segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Estratégias antropofágicas

Flávio de Carvalho, Nu Feminino, 1972
Usar a antropofagia como estratégia, tal como fazem as vanguardas, é ater-se ao movimento das relações com o exterior – com o outro – e, além disso, a ruptura com a tradição e com a memória. Porém, no mesmo instante em que o abandono da tradição é conclamado, uma outra idéia de tradição é posta em cena: não mais a proposição dicotômica do particular/universal (que, ontologicamente se reflete na agonia do ser ou do nada), do primitivo-natural/civilizado, mas aquela do homem natural tecnizado, do ser singular (o ser qualquer); é nesse sentido que, como coloca Agamben, “a singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal.”[1]
Às posições marcadamente cindidas e estruturadas da tradição lógico-conceitual ocidental – a civilização esquizofrênica, diria Warburg –, nas quais os campos filosófico e poético (assim também como o pensamento e a política, a ontologia e a práxis) são compartimentados em seus respectivos domínios, cujas fronteiras são a todo instante marcadas (decididas), a antropofagia expõe sua estratégia pela negação dessas decisões: como o arqueólogo que lê na fratura entre as palavras e as coisas a assinatura – a impressão, o vestígio, a deformação imagética – e a partir desta rearranja as coordenadas da rede histórica de uma civilização, assim também o antropófago, ao dar ouvidos ao homem nu e pela devoração pura e eterna, busca uma saída aos impasses da construção de um homem natural tecnizado. Colocando-se como única lei do mundo, a antropofagia se lança como tentativa de supressão da aporia ser/não-ser e reabre a pergunta do príncipe da Dinamarca: “Tupi or not tupi. That is the question.” Nem um, nem outro, nem particular, nem universal: o mundo é singular e indecidível; o mundo está suspenso no próprio mundo; o mundo é o que resta do mundo – é imaginação do mundo. Neste salto dimensional ler a história da humanidade (de suas humanidades: as artes, a política) é partir de um pathos que não faz contas da distinção entre um trabalho da razão (universal, etnocêntrico, europeu) e uma mitologização (particular, antropológica, indígena), mas que no espaço entre ambas tenta ler e ver a abertura de um possível. Ler e ver a possibilidade num mundo impossível.
[1] AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que Vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993. Tradução: Antônio Guerreiro. p. 11.

sábado, 27 de setembro de 2008

Bilboquet nº 2

Antonin Artaud, Le théâtre de la cruauté

Nós escrevemos raramente sobre o plano do automatismo que preside o cumprimento de nossos pensamentos.

A Arte suprema dá, pelo intermédio de uma retórica bem aplicada, à expressão de nosso pensamento a tensão e a verdade de suas estratificações iniciais, assim como na linguagem falada. E a arte reconduz esta retórica ao ponto de cristalização necessário para fazer apenas um com certas maneiras de ser, reais, do sentimento e do pensamento. - Numa palavra o único escritor durável é aquele que terá sabido fazer se comportar esta retórica como se ela fosse já do pensamento, e não o gesto do pensamento. E Jean Paulhan, que no Le Pont traversé fixou algumas maneiras do nosso pensamento se comportar em relação aos sonhos, revelou tais estratificações do pensamento humano com infinitamente mais tato, qualidade e certeza do que Maeterlinck tais contingências da alma, - por uma maior submissão à matéria, e pela exata elucidação desta matéria.

Antonin Artaud, Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. p. 45. Tradução livre: Vinícius N. Honesko


quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Exterioridades puras



A formação de uma exterioridade não é a simples passagem da imanência à transcendência. Exterior é o plano que se expõe em sua imanência puramente irredutível e monadológica. A transcendência não passa de um efeito aparente, uma dobra, que transborda de um continuum que a tudo perpassa. Não há e nem pode haver - e isso foi formulado de forma pungente em Espinosa e Deleuze - uma imanência pensada como plano imanente a algo (à vida, ao Sujeito, à consciência, etc.). “É quando a imanência é imanência apenas a si que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o plano transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito nem por um Objeto capaz de o conter.”[1] Bento Prado Jr., na conferência em que analisa o conceito de plano de imanência a partir do opúsculo “O que é a Filosofia” de Deleuze/Guattari, propositadamente intitulada “Plano de Imanência e Vida”, assevera que se o plano de imanência, como instância que precede a própria relação entre sujeitos e objetos (sendo simultaneamente contemporâneo e quase coextensivo à formação de conceitos na instauração filosófica[2]) fosse imanente à vida, ele perderia imediatamente sua aseitas (na expressão escolástica “um ser que contém em si próprio a razão de seu ser”), transformando-se em mera abaleitas (o ser que depende de outra instância - ou outro ser - para sua existência). Contudo, “o imanente que não é imanente a nada específico é ele mesmo uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, uma imanência absoluta: ela é potência e beatitude completas.”[3] Este empirismo radical, indeterminado e indeterminável de uma vida (o artigo indefinido evidencia-se no qualificativo que invalida toda e qualquer qualificação) é a forma de uma exterioridade indômita que avassala próteses de exterioridade fundadas em não-lugares místicos, fantasmáticos ou mantidos à base de armas. É o que sempre está lá e se manterá mesmo quando os últimos ventos da catástrofe soprarem, ponto de velocidade e passividade infinitas... Um menino brincando com algumas pedras.


[1] DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... (Tradução de Alberto Pucheu e Caio Moreira). p. 161.
[2] Pois o plano de imanência, “sem os conceitos que nele inscrevem ossatura e coluna vertebral” dissolver-se-ia em “puro fluxo sem consistência e, no limite, em puro caos.” PRADO JR., Bento. Erro, ilusão, loucura. São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 151.
[3] DELEUZE, Gilles. Idem. Ibidem.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

A Arca Russa - A elegia de Sokurov

Por Giorgio Agamben (In.: Las Ranas. Arte, Ensayo y Traducción. Buenos Aires, Abril de 2006, Ano 2, nº2. p. 81)

El contenido original de la elegía es el lamento - lamento fúnebre, según las noticias más antiguas. Y sin embargo, las primeras elegías conservadas en la poesia griega tienen un contenido claramento político y son exhortaciones a da la vida en defensa de la ciudad.
La ambigüedad de la elegía se sitúa en este dificil cruce entre política y lamento. En este sentido, los títulos obstinadamente elegíacos de las películas de Sokurov deben ser tomados literalmente. ¿A quién y qué cosas lamentan estas elegías? ¿La Unión Soviética, la libertad de Vilnius, la vieja Rusia, Europa? Todo esto, pero no solamente esto. El objeto del lamento de Sokurov es el poder o, más precisamente, su vacío central, que en la Unión Soviética empieza a aparecer implacablemente a partir de 1989, fecha de la primera elegía.
Este vacio se fija en los rostros inmóviles de la nomenklatura y, finalmente, en el rostro de El´cin frente al televisor.
La contemplación del poder - en cuanto es contemplación de un vacío - no puede ser sino elegíaca: ésta es la lección de Sokurov. En este punto, sus elegías rozan por un segundo el cine de Debord.
Pero, en el mismo instante, muestran su límite. Porque si el arca del poder está vacia, si justamente este vacío es el verdadero y último arcanum imperii, entonces la elegía debe romper su forma. Ella no tiene literalmente nada que lamentar. Acaso por ese motivo, evocando el "Arca" de Rusia, Sokurov ha debido introducir en la elegía la figura irónica de un extranjero, en cuyos labios el lamento se rompe incesantemente en balbuceo y en sonrisas.
Y el ruso, a cuya mirada debemos todo lo que vemos, es el signo de un presente que debe permanecer invisible, y al cual la posibilidad del lamento le ha sido vedada para siempre.

domingo, 14 de setembro de 2008

Um poema


Tenho pena do poema que sai de mim
Sai amargo e desconsolado
Sai bandido
Numa falange de palavras tortas
Sai sabendo que não vai voltar.

Sinto muito
(e é só o que sinto!)
Poema desespero
Angústia calada
Na calada da noite
gelada
como a cerveja que bebo...

Longe da estética,
Da métrica,
Do compasso
E da melodia

Assim sai o poema
Sombrio, escondido do sol
Sem Si, sem Ré, nem rima
Sem dó!
Ignorando,
passando por cima.

Sob o céu escuro
Sob a chuva de palavras
Encaro a tempestade...
E o poema segredo
é medo sob os pingos
É sozinho
E isso é escuridão
Mas abro meus olhos
E mesmo sem ter coragem

Tenho poema do medo que sai de mim.



Piter Walter Zander
Poeta radicado nos Campos Gerais do Paraná

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Images malgré tout...

Albrecht Dürer, Cristo no limbo, 1510

A questão das imagens está no coração desta grande agitação do tempo, nosso “mal-estar na cultura”. Seria preciso saber olhar nas imagens aquilo a que elas são as sobreviventes. Para que a história, liberada do puro passado (este absoluto, esta abstração), nos ajude a abrir o presente do tempo.

Didi-Huberman, Georges. Images Malgré Tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2005. p. 226. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Imagens de perguntas

Painel 31 do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg


Qual a recomposição material implícita na exposição de imagens de si nos espaços virtuais? Digo, quais os mecanismos de encadeamento-ligação entre a imagem exposta na internet, p.ex., e os objetos reais, cujos traços refletidos pela luz foram capturados e impressos na memória virtual de uma máquina e daqui lançados na rede virtual como imagem? Existe neste decalque de objeto, a imagem, ainda algum traço real do objeto? Quais as funções desta falta de objeto neste espaço que, por si só, implica relações outras de tempo e espaço? Os dados nos quais se converte a imagem no instante da sua transimissão pelo tempo-espaço desarranjado da virtualidade (e que se re-convertem em imagem nos mais diversos espaços-tempo, estes vinculados às irrupções que saltam a partir dos cliques dos receptores) são as fagulhas da imagem que deverá reemergir, ou outros objetos autômatos que re-criam a imagem fora de suas condições de extração originária? O que isso tudo tem a ver com a história que escreve (ou, que desenha) o homem? Há no jogo das virtualidades da internet o rompimento com a meretriz do "Era uma vez...", ou trata-se apenas de uma folguinha dada pelo cafetão? O que de mais carrega a instância das multiplicidades sincrônicas? É possível dizer que o lugar incerto do pulular das imagens esgota a história? O que na história de nossas sociedades muda com estas concomitâncias a que se submentem as imagens - seu aparecimento, sua dissolução, seu reaparecimento, seu registro virtual, seu esquecimento? Será que este aparente presente intenso e inesgotável se desvencilha da imagem como representação dos objetos? Ou ainda, será que o que se abre é realmente um presente intenso e inesgotável? Não seria uma pseudo-imagem aquela que ainda pretende representar os objetos? Qual a verdade por trás de uma imagem? Há uma verdade por trás de uma imagem? Isto é, há um objeto? Há um objeto histórico? As imagens históricas são imagens de objetos históricos? Não há um enredo que encadeiou tais imagens para que se pudesse expô-las como imagens de objetos históricos? A história é um objeto ou é imaginada? E esta imaginação: é ela referencial de um objeto ou é uma corda solta que, sem objetos à mão, apenas joga com imagens?

É preciso que a humanidade se desvencilhe das imagens - que se objetificam na forma de fantasmas que acompanham os homens em sua jornada (cada vez mais fantasmáticas) e de quem estes se tornam cada vez mais reféns - e tente uma imaginação liberada das imagens. Ao mesmo tempo, este é o próprio movimento de custódia e resguardo das imagens, agora porém imagens...