No tempo de uma breve nota, para a ocasião, analisamos esta proposição central para o cristianismo: verbum
caro factum est (no grego do texto do Evangelho de João: logo sarx
egeneto). É a fórmula da "encarnação" pela qual Deus se faz
homem, e essa humanidade de Deus é, decerto, o traço decisivo do cristianismo
e, por meio deste, um traço determinante para toda a cultura ocidental – até o
núcleo do seu "humanismo", marcando-o de maneira indelével, mesmo que
não o funde (por meio de uma inversão da "divinização" do homem, para
ser muito sumário).
O termo
"encarnação" é, na maior parte do tempo, compreendido no sentido da
entrada de alguma entidade não-corporal (espírito, deus, ideia) em um corpo e,
de modo mais raro, como a penetração de uma parte do corpo por uma outra parte,
ou por uma substância, de início estrangeira, como dizemos de uma "unha
encarnada"[1]. É
uma mudança de lugar, a ocupação de um corpo como um espaço de todo modo não
conatural à realidade dada, e tal sentido se estende facilmente até a noção de
“figuração” (o ator “encarna” o personagem). Segundo a acepção corrente (e que por certo não é a acepção teológica maior), a encarnação é um modo de
transposição e de representação. Estamos no espaço de um pensamento por meio do
qual o corpo está necessariamente em posição de exterioridade e de manifestação
sensível, de modo distinto de com uma alma ou com um espírito dado na
interioridade e não diretamente figurável.
É suficiente ler de maneira literal a fórmula do credo cristão
para se dar conta de que ela definitivamente não leva, por si só, a tal
interpretação. Se o verbo foi feito carne,
ou ainda se (em grego) ele tornou-se, ou
se ele foi engendrado ou se engendrou como carne, é porque não
teve que penetrar no interior dessa carne dada, de antemão, fora dele:
ele próprio o é que se tornou a carne. (A teologia despendeu esforços sobre-humanos
– é o caso de dizê-lo – para pensar esse devir
que produz, numa só pessoa, duas naturezas heterogêneas.)
*
Acrescentemos aqui –
com reservas para análises futuras – dois dados suplementares cuja lembrança
não é vã: com nuances, isto é, diferenças importantes entre os cristianismos
“católico”, “ortodoxo” e “reformado”, a maternidade humana do logos (com ou sem virgindade da mãe) e a
“transubstanciação” (real ou simbólica, pouco importa aqui) do corpo do Cristo
em pão e vinho de uma “comunhão” representam dois desenvolvimentos ou duas
intensificações da encarnação: de uma parte, dando ao homem-deus uma
proveniência já no corpo humano e no corpo da mulher (em um sentido, a
encarnação leva em conta os sexos), e, de outra parte, dando a seu corpo divino
a capacidade de se converter ainda em matéria inorgânica (fazendo assim ser
investida por “deus” tanto uma ínfima parcela do espaço-tempo, quanto uma
realidade – pão e vinho – como matéria de uma transformação da natureza pela
técnica humana).
*
Nesse sentido, o
corpo cristão é totalmente diferente de um corpo que serve como envelope (ou
prisão, ou tumba) para a alma. Ele não é outra coisa que o próprio logos que se faz corpo enquanto logos e segundo sua lógica mais própria. Esse corpo não é outra coisa que o “espírito”
saído de si mesmo ou de sua pura identidade para se identificar não ao homem mas como o homem (e a mulher, e a matéria). Mas essa saída de si do
espírito não é um acidente que lhe sobrevém (permitiremos aqui uma vasta elipse
ao redor da questão do pecado e da salvação, que provisoriamente podemos manter
afastada). Em si, o espírito cristão já está fora de si (é sua natureza trina),
e sem dúvidas é preciso voltar até o deus monoteísta comum às três religiões
“do Livro” para considerar que ele já é essencialmente um deus que se coloca
fora de si para e numa “criação” (que não é em nada uma produção, mas,
precisamente, o colocar-se-fora-de-si).
Nesse sentido, o deus
cristão (leia-se, monoteísta) é o deus que se
aliena: ele é o deus que se ateíza ou
que se ateologiza, caso possamos, por um
instante, forjar tais palavras. (Foi Bataille que, por sua conta, cunhou a palavra
“ateológico”.) A ateologia enquanto pensamento do corpo será, portanto, um
pensamento disto: que o “deus” se fez “corpo” enquanto esvaziou-se de si mesmo
(outro motivo cristão é o da kénôse paulina:
o devir-vazio de Deus ou seu “esvaziar-se de si”). O “corpo” torna-se o nome do
a-teu, no sentido de “nenhum-deus”.
Mas “nenhum-deus” quer dizer não a autossuficiência imediata do homem ou do
mundo, mas isto: sem presença fundadora. (De maneira mais geral, o “monoteísmo”
não é a redução dos numerosos deuses do “politeísmo” a “um”: sua essência é o
desaparecimento da presença, dessa presença que são os deuses das mitologias.) O “corpo” da “encarnação” é,
portanto, o lugar, ou mesmo o ter-lugar, o evento desse desaparecimento.
*
Nem prisão da alma
(corpo sensível ou caído), portanto, nem expressão de uma interioridade (corpo
“próprio” ou “significante”, o que eu nomearia, de fato, como o corpo
“revelado” de uma certa “modernidade”), nem, entretanto, presença pura
(corpo-estátua, corpo esculpido, corpo re-divinizado ao modo do politeísmo no
qual a estátua é ela mesma toda a presença divina): mas estendido, espaçamento,
separação do próprio desaparecimento. Corpo como verdade de uma “alma” que cai
(caída, veste caída: desnudada por uma fuga infinita).
Mas essa síncope que
o corpo é – e ele o é numa única
tomada, estendida entre um grito de nascimento e um suspiro de morte, uma
tomada que se modula num fraseado singular, o discurso de “uma vida” – não é
simplesmente uma perda: ela é, como na música, um batimento; ela junta (syn-)
cortando (-cope). Ela junta o corpo a si mesmo e os corpos entre si. Síncope da
aparição e da desaparição, síncope de enunciação e de sentido, ela é também
síncope de desejo.
Desejo não é tensão
melancólica em relação a um objeto faltante. É tensão em direção ao que não é
objeto: a saber, a própria síncope, enquanto ela tem lugar no outro e enquanto
ela só é “própria” sendo no outro e do
outro. Mas, o outro, entretanto, é apenas este outro corpo aqui, que na sua
separação com o meu toca ele próprio a separação, o corpo que dá acesso à verdade
sincopada.
Uma erótica
(socrática) atravessa aqui a encarnação (do Cristo) como por uma dobra interna
no logos: é essa erótica que quer que
o amor dos corpos leve a “conceber a beleza em si”, o que, em Platão, não é
nada mais que a tomada da – ou ser tomado pela – única das Ideias que seja por
si mesma visível[2].
Assim, um círculo
reconduz infindavelmente da visibilidade da Ideia – isto é, da manifestação do
sentido – à síncope da alma – ou seja, à fuga da verdade. Uma na outra e uma
pela outra, no corpo a corpo no qual o corpo treme, sofre e goza.
Jean-Luc Nancy. Verbum caro factum. In.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 125-128. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Caravaggio. A ceia de Emaús. 1606. Pinacoteca di Brera, Milano.
[1] N.T.: Ainda que em português
utilizemos o termo “unha encravada”, preferi manter a referência francesa
“ongle incarné”, uma vez que seu sentido não se perde na tradução e, ademais,
mantém a ideia que o autor quer trazer ao texto.
[2] Fedro, 250d; cf. também,
obviamente, o Banquete, 210a-211b.
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