segunda-feira, 13 de junho de 2011

Um riso


Acordou no meio da noite com dores no estômago. Pôs-se a pensar o que poderia ter sido o causador: o peixe, as algas, os frutos do mar, o arroz, a salada de pepinos... Levantou-se ainda bêbado de sono pronto para tomar um remédio. A noite estava fria e ele intrigado com a dor que não lhe deixava em paz. No caminho do quarto até a cozinha, onde estava sua caixa de medicamentos, observou que no apartamento vizinho havia uma luz acesa, o que era pouco comum para aquela hora. Imaginou o que por lá se passava; tentou aproveitar-se do silêncio noturno para tentar escutar algo; tudo em vão. Sentou-se no sofá com o copo de água numa das mãos e a pílula para gastrite na outra. O que lhe causara tamanha dor?
Ligou a TV, o que fazia muito raramente, e começou o zapping para ver se encontrava alguma coisa que poderia lhe entreter. Alguns dos canais já estavam exibindo apenas a névoa televisiva, outros já com as listras coloridas e o relógio digital no canto inferior direito, até que, por acaso, encontrou um filme (numa dessas sessões "corujão") que há muito tinha visto. Não se lembrava do nome, não se lembrava do roteiro, mas sabia que o tinha visto. O esquecimento do filme não lhe causara grandes sensações - já estava um pouco acostumado a esquecer das coisas -, até o momento em que uma das protagonistas dá uma risada que lhe atinge em cheio o estômago dolorido. Agora sabia: não tinha sido a comida do jantar que lhe havia feito mal, mas aquela risada de despedida da sua companheira de refeição. Ele, que imaginava conhecê-la muito bem, naquela noite, surpreendeu-se com aquela risada estapafúrdia, arredia e despropositada. Era como uma chacota com luvas de pelica, como uma agressão no tom mais eufêmico, porém, mais doloroso (uma daquelas ironias mordazes comuns aos algozes em qualquer "rito confessional"). Entretanto, por que no momento da despedida não sentiu nenhum tipo de dor, nenhum tipo de agressão naquela risada? Por que só agora, depois de horas, é que, ao ver uma imagem de uma mulher qualquer de um filme qualquer, tinha certeza de que a dor de estômago provinha daquela risada que imaginava conhecer tão bem?
Espantado com a descoberta, folheou algumas das cartas que com aquela companheira havia trocado tentando encontrar nelas um outro riso daquela mulher, um riso-antídoto para aquele de há pouco. Tudo em vão. A dor aumentava e nada do que lia parecia remediar a situação. Ao contrário, agora para ele todos os risos que se podiam entrever naquelas linhas lhe pareciam sarcásticos demais. Fulminado pela dor - tanto a que lhe atingia o estômago, como a que provinha da recém descoberta da sua ingenuidade diante do sarcasmo - abriu então os álbuns de fotografias nos quais ambos estavam juntos. E para sua surpresa também ali não conseguiu enxergar nela nenhum sorriso livre do tom daquele de depois do jantar. Fechou os álbuns, desligou a TV, guardou as cartas e tentou, sem mais nada à mão, fechar os olhos e imaginá-la: absorto pelas formas das imagens do pensamento, sentiu que a dor de estômago se aplacava, que o sono estava voltando e que o sorriso dela tinha tomado os tons singelos e atraentes de tempos outros: não havia mais sarcasmo, não havia mais agressão. No entanto, acabou por se dar conta de que todos aqueles sorrisos, os sarcásticos quanto os ternos, não eram senão trapaças: trapaças do jogo das sensações e das reminiscências, daquilo que foi vivido e do que se imaginou que viveu, do que é a todo instante lembrado e do que é para todo o sempre esquecido - ainda que um tal esquecimento possa sempre estar presente na boca do estômago.

Imagem: Eve Arnold. Foto da atriz Joan Crawford em 1959, Los Angeles, EUA.

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