O mundo democrático se
desenvolveu no contexto – ao qual, na origem, está ligado – da equivalência
geral. Tal expressão – mais uma vez, de Marx – não designa apenas o nivelamento
geral das distinções e a redução das excelências na mediocrização [médiocrisation] – tema que dominou, como
se sabe, a análise heideggeriana do “se” [“on”]
(em que é possível designar um dos impasses sintomáticos da filosofia em face
da democracia – e isso, aqui, sem prejulgar em nada a análise exata que disso é
conveniente fazer). Ela designa primeiramente a moeda e a forma mercantil, isto
é, o coração do capitalismo. É preciso retirar daí uma lição muito simples: o
capitalismo, no qual ou com o qual, ou ainda como o qual a democracia se engendrou, é, antes de mais nada, no
seu princípio, a escolha de um modo de valorização: pela equivalência. O
capitalismo revela uma decisão de civilização: o valor está na equivalência. A técnica, também ela desenvolvida no e por
efeito dessa decisão – do mesmo modo que a relação técnica com o mundo é de
modo próprio e na origem aquela do homem –, é uma técnica submetida à
equivalência: a de todos seus fins possíveis e, também, de maneira ao menos tão
flagrante quanto no registro do dinheiro, a dos fins e dos meios.
A democracia pode então se
tornar tendencialmente o nome de uma equivalência ainda mais geral do que
aquela sobre a qual falava Marx: fins, meios, valores, sentidos, ações, obras e
pessoas de todo cambiáveis, pois todos relacionados a nada que possa
distingui-los – relacionados a uma troca que, longe de ser uma “partilha”,
segundo a riqueza própria dessa palavra, é apenas substituição dos papeis ou
permuta dos lugares.
O destino da democracia
está ligado à possibilidade de uma mutação do paradigma da equivalência.
Introduzir uma inequivalência nova que não seja, por certo, a da dominação
econômica (cujo fundo permanece sendo a equivalência), dos feudalismos e das
aristocracias, nem aquelas dos regimes de eleição divina e de salvação,
tampouco a das espiritualidades, dos heroísmos ou dos estetismos, tal é o
desafio. Não se tratará de introduzir um outro sistema de valores diferenciais:
tratar-se-á de encontrar, de conquistar, um sentido de valoração, de afirmação
valorativa que dê a cada gesto de valoração – decisão de existência, de obra,
de direção – a possibilidade de não ser ele mesmo de antemão medido por um
sistema dado, mas, ao contrário, de ser a cada vez a afirmação de um “valor” –
ou de um “sentido” – único, incomparável, insubstituível. Apenas isso pode
deslocar a suposta dominação econômica, que é apenas o efeito da decisão
fundamental pela equivalência.
De modo contrário àquilo
que mostra o individualismo liberal, o qual produz apenas a equivalência dos
indivíduos – assim compreendidos desde que os batizamos “pessoas humanas” –, é
a afirmação de cada um que o comum deve tornar possível: mas uma afirmação que
não “valha”, precisamente, senão entre todos e, de algum modo, para todos, que
remeta a todos como à possibilidade e à abertura do sentido singular de cada um
e de cada relação. Apenas isso sai do niilismo: não a reativação de valores,
mas a manifestação de todos sobre um fundo no qual o “nada” significa que todos
valem incomensuravelmente, absolutamente e infinitamente.
A afirmação do valor
incomensurável pode parecer devotadamente idealista. Entretanto, é preciso
entendê-la como um princípio de realidade: ela não se livra a um devaneio, nem
propõe uma utopia, nem mesmo uma ideia reguladora, mas enuncia que é desse
valor absoluto que é preciso partir. Jamais de um “tudo se vale” – homens,
culturas, palavras, crenças –, mas sempre de um “nada se equivale” (salvo o
monetário, que pode sempre tudo se tornar). Cada um – cada “um” singular de um,
de dois, de muitos, de um povo – é único de uma unicidade, de uma singularidade
que obriga infinitamente e que se obriga a ser colocada em ato, em obra
ou em trabalho. E, ao mesmo tempo, a estrita igualdade é o regime em que se
partilham esses incomensuráveis.
Jean-Luc Nancy. Vérité de la démocratie. Paris: Galilée, 2008. pp. 44-47. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Paul Klee. Dream City, 1921.
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