terça-feira, 15 de abril de 2014

Pequena carta em parágrafo


A J.L.F.
Um poeta português disse, certa vez, que a missão das folhas é definir o vento. Para qualquer lado que sopre, o vento, esse vento inscrito nas folhas, só pode ser dito na poesia. Os antepassados do poeta, em sinal de total submissão à poesia, deixaram-se guiar pelo vento e, atentos à missão das folhas, gravaram em cartas - essas folhas às vezes com destinatário, às vezes voltadas ao futuro - seus desejos pelo desconhecido. Os mapas, agora ilimitados e sem o taxativo non plus ultra de outrora, passaram então a ser o desenho do desejo por essa aventura naquilo que era então o indizível, o silêncio do além dos limites do mundo. Os portugueses eram assim iniciados no silêncio do oeste e, tal como Ulisses chorando à beira-mar - diante desse grande deserto de sal -, tomaram ciência da impossibilidade de uma cartografia geral, de uma escrita desse silêncio que se exige enquanto tal, para além de todo esboço e de todo desenho. Eles se deram conta de que esse silêncio, por mais que sempre paire sobre toda fala,  exige permanecer desconhecido, como o absolutamente outro, o ponto a partir do qual definir, a cada vez, o vento. Hoje, do convés de minha embarcação, olho ao horizonte e percebo o azul do céu tomar do mar os limites aos desejos. Tendo em mãos velhos mapas de portugueses, leio que "ler é sonhar pela mão de outrem" e, talvez, quando este pequeno mapa for lido, meu silêncio possa de algum modo permanecer um sonho possível. Mas porventura esta pequena carta não diga mais do que aquilo que cantava um outro navegante, não dos mares, mas dos morros: o velho Cartola: agora, olhando para esse horizonte, meus olhos falam o que não veem, mas neles você compreende o que quero dizer.
Imagem: Van Gogh. Barcos de pesca na praia de Saintes-Maries. 1888. Vincent van Gogh Museum, Amsterdam.

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