O tempo dos ventos fortes, dos tempos torpes, das musas estilhaçadas. Hoje foi como abrir a cortina do quarto de hóspedes pela primeira vez em anos, como que a sentir o cheiro velho, ocre, nefasto, que vinha da fricção das corrediças da janela já há muito emperrada. Esperava alguém para oferecer a cama, esperava a visita anunciada pela quiromante, que traria novamente o cheiro do outono, das flores secas, das folhas amarelas. A irremediável sensação de sentir o tempo correndo em minhas veias vinha em conjunto com o vento e a luz da manhã que invadia aquele quarto de decoração kitsch, cujas paredes armazenavam fungos testemunhas dos amantes que naquela velha cama de viúva (e os nomes populares às vezes salvam-nos das mazelas dos detalhes técnicos) se deitaram e, entorpecidos, amaram-se só por um instante. E o passado, à luz do sol-centauro de dezembro, cintilou. Quírion, tu que tanto zelaste por Jasão, não conseguiste fazê-lo ver que toda sua razão, toda sua destreza em tomar o velo de ouro, não seria páreo para a irracionalidade daquela mãe distante pela qual o tolo argonauta se apaixonara; tu que te desdobras entre o animal e o homem, entre a ebriedade e a sobriedade, entre a cultura e a barbárie, sabes, desde sempre, que se desdobrar é inútil e que o tempo de uma vida é a coleção de todos os tempos possíveis; nada há de puro, senão o puro contágio entre tudo. É, grande centauro, mesmo teu pai - a quem os grosseiros romanos chamavam Saturno e lhe dedicavam um dia de homenagem, o mesmo dia em que o deus absconditus, também das imediações do Mediterrâneo, escolheu para descansar após ter criado um universo - seria incapaz de sair puro dos ciclos de tempo que aquelas corrediças mal engraxadas fizeram-me entrar; é, Quírion, os anéis que prendem teu pai mostram o paradoxo por excelência: a infinitude do tempo. E foi, penso agora - com a memória contagiada pelos cheiros quase nauseabundos e pelo frescor da manhã centáurica -, naquele quarto de hóspedes que talvez tenha ficado trancafiado um tempo meu, o qual, apenas neste instante - e, por isso, sempre efêmero -, sai para passear à luz do sol e reencontrar, com cheiros e imagens, outros tempos meus que à porta daquele quarto tanto bateram querendo entrar...
Imagem: Anônimo Flamengo. Painel com Centauro. 1160. Musée du Louvre, Paris.
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