terça-feira, 28 de julho de 2015

Pequeno parágrafo sobre o livro


Diz-se que o ar é uma espécie de livro da vida onde qualquer sopro, por mais recôndito e obtuso que se queira, registra uma linha numa história impossível de ser contada em seus detalhes. Suspiros de cães moribundos, brisa de revoada de pássaros, tilintar de guizos de víboras, coaxar de sapos, folhas aos ventos do sul, trovões nervosos em noites escuras e, só por último, o mais vil dos sons, nossas palavras, entram nesse livro como que a compor uma língua cujo registro nos escapa por completo. Pensamos, nós, esses bichos que creem possuir 'a' linguagem, um domínio, mas nos danamos nos nossos tribunais fictícios: a razão, a memória. Uma linha balbuciada nesse livro, sondamos nosso lugar de caput enquanto o ar nos ignora, peremptoriamente nos ignora. Ulisses, um de nossos loquazes irmãos, sai ao mundo e, parado à beira-mar, chora ciente de que, também ele composto de humores, há de voltar ao grande alfabeto da natureza: são muito mais os mortos que os vivos e, logo, também os vivos tornam-se nada e nenhum dos nossos tribunais arrogantes poderá nos julgar; somos já poeira, somos já sal. E assim nos tornamos um verso (acho que o ar é mais poesia que prosa) borrado e esquecido na imensidão das estrofes desse livro a nós de todo ilegível.   

Um comentário:

Barbara disse...

Que parágrafo maravilhoso! Que coisa linda!