ao amigo C.C.
Errar: eis a função humana fundamental (se é que de fundamentos é possível falar, ainda mais ao animal de voz articulada; e não seria esse eis um ecco, ou um eco, portanto uma ausência-presença?). Erra-se assim, de modo indeterminado; erra-se como erramos; erra-se como é impossível determinar o valor de Pi. Caminho tortuoso, o erro não é o certo do deus sem nome que deita suas letras em linhas tortas: não há linhas, não há sem nome, há só silêncio da linguagem. A matemática, dita ciência que quer dizer de modo exato, erra por excelência e é tão somente vontade de valor. Não há números capazes de serem ditos enquanto valor (é o precário e o impossível - aquilo a que Bataille já gritava nos fundos da livraria na rua Gay Lussac), assim como as letras não dizem nada de per se. E o delírio dos cabalístas está justamente na tortuosa assimilação desses completos sem-sentido àquilo que seria plenitude de sentido: deus. E é também a partir do limiar da religião de Moisés e da religião inventada com base nos delírios do Nazareno que uma figura, uma imagem, do erro cria corpo: Ahsverus, o judeu errante. Como lembra Euclides da Cunha, ele é a imagem daqueles à margem da história. Não por que estes se encontram num eterno presente, ou num eterno paraíso, ou num eterno inferno, mas, ao contrário, por que a história lhes é a morada à margem - e, por isso, são ditos os homens. O não-sentido da História - cujo Sentido talvez tenha sido um dos maiores delírios idealistas - é o que nós, meros sertanejos, não nos cansamos de querer esquecer. Às voltas com o tempo, essa auto-afeição de nós mesmos que também insistimos em usar como vetor de sentido, resta-nos apenas digerir a história que nos está à margem e olhar para os rodopios e espirais - essas figuras matemáticas às quais atribuímos teoremas numéricos na tentativa de encontrar um Sentido - do rio que leva o errante ao seu não-destino, ao seu acerto que nunca chega. Erramos como a máquina do tempo, nas suas frações imperceptíveis e nas suas impossíveis representações; erramos como a indeterminação do erra-se; erramos como as nuvens que passam em suas formas impossíveis; erramos nas letras e nos números; erramos e, como lembra Dante, talvez só nos reste lançar um grito, um ai! (tal qual Adão ao ser expulso do paraíso), de agonia por termos entrado nesta vida.
Imagem: Miniaturista alemão. Jardim das delícias (hortus deliciarum). 1180. Bibliothèque Nationale, Paris.
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