Na segunda-feira do dia 11 de fevereiro de 2009, atrás das pedras do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, próximo ao mar, foi encontrada, morta a pedradas e com marcas de violência sexual, uma menina de nove anos. Vestia apenas a parte de cima de uma fantasia de carnaval.
Uma diminuta nota de um jornal de grande circulação do dia 18 de fevereiro, uma quinta-feira[1], no canto universalmente ignorado pelos leitores-espectadores distraídos como somos todos, atesta o reconhecimento do cadáver. A menina desapareceu brincando nas proximidades dos Arcos da Lapa. Na última vez em que foi vista em vida, foliões afirmam o fato, pedia um enfeite carnavalesco a um estranho.
O relato sucinto vem implicitamente acompanhado dos porquês da brevidade da nota - abissal no contraste de uma página inteira dedicada à discussão sobre as modalidades de empréstimo de empresas de ensino junto ao BNDES: era filha de uma vendedora de balas, na rua. A mãe trabalhava no momento do desaparecimento. Morava com mais quatro irmãos em um prédio ocupado no centro do Rio. O pai, que não convivia com a menina, é pedreiro.
Dizia o filósofo alemão Walter Benjamin, em conhecido texto de 1936, que bastaria olharmos para qualquer jornal diário para percebermos que, da noite para o dia, não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreu abalos que outrora julgaríamos inimagináveis. O ensaio tem como mote principal discutir, a partir da obra de Nikolai Leskov, sobre a crise da arte de narrar que vem acompanhada, na modernidade pós primeira guerra mundial, de um decréscimo cada vez mais extremo da possibilidade de intercambiar experiências (“Erfahrung”) humanas válidas. Esta constatação, que já antevia algumas das questões cruciais que só terão seus sombrios desdobramentos após o início da década de 40, soa como um prognóstico que o parque temático macabro (o parque temático é o não-lugar, prótese antropológica por excelência, onde toda a experiência autêntica é vetada em sua concomitante simulação) que tomou conta do mundo contemporâneo reafirma e constantemente ultrapassa em sua vileza. Ultrapassamento do trágico: para as catástrofes humanas que vivenciamos de forma cotidiana - diretamente ou narcoticamente mediatizadas pela informação espetacular - talvez não sejam mais adequadas as categorias de catarse e, conseqüentemente, de luto. Restaria, portanto, apenas esta irreconciliação permanente com os fatos, uma vertigem somatizada em náuseas e em uma profunda apatia.
Os fatos do dia 11 de fevereiro, nesse sentido, gritam por si. Não necessitam de tratados criminológicos e de patologia social – é sabido que a psicopatia perversa grassa como erva daninha nas esquinas do mundo. Tampouco da ladainha obtusa do discurso da “lei e da ordem” como resposta para “as doenças” da sociedade. Nem do sensacionalismo da indústria policial-midiática da miséria cada vez mais lucrativa. Não, nada disso. Fiquemos apenas com os fatos.
Uma criança morreu da maneira mais traumática possível. Os elementos do enredo macabro só reafirmam o caráter de Shoah - dano irreparável, termo quase intraduzível do hebraico, próximo a um mal radical, para lembrar Kant - que permeia este crime.
Em termos tão-somente normativos e hipotéticos (pura deontologia rechaçada pela vida tal qual é) não precisaríamos nem citar Adorno, que dizia não serem mais possíveis poemas após Auschwitz: os carnavais – estas festas midiáticas disciplinadas de culto pentecostal ao nada (longe, muito longe de ser uma festa pagã!) – simplesmente não deveriam mais ser eticamente tolerados após este fato. Jornais-empresas talvez devessem, por si sós, não por censura ou decretos executivos, mas por náusea, estupor e última trincheira de lucidez ainda existente em seus administradores e operadores, serem desativados, pois claro está sua instrumentalização a meros artefatos de classe, mantenedores de um estado fictício de exceção onde o burburinho, a bisbilhotagem e o oportunismo curvam-se ao pés sagrados da mercadoria. Até a arte é indiretamente maculada com este crime. Uma silenciosa cumplicidade: nas costas de um Picasso ou de Van Gogh, transformados que foram em fetiches e moedas de troca preciosíssimas no mercado enquanto tal - belo tornado esquizofrenia diante da vida cotidiana dilacerada - uma criança, vulnerável em todos os sentidos do termo (principalmente economicamente, sentido que hoje comanda e acarreta todos os demais) foi brutalmente morta sem que deste ato repercuta qualquer conseqüência, nem mesmo uma comoção pública - por mais cinicamente fascista que ela seja.
Jogada na vala comum das estatísticas oficiais, sem direito a obituário. Silenciada em vida assim como na morte.
Um digressão pessoal final.
Para meu próprio pasmo e ira, contudo, em termos mundanos atuais tudo isso representaria ainda uma posição sentimental. As Raísas – seu nome era Raísa de Souza da Silva, e espero que com este texto pelo menos o seu nome fique marcado em minha memória também relapsa - são milhares. Da África ao Oriente Médio, da Europa Central e do Leste ao Extremo Oriente, passando pelas Américas e pelo Haiti - o centro nevrálgico e local de exposição da verdade deste planeta sonambúlico - incontáveis são os infanti sacri (uma versão infante e “pós-moderna” dos “homini sacri”[2] da antiga Roma). Mortos por bombas, fuzis, por traficantes de órgãos, sepultados em vida em porões, degolados, aniquilados por catástrofes evitáveis.
E o mais intrigante é que o espetáculo (que se tornou não apenas uma regra, mas a realidade genericamente aceita!), rompendo facilmente com o sollen ético, continua em ritmo carnavalesco e turbinado. O grande culto pentecostal a céu aberto que tomou conta de todo o mundo dá mostras de não poder ser interrompido.
Festejemos e observemos em nossos “reservados VIPS” este festival macabro. Narcotizemo-nos! Mesmo que os pedido de silêncio e basta sejam dos mais triste e intolerável luto. Mesmo que estejam além dos confins do próprio trágico. Grafado está o projeto civilizatório do capitalismo espetacular contemporâneo, sua tanatopolítica.
Um pensador brasileiro certa vez lançou um imperativo melancólico e quixotesco que talvez apenas hoje possa ser explorado em todas sua potencialidades: há apenas duas opções, a indignação ou a resignação. Dizia ele não querer se resignar nunca. Talvez esta seja a última batalha, quiçá já perdida de antemão, que se apresenta para aqueles que ainda ousam estar em vigília em um mundo onde tudo se tornou possível, mesmo o imponderável.
[1] Folha de São Paulo de quinta-feira, 18 de fevereiro de 2009. Caderno Cotidiano, p. C12.
[2] “Festo, no verbete sacer mons do seu tratado Sobre o significado das palavras, conservou-nos a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter da sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal. Logo após ter definido o monte sacro, que a plebe, no momento de sua secessão, havia consagrado a Júpiter, ele acrescenta: At homo sacer is est, quem populus iudicavit ob maleficium; neque fas este eum immolari, sed qui occidit, parricid non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur ‘si quis eum, qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit.’ Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appelari solet.” (“Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida’.”). AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução de Henrique Burigo). Belo Horizonte, ed. UFMG, 2002. p.77.