O estado presente do
mundo não é o de uma guerra de civilizações. É uma guerra civil: é a guerra
civil intestina de uma cidade, de uma civilidade e de uma urbanidade que estão
se desenvolvendo até os limites do mundo e, de tal fato, até à extremidade de
seus próprios conceitos. Na extremidade um conceito se quebra, uma figura
distendida explode, uma lacuna aparece.
Também não é uma
guerra de religiões, ou então toda guerra dita de religiões é uma guerra
intestina ao monoteísmo, esquema religioso do Ocidente e, nele, de uma divisão
que se leva, também aí, às bordas e às extremidades: para o Oriente do Ocidente
e até à quebra e à fratura bem no meio do divino. Tanto que o Ocidente só teria
sido a exaustão do divino, em todas as formas do monoteísmo e que seja a exaustão
por ateísmo ou por fanatismo.
O que chega até nós
é uma exaustão do pensamento do Um e de uma destinação única do mundo: isso se
exaure em uma única ausência de destinação, em uma expansão ilimitada da
equivalência geral ou, ainda, por consequência, nos sobressaltos violentos que
reafirmam a onipotência e a onipresença de um Um tornado [devenu] – ou retornado [redevenu] – sua própria
monstruosidade.[1]
Como, por fim, ser séria, absoluta e incondicionalmente ateus sendo capazes de,
a partir disso, fazer sentido e verdade? Como não sair da religião – pois, no
fundo, isso já foi feito e as imprecações dos fanáticos contra isso nada podem
(elas são, isso sim, o sintoma, como o “deus” gravado no dólar) –, mas sair do
monolitismo de pensamento que permaneceu o nosso (simultaneamente, História,
Ciência, Capital, Homem e/ou Nulidade...). Isto é, como ir ao fundo do
monoteísmo e de seu ateísmo constitutivo (ou daquilo que poderíamos nomear seu
“ausenteísmo”) para aí apreender, ao contrário de seu esgotamento, aquilo que
seria capaz de se extrair do niilismo, de sair de seu interior? Como pensar o nihil sem transformá-lo em
monstruosidade onipotente e onipresente?
*
A lacuna que se
forma é a do sentido, da verdade ou do valor. Todas as formas de fratura e de ruptura
– social, econômica, política, cultural – têm nessa lacuna sua condição de
possibilidade e seu esquema fundamental. Não podemos ignorar: o desafio
primordial deve ser tomado como um desafio do pensamento, inclusive quando se
trata de suas implicações mais materiais (a morte por AIDS na África, ou a
miséria na Europa, ou as lutas pelo poder nos países árabes, por exemplo, entre
centenas de outros). A estratégia política e militar é necessária, a regulação
econômica e social também o é, a obstinação na exigência de justiça, a
resistência e a revolta também o são. Mas, entretanto, é preciso pensar sem
tréguas um mundo que saia, de maneira lenta e brutal ao mesmo tempo, de todas
as suas condições adquiridas de verdade, de sentido e de valor.
O enorme desequilíbrio
econômico, isto é, o desequilíbrio da vida, da fome, da dignidade, do
pensamento, é o corolário do desenvolvimento de um mundo que não mais se
reproduz (que não conduz mais nem sua própria existência nem seu próprio
sentido) mas que produz uma ilimitação [illimitation]
de sua própria globalidade, de modo que ela parece apenas poder implodir ou
explodir: pois no centro da ilimitação se alarga um fosso que não é outro senão
uma desigualdade do mundo em relação a si mesmo, uma impossibilidade de se dotar
de sentido, de valor ou de verdade, uma precipitação na equivalência geral que,
progressivamente, torna a civilização obra de morte. Não apenas uma forma de
civilização, mas a civilização, a história do homem talvez, e, talvez com ela,
a da natureza. E sem outra forma no horizonte, nem nova nem antiga.
De um lado e do
outro, queremos tapar a ferida com os curativos habituais: deus ou dinheiro,
petróleo ou músculo, informação ou encantamento, isso que acaba sempre por
significar uma forma ou outra de onipotência e de onipresença.
Onipotência e
onipresença são sempre o que requeremos da comunidade ou o que procuramos nela:
soberania e intimidade, presença a si sem falha e sem fora. Queremos o
“espírito” de um “povo” ou a “alma” de uma assembleia de “fiéis”, queremos a
“identidade” de um “sujeito” ou sua “propriedade”.
Não é suficiente,
longe disso, denunciar aqui um imperialismo e nele um fundamentalismo
(designações que, aliás, podemos colocar em quiasma). Essas denúncias são
justas, assim como é justo denunciar também o efeito de uma exploração e de uma
humilhação de populações inteiras, tornadas assim disponíveis para outras
explorações e instrumentalizações. Mas, por fim, desde 1939 as guerras não mais
aconteceram como afrontamentos no interior de um mundo que lhes dá lugar (mesmo
se tal lugar é desastroso): a guerra tornou-se guerra de um mundo que está
dividido, pois falta-lhe ser ou falta-lhe fazer aquilo que deve ser: um mundo,
isto é, um espaço de sentido, seja ele de sentido perdido ou de verdade vazia.[2]
Falar de “sentido” e
de “verdade” em meio à agitação militar, aos cálculos geopolíticos, aos
sofrimentos, às caras de indignação ou de mentira não é “idealista”: é atacar a
coisa mesma.
De lado a lado da
lacuna do mundo, expandida sob o nome de “globalização”, está a comunidade que
é separada e afrontada por si mesma. Antes, as comunidades puderam se pensar
distintas e autônomas, sem procurar sua assunção em uma humanidade genérica.
Mas desde que o mundo acabou por se tornar global, e desde que o homem acabou
por se tornar humano (é também nesse sentido que ele se torna “o último
homem”), desde que “a” comunidade se pôs a gaguejar uma estranha unicidade
(como se devesse haver apenas uma e como se devesse haver uma essência única do
comum), então “a” comunidade compreende que é ela que está escancarada –
abertura escancarada à sua unidade e à sua essência ausentes – e que ela
afronta nela mesma essa fenda. É comunidade contra comunidade – estrangeiro
contra estrangeiro e familiar contra familiar – rompendo si mesma ao romper as
outras que são, elas também, sem possibilidade de comunicação nem de comunhão.
O monoteísmo em si mesmo afrontado por si mesmo, como teísmo e como ateísmo, é,
por essa razão, o esquema de nossa condição atual.
Que tal afrontamento
consigo possa ser uma lei do ser-em-comum e seu sentido próprio, eis o que está
no programa do trabalho do pensamento – imediatamente acompanhado desse outro
programa: que o afrontamento, compreendendo a si mesmo, compreenda que a
destruição mútua destrói até mesmo a possibilidade do afrontamento e, com ela,
a possibilidade do ser-em-comum ou do ser-com.
Pois se o “comum” é
o “com”, o “com” designa o espaço sem onipotência e sem onipresença. No “com”
pode haver apenas forças que se afrontam em razão de seu jogo mútuo e das
presenças que se separam em razão do fato de que elas sempre têm de se tornar
outra coisa do que puras presenças (objetos dados, sujeitos confortados nas
suas certezas, mundo da inércia e da entropia).
Como tornar-se
capazes de olhar de frente para nossa lacuna e nosso afrontamento, não para
colocá-los à sombra, mas para deles extrair, apesar de tudo, a força de nos
afrontar, de início, com conhecimento de causa e, em seguida, de maneira a
realmente nos encarar – sem o que o afrontamento não passa de um turbilhão
indistinto e cego?
Todavia, olhar de
frente para um abismo e afrontar o olhar não são sem analogia, se o olhar do
outro não se abre senão ao insondável: para a estraneidade absoluta, para uma
verdade que não pode ser verificada, mas que, contudo, é preciso tomar.
Tripla estraneidade:
a do outro distante, a do mesmo afastado, a da história voltada ao
não-acontecido [inarrivé], talvez, ao
insustentável. É preciso tomar, contra uma moral “altruísta” muito
maliciosamente recitada, a severidade da relação com o estrangeiro, cuja
estraneidade é condição estrita de existência e de presença. E é preciso se
fixar naquilo que, diante de nós, expõe-nos à influência nebulosa de nosso
próprio devir e de nossa própria ruptura.
Não se trata de
culpabilizar o Ocidente nem de reivindicar um Oriente mítico: trata-se de
pensar um mundo em si e por si mesmo fraturado, por uma ruptura que provém do
mais remoto de sua história e que deve, de uma maneira ou de outra, para o pior
e talvez – quem disse? – para um pouco menos pior, constituir hoje seu sentido
obscuro, um sentido não obscurecido, mas do qual o obscuro é o elemento. É
difícil, é necessário. É nossa necessidade nos dois sentidos da palavra: é
nossa pobreza e nossa obrigação.
Jean-Luc Nancy. La Communauté affrontée. Paris: Galilée,
2001. pp. 11-20. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Giovanni Serodine. Encontro de São Pedro e São Paulo antes do martírio. 1625-6 Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma.
[1] Não é por acaso que as regiões do
mundo que até agora permanecem mais observadoras da guerra (sendo, de todo modo,
também partes da globalização, por sua crença ou empobrecimento) são aquelas
onde a dialética ou a desconstrução do monoteísmo não se realizou, seja por que
o cristianismo (aqui, latino-americano) nela estruturou o pensamento de modo
diferente (de maneira mais “pagã”, como se diz, ou menos “metafísica”), seja
por que o monoteísmo não penetrou pensamentos que lhe são heterogêneos (Índia
ou China não pensam, para dizer de forma grosseira, segundo o Um, nem a partir
da Presença). De um lado, o Ocidente e sua auto-exaustão se expandiram por toda
parte, e, de outro, essa disparidade sempre profunda de ao menos três mundos no
mundo certamente contém as chances e os riscos do futuro.
[2] Contraprova: quando Roma implantava
guerras de polícia nos confins do Império (como os Estados Unidos o fazem sem
cessar), Roma não era uma metade do mundo afrontando uma outra: o Império era
uma ordem à parte, os povos singulares formavam uma outra.
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