Giorgio Agamben
Cada
um de vocês deve ter feito experiência daqueles momentos em que gostaríamos de
ler, mas não conseguimos, em que nos obstinamos folhando as páginas de um
livro, mas ele literalmente cai das mãos.
Nos
tratados sobre a vida dos monges, isso era, por excelência, o risco ao qual o
monge sucumbia: a acídia, o demônio meridiano, a tentação mais terrível que
ameaçava os homines religiosi, manifesta-se, antes de tudo, com a
impossibilidade de ler. Gostaria de sugerir-lhes prestar atenção nos seus
momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo cai de suas
mãos, pois a impossibilidade de ler lhes diz respeito tanto quanto a leitura,
e, talvez, é tão ou mais instrutiva do que esta.
Há
uma primeira e mais radical impossibilidade de ler que, até não muitos anos,
era extremamente comum. Refiro-me aos analfabetos, esses homens muito
rapidamente esquecidos que há apenas cento e cinquenta anos eram, ao menos na
Itália, a maioria. Um grande poeta espanhol do século XX dedicou um livro de
poesias ao analfabeto, por quien yo escribo. É importante compreender o
sentido desse “para”[1]:
não tanto, ou não somente, “para que o analfabeto me leia”, visto que, por
definição, não poderá fazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia
testemunhar por aqueles que no jargão de Auschwitz chamavam-se os muçulmanos,
isto é, aqueles que não podiam nem teriam podido testemunhar, pois, pouco
depois de seu ingresso no campo, tinham perdido toda consciência e toda
sensibilidade.
Gostaria
que vocês refletissem sobre o estatuto especial desse livro que, na sua
essência, é destinado a olhos que não o podem ler e foi escrito por uma mão
que, em certo sentido, não sabe escrever. O poeta ou o escritor que escrevem
para o analfabeto tentam escrever aquilo que não pode ser lido, colocam no
papel o ilegível. Mas, exatamente por isso, tornam a sua escritura mais
interessante do que a que foi escrita somente para quem sabe ler.
Há
pois um outro caso de não leitura a respeito do qual gostaria de lhes falar.
Refiro-me aos livros que não encontraram aquilo que Benjamin chamava a hora da
sua legibilidade, que foram escritos e publicados mas estão – talvez para
sempre – à espera de ser lidos. Conheço, e cada um de vocês, penso, poderia
nomear alguns, livros que mereciam ser lidos e não o foram, ou foram lidos por
muito poucos leitores. Qual é o estatuto desses livros? Penso que, se esses
livros eram verdadeiramente bons, não se deve falar de uma espera, mas de uma
exigência. Esses livros não esperam, mas exigem ser lidos, mesmo se não o foram
e se jamais o serão. A exigência é um conceito muito interessante que não se
refere à esfera dos fatos, mas a uma esfera superior e mais decisiva, cuja
natureza deixo a cada um de vocês especificar.
Mas
agora gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que se ocupam de
livros: deixem de olhar para os infames – sim, infames são classificados os
livros mais vendidos e, presume-se, mais lidos – e, por sua vez, tentem
construir na sua mente uma classificação dos livros que exigem ser lidos.
Somente uma editora fundada sobre essa classificação mental poderia fazer sair
o livro da crise que – ao menos pelo que ouço dizer e repetir – está
atravessando.
[1] N.T.: A partir desse trecho, Agamben joga com o
significado de “per”: “para” e “por”.
Na tradução, optei por manter sempre o termo “para”, já que o sutil jogo
operado em italiano deixa-se ver também em português.
Texto publicado no jornal La Repubblica no dia 08/12/2012 (na página 56). Trata-se de um trecho da intervenção de Agamben numa mesa redonda a respeito do livro Leggere è un rischio, de Alfonso Berardinelli. O debate aconteceu em Roma durante a 11ª Feria Nazionale della Piccola e Media Editoria: Più libri, più liberi. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Dedicatória feita por José Bergamín a Murilo Mendes no exemplar de El pozo de la angustia, que pertencia ao poeta mineiro.
3 comentários:
Um livro não é escrito para ser lido. Um livro é momento que se registra. Pouco importa presença ou não de expectação. Expectar fica em dependência do resto de possíveis leitores. Torna-se leitor quem desce ou consegue descer ao nível do encontro. Aqui se arquivou algo, além da intencionalidade do fenômeno. Este algo terá presença na intimidade casual de um alguém, naquela oportunidade. Impendido por razões além da lógica que reascende o dizer. O dito na escritura alberga-se, restado em repouso. Resta em repouso por detrás daquilo que se deixou compreender de um desconhecido Quê em qualquer outro alguém.
Gostaria de ler o texto todo, especialmente o último, que fala sobre a tradição oral e a literatura , é lindo!
Começa assim: "Vocês terão compreendido que me refiro à oralidade".. Todo o início faz mais sentido lendo este último parágrafo.
Gostaria muito que enviasse , pode ser?
Obrigada, Claudia
Caríssimo, acredito que aquilo que Agamben ressalta é o "por", não escrever para alguém, mas por alguém, no lugar de, na impossibilidade criar uma possibilidade por vir, entende? deixo um abração! Davi.
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