terça-feira, 20 de setembro de 2016

Do desastre nos salvará a vileza de Pulcinella



Entrevista com Giorgio Agamben
por Alessandro Leogrande

Como a comédia dialoga (desde sempre) com a política. Um ciclo de afrescos de Giandomenico Tiepolo é o ponto de partida do último livro de Giorgio Agamben

Entre 1793 e 1797, Giandomenico Tiepolo, filho de Giambattista, realiza um ciclo de afrescos sobre Pulcinella na Villa di Zianigo, que herdou do pai e em cujo interior se refugiou depois de ter abandonado Veneza. Justamente em 1797, quando Tiepolo termina os dois últimos afrescos, a milenária República de Veneza se extingue. Enquanto um antigo mundo desmorona ruidosamente, Tiepolo parece tão obcecado pela figura de Pulcinella, por sua vida, por suas mil aventuras, por suas mortes e inacreditáveis reaparições, a ponto de a ela dedicar – além das pinturas da Villa, hoje conservadas no Ca’Rezzonico – as 104 placas de um álbum de desenhos intitulado Divertimento per li regazzi. A série de placas sobre Pulcinella, iniciada exatamente nos dias seguintes ao fim da República, é seu último trabalho. 
Mas quem é Pulcinella para Tiepolo? É uma máscara ou um homem? Um deus ou um demônio? E que relação há entre a comédia e a crítica de uma sociedade que muda e desmorona de maneira tumultuosa? A essas e outras perguntas Giorgio Agamben tenta responder em um densíssimo ensaio que, acompanhado das placas de Giambattista e Giandomenico Tiepolo, há pouco foi publicado pela editora Nottetempo: Pulcinella ovvero Divertimento per li regazzi.  
Por meio de Tiepolo, e indo além de Tiepolo até voltar a Platão, Agamben se interroga sobre a íntima relação que liga a comédia à filosofia e sobre as linhas de fuga[1] que se podem abrir no interior de ambas. De modo particular, aquelas linhas de fuga que nos permitem olhar o mundo que nos circunda, nossa própria existência, com um olhar renovado.
No livro de Agamben, Pulcinella chega quando a política morre: não simplesmente no sentido de que não consegue mais funcionar, ou de que parece frágil diante dos outros poderes – econômicos, oligárquicos ou até mesmo imperiais –, mas no sentido literal do termo. Morre porque renuncia ao próprio papel, não podendo mais garantir o objetivo último pelo qual existe: a própria sobrevivência da polis. Agamben tem em mente a extinção da República de Veneza, em 1797, entregue a Bonaparte, e por este cedida à Áustria, a ponto de ter feito Ugo Foscolo dizer, nas Últimas cartas de Jacopo Ortis, que “a vida, ainda que nos seja concedida, só restará para que choremos nossos desastres e nossa infâmia.” Mas, ao mesmo tempo, coloca um explícito paralelismo entre o fim de Veneza, em 1797, e “o eclipse da política e o reino da economia planetária”, no século XXI.
Pulcinella ovvero Divertimento per li ragazzi é um livro que oferece infinitas reflexões e suscita inúmeras perguntas. Algumas destas colocamos diretamente para o autor.


De que modo a máscara de Pulcinella pode constituir uma linha de fuga para ambos os eclipses?
Certamente Pulcinella é, para Giandomenico Tiepolo, aquilo que sobrevive ao fim de seu mundo, à morte da Veneza que havia conhecido e amado – nesse sentido, ao fim da política. Mas não é, apesar de tudo, apenas uma figura impolítica. É, sobretudo, aos meus e, talvez, aos seus olhos, a figura de uma outra política, para a qual nos faltam os nomes, a política que começa quando toda ação tornou-se impossível. O que suas piadas e gestos mostram é o que pode um corpo quando não pode mais agir politicamente. Por isso me interessa. Penso que o modelo da política que conhecemos, fundado sobre a ação e sobre a luta, no contexto do domínio da economia e do estado de segurança em que vivemos, tenha se tornado obsoleto. O paradigma da luta, que monopolizou a imaginação política da modernidade, deve ser substituído por aquele da linha de fuga. Penso que na Grécia o Syriza teve de capitular justamente porque havia se empenhado numa luta sem saída, renunciando à única via possível: a saída da Europa. E isso não é verdade apenas na política, mas também para a existência individual: o essencial, em todo caso, e Kafka não se cansa de lembrar, não é lutar, mas encontrar uma linha de fuga. Como diz Pulcinella: ubi fracassorium, ibi fuggitorium, onde há uma catástrofe, aí há uma linha de fuga.
 
Os governos nacionais europeus dos nossos dias são mais ou menos despolitizados do que a República veneziana que renunciou à sua independência?
Trata-se de dois fenômenos diversos. O eclipse da política que nós conhecemos se inscreve no domínio planetário do paradigma econômico e tecnológico. A abdicação de Veneza diante de Napoleão parece, pelo contrário, apenas fruto da vileza e da insensatez. Naturalmente, isso não significa que nossos políticos não sejam tolos e vis. Pulcinella me fascina porque exibe em seu próprio corpo os vícios do mundo onde vive, e porque também ele é insensato e vil. Ao mesmo tempo, no entanto, ele mostra como, uma vez liberados de sua inscrição no poder, estes mesmos defeitos podem se tornar a cifra de uma outra humanidade, de uma superior anarquia. Também a anarquia, com efeito, pode ser compreendida apenas se primeiramente é liberada de sua apreensão no poder, apenas se nos lembramos, como Pasolini faz dizer um hierarcas de Saló, de que a anarquia pertence antes de tudo ao poder.

Mais do que utilizar a piada como um fim em si mesmo, Pulcinella usa a linguagem de maneira desestruturada. Pulcinella está sempre em outro lugar, leva consigo o discurso a um outro nível, implode-o depois de o ter feito girar em trocadilhos em cuja lógica se perde. É por certo um modelo destituinte, ainda que não seja uma figura propriamente humana.
Se, de um lado, a resposta de Pulcinella não é impolítica, de outro pode constituir um modelo político aquilo que está além da vida e, portanto, é também outro em relação a nós? Ou permanece apenas uma esplêndida utopia teatral?
Desde a origem, em nossa cultura, existe um nexo constitutivo entre política e teatro, que a deriva exclusivamente estética de nossa concepção da arte nos impede de perceber. Sem a tragédia e a comédia não é possível compreender a vida pública da polis grega. Elas, em conjunto com a dança, pertenciam à esfera que os gregos chamavam de música, mousiké, cuja relação com a política era tão estreita que, na República, Platão pode escrever que não é possível mudar os modos musicais sem mudar as leis fundamentais da política. Ou seja, os gregos sabiam que é possível manipular e controlar uma sociedade não apenas por meio da palavra, mas também, e acima de tudo, por meio da música. Nesse sentido, o estado da música (no sentido lato do termo) define a condição política de determinada sociedade melhor e antes do que qualquer outro índice, e, ao se querer mudar verdadeiramente o ordenamento de uma cidade, é sobretudo necessário reformar sua música. Pense na função de intromissão da música em nossa sociedade em todo lugar e a todo momento, o que serve essencialmente para tornar impossível o pensamento.
 
No teatro contemporâneo aconteceram algumas tentativas de realizar de modo concreto algo que se aproximasse de uma dimensão utópica. É impossível, por exemplo, não pensar em uma corrente cárstica que atravessou todo o teatro da segunda metade do século XX, de Grotowski a Kantor, do Living Theatre a Barba dentre outros. Tal linha de fuga – mantida para criar comunidades teatrais, e não só para fazer teatro – por vezes foi uma forma de abandono radical do campo da política. Outras vezes produziu, implícita ou explicitamente, uma radical rediscussão dos termos da política...
Nesse sentido, as máscaras da Comédia da Arte, como também o teatro da segunda metade do século XX que o senhor cita, tinham um indiscutível significado político. Mas também teológico (teologia e política em nossa cultura são intimamente ligadas): nosso termo “pessoa” deriva da teologia trinitária (as três “pessoas” divinas), mas provém, em última análise, do teatro e significa “máscara”. Quando se fala de Pulcinella, é preciso perceber por trás de sua máscara todos esses significados.

Na comédia O filho de Pulcinella, de Eduardo De Filippo, Pulcinella tira sua máscara. Isso acontece também em uma canção do primeiro álbum de Pino Daniele, Suonno d’ajere: aqui, Pulcinella levanta sua máscara, não faz mais rir e endoidar, porque diante dela não há mais uma Nápoles tragicômica, mas, de fato, trágica. Diante de tal contexto radicalmente novo (a incipiente Nápoles de Gava e Cutulo...) não se pode mais rir e, portanto, sua ação é destituída de fundamento. Pulcinella desarticula o tragicômico, mas não o verdadeiro trágico?
É preciso não esquecer que Eduardo pertence a uma tradição antipulcinellesca, a de Scarpetta, que removeu a imagem de Pulcinella do teatro de San Carlino. Ao contrário, escrevi esse livro justamente para provar que a comédia é desde a origem ligada à política e à filosofia. Não se deveria esquecer que as comédias de Aristófanes foram escritas em um momento catastrófico da história de Atenas, como por exemplo Os Arcanânios, quando o território é devastado pela guerra com Esparta e os camponeses foram assassinados na cidade onde por duas vezes a peste se alastrou. Tanto em Atenas quanto em Nápoles, e muito mais do que a tragédia, a comédia sempre teve um íntimo significado subversivo ou, como prefiro dizer hoje, destituinte. Pulcinella mostra que ainda há algo para fazer quando não é mais possível agir, e ainda há algo para dizer quando não é mais possível falar.
 
É a tragicomédia o verdadeiro caráter nacional italiano?
Foi Dante, escolhendo o título de seu poema, que colocou a cultura italiana sob o signo da comédia e não da tragédia. Trata-se de algo mais profundo do que de um caráter, pois em questão está a resposta que se dá a algumas perguntas fundamentais que dizem respeito à ética e à política, como a inocência e a culpa. Mas, mais do que de tragicomédia, prefiro falar, como gostava Manganelli, de “hilaro-tragédia”. Pulcinella acaba com os confins que separam os dois gêneros e o espaço que se abre entre eles, que não é mais nem trágico nem cômico, mas nem mesmo tragicômico, é o que me interessa.

O Divertimento de Tiepolo é para os meninos. Fica impedido, portanto, a quem não é pequeno ou não sabe fazer-se pequeno como eles? O mundo adulto é intrinsecamente anti-pulcinellesco?
É óbvio que os meninos não devem ser entendidos em sentido literal. O mundo adulto que Pulcinella coloca em questão é o sistema dos lugares comuns e dos valores preestabelecidos que nos governam. Como em Lo cunto de li cunti, de Basile, os menininhos [piccirille] são o símbolo de uma humanidade mais verdadeira.

Lendo seu Pulcinella é forte a impressão de que ele seja um de seus livros mais autobiográficos, ou, ao menos, um daqueles em que de maneira muito mais forte emerge o Eu de quem escreve, o Si de quem escreve, ao lado da reflexão filosófica.
O Divertimento per li regazzi, de Giandomenico Tiepolo, é, em certo sentido, uma biografia de Pulcinella, e é possível que ele aí pretendia escrever, nas entrelinhas, sua autobiografia. Mas, para mim, Pulcinella é a impossibilidade de uma autobiografia. Só se pode viver – essa é sua lição – aquém ou além da vida, isto é, além ou aquém da própria biografia.



[1] Aqui, o termo utilizado por Alessandro Leogrande é vie di fuga, o qual, literalmente, poderia ser traduzido por vias de fuga. No entanto, durante toda a entrevista Agamben irá se utilizar de via d’uscita (literalmente: saída) ou via di fuga (literalmente: via de fuga) e suas variações. Tendo em vista a intimidade de Agamben com conceitos deleuzianos (ademais, nos últimos livros isso se torna ainda mais claro) e, também, o próprio sentido em que utiliza essas noções na entrevista, optei por utilizar o termo linha de fuga e suas variações. (N.T.) 

Entrevista publicada no jornal Pagina 99, em 21 de novembro de 2015, nas páginas 24 e 25. (Trad.: Vinícius N. Honesko)

Imagem: Giandomenico Tiepolo. A partida de Pulcinella. 1797. Ca' Rezzonico.

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