terça-feira, 20 de setembro de 2011

Parágrafo dos moribundos



Há pouco vi um cão moribundo. Suas ancas decaídas, seu pelo sujo, seu movimentar-se lento e sofrido pela doença que lhe aflige, causaram-me uma espécie de mal estar. Pensava na morte e no adeus, no despedir-se das proximidades que logo tornar-se-ão distancias. A morte é sem qualquer dignidade. Ainda naquelas ruas onde hoje encontrei o cão, porém num outro tempo, eu por ali passara acompanhando uma moribunda. Era seu desejo talvez dar adeus às suas coisas, voltar para suas proximidades, àquilo que para ela eram os artefatos das suas histórias, das suas angústias, das suas lembranças da vida. Acho que ela buscava a despedida das trivialidades do cotidiano de outrora, porém, tenho a convicção de que ela sabia que por trás do aceno trivial que daria às suas coisas estava a infinita separação. Do hospital seguíamos de ambulância, ela e eu, para seu antigo lar. E naqueles instantes sabíamos, ela e eu, que nossa conversa quase faltante, nossa conversa de troca de olhares, nossa conversa infinita que se cumpria em segundos, era talvez a última e talvez o nosso adeus. E foi vendo o cão e rememorando aquele fim de tarde no qual mais um adeus acontecia que me lembrei de outras despedidas e, também, do pequeno texto de Borges sobre a despedida e seu adeus: "Decirse adiós es negar la separación, es decir: Hoy jugamos a separarnos pero nos veremos mañana. Los hombres inventaron el adiós porque se saben de algún modo inmortales, aunque se juzguen contingentes y efímeros." Da ironia borgeana acabei não escapando, afinal, do cão àquela estimada pessoa em trânsito para o adeus, nada mudava muito. Nenhuma dignidade espera-nos; nenhuma duplicação do corpo exposto à morte é capaz de revelar um sentido para as coisas além daquele vazio que sabemos ser uma constante na vida. A morte, caro Borges - e sei que sabias bem -, já está antes do fim, antes do adeus. Claro que a ironia é também em relação à memória; claro que o adeus dos efêmeros e a eternidade dos reencontros faltantes são apenas partes da mesma sensação que, creio eu, compartilhei com Borges ao ver aquele cão hoje pela manhã. Porém, não nos é permitido pedir nada na separação. Des-peço, des-pedimo-nos, entregamo-nos às ironias que nos competem: ora à vida, ora à morte.

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