Da Ética estão disponíveis
hoje nas livrarias várias traduções ao italiano, mas nenhuma acompanhada do texto
original latino. E a filosofia tem em comum com a poesia o vínculo
indissolúvel e quase "musaico"[1]
que a liga à língua original (não importa se materna ou adquirida). Isso não
apenas porque, como já se disse, a terminologia – tão importante na filosofia –
é algo como o momento poético do pensamento, mas também, e sobretudo, porque a
operação que a filosofia realiza diz respeito acima de tudo à linguagem, é um
caminho na língua, através da língua e em direção à língua. Por isso, ler
filosofia sem nem ao menos a possibilidade de verificação no texto ao lado é
simplesmente impossível.
É nessa perspectiva que devemos
olhar para o latim de Spinoza, aparentemente tão resignado e escolástico, que
estudos recentes mostram estar repleto de sintagmas terenzianos[2] – portanto,
cômicos e de registro baixo. Esse latim não é de modo algum redutível a uma
língua instrumental – a língua dos doutos europeus, por certo mais acessível
que o português (provável língua materna do filósofo, mesmo se nos exemplos de Compendium Hebraicae linguae ele parece
preferir recorrer ao ladino, o espanhol falado pelos sefarditas) e o holandês,
esta que, ainda assim, Spinoza utiliza no Breve
tratado. Gilles Deleuze certa vez comparou o latim de Spinoza a uma "embarcação
sem idade" que, imperturbável, segue o eterno e incomparavelmente sereno
rio de seu pensamento. Não é assim (é o próprio Deleuze a sugerir). A língua
aparentemente neutra da Ética está em
relação de absoluta intimidade com a operação de pensamento que nela se
realiza; operação da língua e operação do pensamento são, aliás, de algum modo
discerníveis. Mas de que operação se trata?
O que define a operação mais
própria do pensamento de Spinoza, seu gesto característico, é que ele se
assemelha de maneira singular a uma inoperosidade, a um desativar, a um
aquietar. O próprio Spinoza chama essa inoperosa operação acquiescentia in se ipso e a define "uma alegria nascida
disso, que o homem contempla a si mesmo e a sua potência de agir". Já se
sugeriu que Spinoza poderia aí ter sido influenciado por Uriel da Costa, que
com frequência usa o adjetivo descansada[3] a
respeito da alma. É mais provável que nessa plena contemplação da própria
potência se possa escutar um eco da menuchah
hebraica, do descanso sabático de Deus depois da obra da criação. Filão já
havia observado que a inoperosidade (anapausis,
Paulo dirá Katapausis ou sabbatismos) de Deus não significa
apenas inércia ou apraxia, mas indica uma forma particular de agir. E é notório
que, na interpretação rabínica, no sábado estão proibidos apenas as obras
produtivas: uma obra de pura destruição seria permitida. A verdadeira festa não
é imobilidade e repouso; é, antes, o gesto que desativa e torna inoperosas
todas as obras dos homens. Spinoza chama "contemplação da potência” uma
inoperosidade interna, por assim dizer, à obra, uma praxe sui generis que consiste em expor e tornar inoperosa toda potência
de agir e de fazer. E essa inoperosidade, diz Spinoza, é a máxima felicidade
que a mente pode atingir.
Como pensar, então, uma acquiescentia in se ipsa da língua? Se
transpomos para a língua a definição spinoziana, teremos aí uma língua que
contempla a si mesma e a própria potência de dizer. Uma língua em estado de menuchah e sabatismo, que torna
inoperosa e expõe de maneira festiva todas as suas possibilidades de dizer. O
simples e escolástico latim de Spinoza (não por acaso uma língua não mais
falada, como o hebraico) é essa língua que não quer mais dizer nada, mas contempla a própria potência de dizer.
Como um templo em ruínas perdido em uma paisagem desabitada, ela não parece
dirigir-se a ninguém e nem mesmo pedir para ser escutada. Repousa em si mesma,
beata.
Por isso Spinoza pode escrever –
com uma intenção polêmica e ao mesmo tempo irônica, cujo objetivo talvez ainda
não tenha sido compreendido – que a “aquiescência" não se distingue da
glória (re vera... acquiescentia a gloria
non distinguitur). A "glória" que aí está em questão é o kabod da tradição hebraica, o terrível e
deslumbrante esplendor que acompanha as aparições de YHWH na Bíblia. A mente e
a língua em estado de aquiescência são "gloriosas”, mas se trata de uma
glória que perdeu seu caráter ativo e tremendo e agora é simplesmente a auréola
imperceptível que mostra sua inoperosidade. O latim da Ética é essa glória.
Giorgio Agamben. La lingua della gloria. In.: Baruch Spinoza.
Etica. Texto latino da edição crítica de Carl Gebhardt. Trad.: Gaetano
Durante. Prefácio: Giorgio Agamben. Macerata: Neri Pozza, 2014. pp. 7-9.
[1] N.T.: Referente às musas.
[2] N.T.: Trata-se de uma
referência a Terentianus, poeta
latino nascido na Mauritânia que viveu provavelmente no final do século II d.c..
Escreve três livros importantes no que diz respeito à gramática latina: De letteris, De syllabis, De metris. No
primeiro, trata da escritura e pronúncia das vogais e consoantes, no segundo
retoma a temática do primeiro e acrescenta um estudo sobre os ditongos e
sílabas e no terceiro, incompleto, expõe a teoria da métrica e breves noções de
prosódia.
[3] N.T.: Em português no
original.
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