domingo, 17 de fevereiro de 2013

O que ensina à política a decisão de Ratzinger



Giorgio Agamben

A decisão de Bento XVI deve ser considerada com extrema atenção por quem quer que se importe com os destinos da política da humanidade.

Cumprindo a “grande recusa”, ele deu provas não de vileza, como Dante talvez injustamente escreveu de Celestino V, mas de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplar. De fato, deve ser evidente para todos que as razões invocadas pelo Pontífice para motivar sua decisão, em parte certamente verdadeiras, não podem de modo algum explicar um gesto que na história da Igreja tem um significado totalmente particular. E se lembrarmos que em 4 de julho de 2009, Bento XVI, como prova de que a decisão havia sido meditada, tinha depositado exatamente sobre a tumba de Celestino V, em Sulmona, o pálio que recebera quando de sua investidura, tal gesto adquire todo seu peso.

Por que essa decisão se mostra hoje para nós como exemplar? Porque ela chama a atenção de modo claro para a distinção, da qual as nossas sociedade parecem ter perdido toda consciência, entre dois princípios essenciais da nossa tradição ético-política: a legitimidade e a legalidade. Se a crise que a nossa sociedade está atravessando é tão profunda e grave, é porque ela não coloca em questão apenas a legalidade das instituições, mas também a sua legitimidade; não apenas, como com muita frequência se repete, as regras e as modalidades de exercício do poder, mas o próprio princípio que o funda e o legitima.

Hoje, os poderes e as instituições não são deslegitimados porque caíram na ilegalidade; ao contrário, é verdade justamente o oposto, isto é, que a ilegalidade está tão difundida e generalizada porque os poderes perderam qualquer consciência da sua legitimidade. Por isso é vã a crença de poder afrontar a crise das nossas sociedades por meio da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito. De fato, ao pretender legiferar sobre tudo, a hipertrofia do direito exibe, por meio de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial. Ao procurar assegurar por meio do direito positivo a legitimidade de um poder, a tentativa da modernidade de fazer coincidir legalidade e legitimidade é, como mostra o irrefreável processo de decadência no qual entraram as nossas instituições democráticas, totalmente insuficiente. As instituições de uma sociedade permanecem vivas somente se ambos os princípios (que, na nossa tradição, também receberam o nome de direito natural e direito positivo, poder espiritual e poder temporal) permanecem presentes e nela agem sem jamais pretender coincidir.

Por isso o gesto de Bento XVI é tão importante. Tal homem, que era o chefe da instituição que tem o mais antigo e representativo título de legitimidade, com seu gesto colocou em questão o próprio sentido desse título. Diante de uma cúria que, esquece-se totalmente da própria legitimidade e persegue obstinadamente as razões da economia e do poder temporal, Bento XVI escolheu usar apenas o poder espiritual no único modo que lhe pareceu possível, isto é, renunciando ao exercício do Vicariato de Cristo. Desse modo, a própria Igreja foi colocada em questão desde suas raízes. Não sabemos se a Igreja será capaz de se aproveitar dessa lição; mas seria certamente importante que os poderes laicos, a partir de tal lição, encontrassem uma oportunidade para novamente se interrogar sobre a própria legitimidade. 

Texto publicado no jornal La Repubblica, no dia 16 de fevereiro de 2013. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

     

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