma, Edizioni e/o, 2021, pp. 83-93.

Dentre as outras intervenções, estão: Robert Junk (em defesa da fantasia social); Gabriel Marcel (o sagrado na idade da técnica); Guido Calogero (o futuro e o eterno); Paul Ricoeur (perguntas à filosofia de amanhã); Octave Mannoni (perspectivas psicanalíticas); Umberto Eco (pesquisa interdisciplinar); Giulio Carlo Argan (o futuro das artes); Carlo Bo (literatura de amanhã); Arnold Gehlen (cristalização cultural). 

 

Trad.: Vinícius Nicastro Honesko. 

Imagem: Campanário de Marcellinara

 



[1] Grosso modo, o ser-lançado ao mundo [N.T.]

terça-feira, 1 de março de 2022

Guerra & Demência (senil) - Franco "Bifo" Berardi

 


 

Franco "Bifo" Berardi

 

 Ucrânia, agonia do Ocidente & cia: o que acontece é uma geopolítica da psicose.


 

Aniquilar

Anéantir, o último livro de Houellebecq, é um volume de setencentas páginas, mas a metade seria o suficiente. Não é o melhor de seus livros, mas a mais desesperada representação, ao mesmo tempo resignada e raivosa, do declínio da raça dominante.

França profunda: uma família se reúne ao redor do velho pai de 80 anos que sofreu um derrame. Como interminável do velho patriarca que trabalhava para o serviço secreto. O filho Paul, que também trabalha para o serviço secreto, mas também para o Ministério da Economia, descobre ter um câncer terminal durante o coma interminável do pai. O outro filho, Aurélien, irmão de Paul, se suicida, incapaz de enfrentar uma vida na qual sempre se sentiu derrotado. Resta a filha, Cécile, católica integralista, mulher de um cartorário fascistóide que perdeu o trabalho mas que encontrou outro nos ambientes da direita lepenista.

A doença terminal é o tema desse romance medíocre: a agonia da civilização ocidental.

Não é um belo espetáculo, porque a mente branca não se resigna ao inelutável. A reação dos velhos brancos agonizantes é trágica.

O cenário em que essa agonia se desenrola é a França de hoje, culturalmente devastada por quarenta anos de agressividade liberal, um país espectral no qual a luta política se desenvolve no quadro mefístico de nacionalismo agressivo, racismo branco, rancor islâmico e integralismo economicista.

Mas o cenário também é o mundo pós-global, ameaçado pelo delírio senil da cultura dominadora mas em declínio: branca, cristã, imperialista.

 

Guerra / Agonia / Suicídio

Na fronteira oriental da Europa dois velhos brancos jogam uma partida na qual nenhum dos dois pode retroceder.

O velho branco americano voltou de sua derrota mais humilhante e trágica. Pior do que Saigon, Kabul permanece no imaginário global como a marca do caos mental da raça dominadora.

O velho branco russo sabe que seu poder se funda numa promessa nacionalista: trata-se de vingar a honra violada da Santa Mãe Rússia.

Quem dá um passo atrás, perde tudo.

Que Putin seja um nazista é algo óbvio desde quando terminou a guerra na Chechênia com o extermínio. Mas era um nazista muito bem quisto pelo presidente americano que, olhando-o nos olhos, disse ter entendido que era sincero. Muito bem quisto também pelos bancos ingleses, que estão cheios dos rublos rapinados pelos amigos de Putin depois do desmantelamento das estruturas públicas herdadas da União Soviética. Os hierarcas russos e os anglo-americanos eram amigos caríssimos quando se tratava de destruir a civilização social, a herança do movimento operário e comunista.

Mas a amizade entre assassinos não dura. De fato, para que serviria a OTAN se de fato a paz tivesse sido instaurada? E como acabariam os imensos lucros das empresas que produzem armas de destruição em massa?

A expansão da OTAN servia para renovar uma hostilidade à qual o capitalismo não podia renunciar.

Não existe uma explicação racional para a guerra ucraniana, porque ela é o momento culminante de uma crise psicótica do cérebro branco. Que racionalidade tem a expansão da OTAN que fornece armas aos nazistas poloneses, bálticos e ucranianos contra o nazismo russo? Por outro lado, Biden obtém o resultado mais temido pelos estrategistas americanos: levou Rússia e China a um abraço que há cinquenta anos Nixon havia conseguido romper.

Portanto, para nos orientarmos na guerra iminente não necessitamos de geopolítica, mas de psicopatologia: talvez necessitemos de uma geopolítica da psicose.

De fato, está em jogo o declínio político, econômico, demográfico e, por fim, psíquico da civilização branca, que não pode aceitar a perspectiva do exaurimento e prefere a destruição total, o suicídio, em vez da lenta extinção do domínio branco.

 

Ocidente / Futuro / Declínio

A guerra ucraniana inaugura uma histérica corrida aos armamentos, uma consolidação das fronteiras, um estado de violência crescente: demonstrações de força que, na realidade, são a marca do caos senil em que caiu o Ocidente.

Em 23 de fevereiro de 2022, quando as tropas russas já tinham entrado em Donbass, Trump, ex-presidente e candidato à próxima presidência, julga ser Putin um gênio do peacekeeping. Sugere que os Estados Unidos deveriam mandar um exército similar à fronteira com o México.

Tentemos compreender o que quer dizer o obsceno Trump. Qual o núcleo de verdade de seu delírio? O que está em questão é o próprio conceito de Ocidente.

Mas quem é o Ocidente?

Se para a palavra “Ocidente” damos uma definição geográfica, então a Rússia dele não faz parte. Mas se pensamos o núcleo antropológico e histórico dessa palavra, então a Rússia é mais Ocidente do que qualquer outro ocidente.

O Ocidente é a terra do declínio. Mas é também a terra da obsessão pelo futuro. E as duas coisas são uma só, uma vez que para os organismos sujeitos à segunda lei da termodinâmica, como são os corpos individuais e sociais, futuro quer dizer declínio.

Assim, estamos unidos no futurismo e no declínio, isto é, no delírio de onipotência e na desesperada impotência, nós, ocidentais do Oeste, e os ocidentais da desmesurada pátria russa.    

Trump tem o mérito de dizer isso sem tantos rodeios: nossos inimigos não são os russos, mas os povos do sul do mundo, que exploramos por séculos e agora pretendem dividir as riquezas do planeta conosco, e querem imigrar para nossas terras. Nosso inimigo é a China, que humilhamos, a África, que depredamos. Não a branquíssima Rússia que faz parte do Grande Ocidente.

A lógica trompista se funda na supremacia da raça branca da qual a Rússia é o posto mais avançado e extremo.

A lógica de Biden, pelo contrário, é a defesa do mundo livre, que, claro, seria o seu, nascido de um genocídio, da deportação de milhões de escravos e fundado no ineliminável racismo sistêmico. Biden rompe o Grande Ocidente em prol de um Pequeno Ocidente sem Rússia, destinado a se despedaçar e a envolver em seu suicídio todo o planeta.

Tentemos definir o Ocidente como esfera de uma raça dominadora obcecada pelo futuro. O tempo tende a um impulso expansivo: o crescimento econômico, a acumulação, o capitalismo. Justamente essa obsessão pelo futuro alimenta a máquina do domínio: investimento de presente concreto (de prazer, de relaxamento muscular) em abstrato valor futuro.

Talvez poderíamos dizer, reformulando um pouco os fundamentos da análise marxiana do valor, que o valor de troca é justamente essa acumulação do presente (o concreto) em formas abstratas (como o dinheiro) que podem ser trocadas amanhã.

Essa fixação pelo futuro por nada é uma modalidade cognitiva natural do humano: grande parte das culturas humanas são fundadas numa percepção cíclica do tempo ou na dilatação insuperável do presente.

O Futurismo é a passagem para a plena autoconsciência, também estética, das culturas da expansão. Mas os futurismos são diversos e em alguma medida divergentes.

A obsessão pelo futuro tem implicações diversas na esfera teológico-utópica, própria da cultura russa, e na esfera técnico-econômica, própria da cultura euroamericana.

O Cosmismo de Fedorov e o Futurismo de Maiakovski têm um sopro escatológico que falta tanto no fanatismo tecnocrático marinettiano quanto em seus epígonos americanos como Elon Musk. Talvez seja por isso que cabe à Rússia terminar a história do Ocidente, e aqui estamos nós.

 

O nazismo está por toda parte

Depois do limiar pandêmico, o novo panorama é a guerra que opõe o nazismo ao nazismo. Gunther Anders havia pressentido, em seus escritos dos anos 1960, que a carga niilista do nazismo de fato não havia sido exaurida com a derrota de Hitler, e que voltaria à cena do mundo em razão do agigantamento da potência técnica que provoca um sentimento de humilhação da vontade humana, reduzida à impotência.

Agora vemos que o nazismo reemerge como forma psicopolítica do corpo demente da raça branca, que reage raivosamente a seu irrefreável declínio. O caos viral criou as condições de formação de uma infraestrutura biopolítica global, mas também acentuou, até o pânico, a percepção de ingovernabilidade da proliferação caótica da matéria que perde a ordem, que se desintegra e morre.

O Ocidente obliterou a morte porque não é compatível com a obsessão pelo futuro. Obliterou a senescência porque não é compatível com a expansão. Mas agora o envelhecimento (demográfico, cultural e também econômico) das culturas dominadoras do norte do mundo se apresenta como um espectro que a cultura branca não pode nem mesmo pensar, imagina então se poderia aceitar.

Eis, portanto, o cérebro branco (tanto o de Biden e quanto o de Putin) entrando numa crise furiosa de demência senil. O mais desenfreado de todos, Donald Trump, diz uma verdade que ninguém quer escutar: Putin é nosso melhor amigo. Certamente é um assassino racista, mas nós não somos menos.

Biden representa a raiva impotente que têm os velhos quando se dão conta do declínio das forças físicas, da energia psíquica e da eficácia mental. Agora, o exaurimento está em fase avançada, a extinção é a única perspectiva tranquilizadora.

Poderá a humanidade salvar-se da violência exterminadora do cérebro demente da civilização ocidental – russa, europeia e americana – em agonia?

De qualquer forma que evolua a invasão da Ucrânia – que se torne uma ocupação estável do território (improvável) ou que se conclua com uma retirada das tropas russas depois de ter destruído o aparato militar que os euroamericanos forneceram a Kiev (provável) –, o conflito não pode ser resolvido com a derrota de um ou de outro dos dois velhos patriarcas. Nenhum deles pode concordar em desistir antes de ter vencido. Por isso, essa invasão parece abrir uma fase de guerra tendencialmente mundial (e tendencialmente nuclear).

A questão que por ora se mostra sem resposta é relativa ao mundo não ocidental, que por alguns séculos sofreu a arrogância, a violência e a exploração de europeus, russos e, por fim, americanos.

Na guerra suicida que o Ocidente desatou contra o Outro Ocidente as primeiras vítimas são aqueles que sofreram as consequências do delírio dos dois ocidentes, aqueles que não queriam nenhuma guerra, mas devem sofrer seus efeitos.

A guerra final contra a humanidade começou.

A única coisa que podemos fazer é desertar, transformar coletivamente o medo em pensamento, e nos resignar com o inevitável, porque só assim, nos contratempos, pode acontecer o imprevisível: a paz, o prazer, a vida.  

 

 

Franco "Bifo" Berardi, Guerra & demenza (senile), trad.: Vinícius N. Honesko. Originalmente publicado em: https://not.neroeditions.com/guerra-demenza-senile/

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Verdade como errância - Giorgio Agamben

 


Giorgio Agamben

 

O último texto ao qual Michel Foucault teve tempo de dar a imprimatur se chama: La vie: l’expérience et la Science. Foi publicado na “Revue de Metaphysique et de Morale” de janeiro-março de 1985, mas havia sido enviado à revista em abril de 1984, poucos dias antes da morte do autor. Trata-se de um texto concebido por Foucault como uma homenagem máxima a seu mestre, Georges Canguilhem. A razão pela qual escolhi esse texto é que nele, curiosamente, Foucault – que havia começado se inspirando no novo vitalismo de Bichat, em sua definição da vida como “o conjunto de funções que resistem à morte” – acaba por ver na vida o âmbito próprio do erro. “A vida – escreve – produz com o homem um vivente que jamais se encontra completamente em seu lugar, que está votado a errar e a falhar”. É possível ver nesse diagnóstico sombrio um eco da crise que Foucault diz ter atravessado depois de La volonté de savoir. Acredito, todavia, que aí está em jogo algo completamente diferente de uma simples crise de pessimismo; algo como uma nova experiência que obriga Foucault a reformular de forma radical a relação do sujeito com a verdade, ou seja, um tema especificamente foucaultiano. Retirando o sujeito do terreno do cogito, esse texto o coloca no terreno da vida – mas de uma ‘vida’ compreendida como o lugar próprio do erro. “Não será talvez preciso reformular desde o início a teoria do sujeito – escreve Foucault –, uma dado que a consciência, em vez de se abrir à verdade do mundo, enraíza-se nos ‘erros’ da vida?”. O que pode ser uma consciência que não tem mais como correlato a verdade da abertura a um mundo, mas apenas a vida e sua errância? Como pensar um sujeito a partir não de uma relação com a verdade, mas de uma relação com o erro?

Ainda Badiou, um dos filósofos franceses mais interessantes da geração seguinte à de Foucault, pensa o sujeito a partir de um encontro contingente com a verdade e deixa de lado o vivente como “o animal da espécie humana”, o qual serve de suporte para esse encontro. Foucault, pelo contrário, parece, sinalizar para uma dimensão em que o decisivo não é mais a relação com a verdade, mas com o erro. Para Foucault, não se trata de um simples ajuste epistemológico, mas de um deslocamento da teoria da consciência para um terreno absolutamente inexplorado.

Gostaria de analisar outro texto – cronologicamente muito distante desse de Foucault – que provém da filosofia medieval e de um âmbito de problemas muito conhecido dos medievalistas, mas que me parece merecer uma atenção ulterior, uma vez que poderia nos dar, por assim dizer, um novo paradigma por meio do qual observar o problema da verdade. Trata-se das Questiones Disputatae de Esse Intellegibili, de Guglielmo di Alnwick, escrito mais ou menos no início do século XIV. Um tratado, como diz o título, sobre o Ser Inteligível, isto é, que se interroga sobre o estatuto ontológico do inteligível.

A primeira quaestio soa assim: “se o ser representado e conhecido de uma coisa for idêntico realiter à forma que o representa e ao ato de conhecimento” (Ultrum esse repraesentatum obiecti repraesentati sit idem realiter cum forma repraesentante et utrum esse cognitum obiecti cogniti sit idem realiter cum actu cognoscendi). Isto é: o ser inteligível, a intelegibilidade de uma coisa, ou melhor, a verdade ou a ilatência de uma coisa, é algo diverso ou não da coisa e do ato de conhecimento? Guglielmo começa se referindo à opinião dos modernos – como os chama – segundo os quais o ser representado de uma coisa é uma entitas distinta da forma representante, o ser conhecido de algo é uma entidade distinta do conhecimento. O ser inteligível se apresenta como uma entidade realmente distinta do conhecimento e da forma cognoscente. Então, Guglielmo prossegue articulando a diferença scotista, muito aguda, entre ser real (a coisa, enquanto existe por si) e ser intencional, ou inteligível, que compete à coisa enquanto representada, e é distinto do esse rationis, a coisa enquanto é conhecida com o intelecto. Segundo alguns, diz Guglielmo, a distinção intencional não é a mesma que uma distinção real. Isto é, uma coisa pode ser distinta intencionalmente, sem que isso implique uma distinção de realidade.

Na segunda questão, Guglielmo continua se perguntando se o ser inteligível, que convém ab aeterno à criatura, seja ou não idêntico realiter a Deus (Ultrum esse intellegibile conveniens creature ab aeterno sit idem realiter cum Deo). Ou seja, se a inteligibilidade de toda coisa, de toda criatura, seja idêntica ou não a Deus. Guglielmo responde positivamente: “Afirmo que o ser inteligível da criatura é ab aeterno idêntico realmente a Deus”.

Aqui, para mim, não importa tanto a posição particular de Guglielmo de Alnwick. Antes, me importa de fato apontar para aquilo que chamarei de a aporia do ser intencional ou da verdade. Uma aporia em sentido técnico – porque dá lugar a um indecidível. Uma aporia que Meister Eckhart exprime perfeitamente deste modo: “Se a forma ou a espécie por meio da qual uma coisa é vista ou conhecida fosse diferente da própria coisa, não poderíamos conhecê-la por meio dela. Mas se, pelo contrário, fosse totalmente indistinta da coisa, então seria inútil para o conhecimento”. Assim, se aquilo por meio de que conhecemos algo fosse idêntico à coisa ou totalmente distinto dela, em ambos os casos, diz Eckhart, não poderia nos servir para o conhecimento. Seria inútil ou impediria o conhecimento.    

A aporia está aqui: a verdade, a ilatência, ou a inteligibilidade de uma coisa, não pode ser nem outra coisa nem a coisa mesma. Isto é, o que está em questão é justamente o estatuto ontológico da verdade. A verdade da coisa não pode ser nem idêntica à coisa nem outra coisa.

Essa aporia atravessa toda a cultura medieval, entre os séculos XIII e XIV. Assim, por exemplo, nem mesmo a poesia de amor dos stilnovistas e de Dante pode ser compreendida sem acertar as contas com ela. Porque aqui o problema se coloca em relação ao estatuto da imagem, que, como “espécie sensível” e depois como “espécie inteligível”, constitui o verdadeiro objeto de amor. Também nesse caso a pergunta ressoa: a imago é uma coisa diferente do ser de que é imagem ou é idêntica a ele? Outro problema que fascina os medievais é o da “substância separada” – se é possível o conhecimento das substâncias separadas. As substâncias separadas são puras inteligências separadas da matéria – portanto, das puras inteligibilidades. Também aí, caso se responda que é possível conhecê-las, quer dizer que é possível conhecer uma pura verdade indiscernível da coisa.

Por que razão parei numa questão “aparentemente” técnica da filosofia medieval? Certamente não é apenas em razão da extraordinária perspicácia desses escolásticos tardios, de illi qui student in Scoto. Então, por quê? Pois me parece que o que aqui está em questão é, nada mais nada menos, a possibilidade de uma separação entre a verdade e a cognoscibilidade. No sentido de que a relação intencional não se dá entre um sujeito e um objeto, mas entre um ser e sua inteligibilidade, sua verdade. Aqui aparece a superioridade desses “intencionistas” medievais – como se costuma chamá-los – sobre os modernos. Nesse caso, a intencionalidade não é uma relação entre um sujeito cognoscente e um objeto conhecido, mas, por assim dizer, é uma tensão interna, uma intus tensio, do ser.

A verdade, isto é, a inteligibilidade, tem um estatuto ontológico e não cognitivo – como, por outro lado, nós, modernos, estamos habituados a pensar. Ou melhor: a relação cognitiva aí é quebrada por meio da própria inteligibilidade, da própria cognoscibilidade; uma vez que aquilo que não tem lugar na relação cognitiva entre sujeito e objeto é justamente essa cognoscibilidade, essa intencionalidade, o ser inteligível.

Acontece aí algo similar ao que Fiedler e Klee fazem quando jogam a visibilidade contra a visão. Klee diz que o objetivo do pintor é tornar visível – não ‘fazer ver’. A visibilidade é utilizada contra a ‘visão’, contra a representação tradicional da visão como relação entre um sujeito que vê e um objeto visto.

Também em outro campo, o das análises linguísticas mais recentes, tende-se cada vez mais a colocar em dúvida a noção tradicional segundo a qual uma palavra funcionaria como indicador de um sentido, de acordo com a relação significante/significado. O que, pelo contrário, se vê na palavra – retomando a noção estoica de lekton – é algo como uma pura dizibilidade. Também aqui se joga a dizibilidade contra o ‘dito’.

O que para mim era importante sublinhar – e que constitui uma das tarefas da filosofia – é que em todos esses casos a verdade é tolhida do âmbito cognitivo e restituída à ontologia. É natural que, enquanto formulo essa tarefa, acabo me dando conta de ter simplesmente repetido o que meus amigos franceses chamam de une banalité de base. De fato, não é essa a contribuição filosófica específica de Heidegger? Melhor dizendo, Heidegger não fez justamente isso – deslocar o conceito de verdade, concebida como Lichtung e Aletheia, da esfera cognitiva à do ser? Restituir a verdade à ontologia não era a intenção mais própria de Heidegger?

Entretanto, não foi observado que em Heidegger esse deslocamento tinha um codicilo – que se encontra expresso na conferência sobre “A essência da verdade”. O codicilo é que, se isso é verdade, então a verdade entra necessariamente numa errância, tem a ver, em sua constituição, com a esfera da não-verdade e do erro. Essa é justamente uma das teses fundamentais da conferência. Já no Crátilo um nexo entre verdade e errância pode ser encontrado. Platão aí inventa a etimologia alé-theia, errância divina, e vê nessa errância a possibilidade de um movimento, de um “transporte divino” do ser. Heidegger, por sua vez, a formula mais ou menos assim: a errância (Irre) não é algo em que o homem cai por acaso, ele desde sempre se move na errância, a qual, como Um-wahreit, não-verdade, pertence à própria essência da verdade e é inseparável da abertura do Dasein. Isso implica uma mudança decisiva da pergunta sobre a verdade, que vai da verdade como correição e adequação à verdade como cobertura e erro. Mas o que é uma verdade compreendida como errância? Somos capazes de pensar a verdade integralmente como uma “errância divina”? E ainda: o que é uma filosofia que não se orienta mais pela verdade como certeza e conhecimento, mas a partir de uma relação com o ser que agora é de errância?

Assim, reencontramos as perguntas de Foucault das quais partimos. Aquilo em que devemos pensar, a tarefa que essa conexão entre verdade e errância nos apresenta é, sobretudo, um estatuto não cognitivo da verdade. Trata-se de uma tarefa que, para nós, modernos, por certo não é simples. Como pensar, com efeito, um estatuto não cognitivo da verdade? Algo – para repetir a expressão de um filósofo por quem tenho muita estima – como uma ‘contemplação sem conhecimento’, um pensamento privado de características cognitivas. Estamos dispostos a nos arriscar num pensamento que tenha deposto as pretensões cognitivas que a ele com frequência atribuímos?

Mais do que responder a essas perguntas, limito-me a propor uma epígrafe para uma possível pesquisa futura. Uma epígrafe que gostaria de retirar de uma enigmática passagem da Sétima Carta, na qual Platão escreve: “É necessário aprender ao mesmo tempo o falso e o verdadeiro de todo o ser”. Cai to pseudos ama cai alethes tes holes ousias (344b, 1-2).    

 

 

A presente intervenção foi apresentada na Jornada dedicada à questão da verdade organizada por ocasião da inauguração da Seção de Veneza do Instituto Italiano para os Estudos Filosófico, em 1º de fevereiro de 1997.

 

Giorgio Agamben, Verità come erranza in.: Paradosso – rivista di Filosofia, n. 2-3, org. de Massimo Donà, Padova, Il Poligrafo 1998, pp. 13-17.

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

 

Imagem: Paul Klee, Morte e Fogo, 1940.