Uma disformia resiliente: eis, talvez, uma síntese explicativa do hipster. Em face à forma do ativista político-cultural das antigas (e mortas) esquerdas, o hipster apresenta-se como uma deformação ético-estilística. Os esquerdistas de outrora "ultrajavam" a própria apresentação de si, tinham um descaso irrisório com as vestimentas (era coisa insignificante), estabeleciam códigos linguísticos para ludibriar as polícias secretas, no geral, todas atitudes que visavam uma ação (por vezes ingênua, também é preciso frisar) na conjuntura política, um engajamento no e por um mundo, por ideais de destruição e ruptura com as supostas lógicas da pequeno-burguesia e das sociedades de consumo então surgentes. O hipster, por sua vez, também está "à esquerda", porém, da rua Augusta - e, em São Paulo, a galeria Ouro Fino ou outras tantas lojas descoladas são o ateliê de criação de sua posição política, ou melhor, de seu look. Ele cria uma apresentação impecavelmente desleixada e incansavelmente procura ser um "sacador": suas tiradas são sempre as melhores, seu humor é sempre o mais refinado e cáustico, seu posicionamento estético é tão indestrutível que a ele é autorizado trafegar por todos os gostos - em música, seu habitat costumeiro, é capaz de louvar Amado Batista, Claudinho e Buchecha, Os Menudos, obviamente, com má consciência e desde o alto de seus púlpitos escolásticos (a partir dos quais dão sermões sobre o último desejo de Ian Curtis), como um biólogo que observa camundongos em seu laboratório - e, com isso, ser hype, além de, no mesmo instante (provavelmente quando lê alguma crítica ao seu "gosto" ou quando sente a irrefreável necessidade de "representar" - que, é preciso admitir, é sua verdadeira vocação), levantar argumentos refinados da última revista londrina ou novaiorquina do circuito cult-indie - claro, com tiradas "exemplares" para o seu crítico. No bar sujo da moda, os hipsters discutem filosofia e, no mesmo papo, acabam divagando sobre a última visitinha ao D.O.M. ou sobre quando buscaram cocaína em alguma bocada perigosa (são, na maioria das vezes, leitores de prefácios, para não dizer de orelhas - ou, aliás, "ouviram" dizer -, ainda que haja outra variante, o hipster acadêmico - ainda por ser analisado -, que não se enquadra nessa regra mas que, mesmo assim, não deixa o hipsterianismo). A vontade de "representar-se" como "esquerda", como alguém que, como seus proteticamente instituídos antepassados, os esquerdistas militantes, vivia em disparate por tentar "revolver" um mundo, é apenas "autopromotiva" (o hipster é a foma do ativista parodiada, simplesmente) e a marca nefasta do ser ele apenas um espectro direitista. De fato, o que pretende é ser não reconhecido, mas quase como adorado, já que o mainstream é muito pouco para ele. No entanto, eis que a ele se apresenta um paradoxo: como ser adorado sem ser adorado? Porque adoração pressupõe que muitos gostem dele e, se assim acontecer, o que seria de sua exclusividade "sacadora", intelectual, estética etc.? (É difícil ser direita hoje, de cara lavada*...) Mas o paradoxo resolve-se na sua resiliência. Ele, ao contrário das postulações de suas formas, modos e posturas, não quer se entregar à vida disparatada dos ativistas de outros tempos, não quer "revolver" nada, não quer lutar para mudar nada, não quer resistir a nada. Quer somente se representar. Ele é resiliente: aceita tudo para poder negar tudo e, assim, continuar aceitando tudo - desde que sua representação permaneça incólume. Assim, o hipster faz-se, sem pudores, a encarnação barata* da mercadoria.
Imagem: Francisco de Goya. No se puede mirar. 1814-1824.
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