sexta-feira, 25 de abril de 2014

Prefácio em prosa


Falo a vocês, homens das antípodas,
falo de homem a homem,
com o pouco que em mim permanece do homem,
com o pouco de voz que me resta na garganta,
meu sangue está nas estradas, possa, possa ele
não gritar vingança!
A caça é certa, as bestas estão cercadas,
deixe-me falar com essas mesmas palavras
que tínhamos em comum -
pouco restam inteligíveis!

Virá um dia, é certo, da sede saciada,
estaremos além da lembrança, a morte
terá terminado o trabalho do ódio,
serei um buquê de urtigas aos seus pés,
- então, bem, saibam que eu tinha um rosto
como vocês. Uma boca que suplicava, como vocês.

Quando poeira, ou mesmo um sonho, entrava
no olho, esse olho chorava um pouco de sal.
E quando um mau espinho arranhava minha pele,
daí saía um sangue tão vermelho como o seu!
É certo, como vocês era cruel, tinha
sede de ternura, de poder,
de ouro, de prazer e de dor.
Como vocês eu era ruim e angustiado
sólido na paz, ébrio na vitória,
e titubeante, desvairado à hora da derrota!

Sim, eu era um homem como os outros homens,
nutrido de pão, de sonho, de desespero. E sim,
amei, chorei, odiei, sofri,
comprei flores e nem sempre
paguei meu aluguel. Domingo ia ao campo
pescar, sob o olhar de Deus, peixes irreais,
me banhava no rio
que cantava nos juncos e comia fritas
de noite. Depois, depois, ia me deitar
fadigado, o coração exausto e cheio de solidão,
pleno de piedade de mim, pleno de piedade do homem,
procurando, procurando em vão sobre um ventre de mulher
essa paz impossível que nós tínhamos perdido
outrora, num grande pomar onde florescia,
no centro, a árvore da vida...

Li como todos vocês os jornais, todos os livros,
e nada compreendi no mundo
e nada compreendi no homem,
ainda que com frequência chegava a afirmar
o contrário. E quando a morte, a morte veio, talvez
pretendi saber o que era ela mas, verdade,
posso lhes dizer nesta hora, ela entrou toda em meus olhos atônitos,
atônitos por tão pouco compreender
- vocês compreenderam melhor do que eu?

E todavia não!
eu não era um homem como vocês.
Vocês não nasceram nas ruas,
ninguém jogou no esgoto seus pequenos
como gatos ainda sem visão,
vocês não erraram de cidade em cidade
perseguidos pelos polícias,
vocês não conheceram os desastres da aurora,
os vagões de bestas
e o soluço amargo da humilhação,
acusados de um delito que vocês não cometeram,
de uma morte ainda sem cadáver,
mudando de nome e de rosto,
para não carregar um nome vaiado
um rosto que tinha servido a todo mundo
de escarrador!

Um dia virá, sem dúvida, quando o poema lido
se encontrará diante dos seus olhos. Ele não pede
nada! Esqueçam-no, esqueçam-no! É
só um grito, que não se pode colocar em um poema
perfeito, tenho então tempo de terminá-lo?
Mas quando vocês esmagarem esse buquê de urtigas
que tinha sido eu, em um outro século,
em uma história a vocês expirada,
lembrem-se apenas que eu era inocente
e que, assim como vocês, mortais naquele dia,
tivera, eu também, um rosto marcado
pela cólera, pela piedade e alegria,

um rosto de homem, simplesmente.

1942


Benjamin Fondane. Préface en prose. trecho de L'Exode (Super flumina Babylonis), publicado na antologia Le mal de fantômes. Edição organizada por Patrice Beray e Michel Carassou com a colaboração de Monique Jutrin. Paris: Éditions Verdier, 2006. pp. 149-153Também disponível no site do Instituto Fondane: http://fondane.net/2009/08/09/benjamin-fondane-l-exode-preface-en-prose/ (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Man Ray. Benjamin Fondane.

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