A unidade em si, a
intimidade sem fora: levando-se ao seu máximo de concentração, de penetração,
de recolhimento e de meditação (ruminação, retorno interminável à única
fundamental impossibilidade de "se" apreender), ela torna a si mesma fora
e torna-se então abertura, e, em seguida, saída, excesso, generosidade ou
heroísmo, mas, ainda mais longe, abandono, fuga, isto é, alienação, exclusão,
exílio.
Mas, segundo
uma persistência incessante, no seio desses valores demasiado e com frequência
colocados de maneira unilateral, do absolutamente um e íntimo: esse
absolutamente um e íntimo como aquilo que não cessa de se afirmar e de se
intensificar nesse pôr fora, fora de si, fora de tudo.
E, para começar: a
intimidade é sempre, de início e talvez sempre, absolutamente, intimidade com
um outro, intimidade entre intimidades, e não intimidade de alguém só em relação a si mesmo. O íntimo, superlativo do "interior" (já citamos Agostinho
dirigindo-se a Deus: "Interior intimo meo"), é um superlativo
que, por si mesmo, refere-se sempre a um comparativo: porque estou no máximo da
interioridade, o mais próximo de "mim mesmo", ou, ainda, o mais
próximo e também no mais secreto, "desse mundo", "da terra",
toco ainda mais: aquilo que, desde tal momento, toca-me a partir de um fora [ailleurs] que posso de modo indiferente considerar como "em" mim ou
"fora" de mim, como neste mundo ou fora dele, uma vez que toco o
limite. Ora, tocar o limite é também passá-lo, inevitavelmente. E só o passo
tocando em um outro – outra pessoa, outro ente, outro vivente, e mesmo a pedra
dura, cuja resistência opaca leva-me para mais longe fora de mim.
Toda intimidade é
"interior intimo meo". Sendo o mais profundo, ela é também
aquilo que, por sua vez, é sem fundo. Em Agostinho e, a partir dele, para uma
tradição muito longa, "Deus" terá sido o nome do sem-fundo. Tocar o
sem fundo é tocar aquilo que não se deixa tocar senão fugindo para mais longe -
numa hipérbole, em suma, da lei do tocar que quer que só toquemos através de uma
abertura; caso contrário, penetramos, mas se penetramos, é por que há aí alguma
substância: ora, aqui não há nada disso, há o incomensurável dessa fuga
infinita do fundo no fora, o fora [ailleurs] absoluto.
É esse tocar que
nomeamos "espiritual": o sopro que vem aflorar "o heterogêneo na
origem[1]".
O espírito vem tocar esse fora que é mais “fora” do que toda reunião acoplada
de “dentro/fora”: ele está mesmo fora do fora. Ele é fora de tudo: nada, isto
é, a realidade de toda coisa considerada em si, absolutamente, isto é, destacada
de tudo. Mas a coisa considerada absolutamente – como o pode ser um acorde
musical, uma nuance de cor, uma inflexão de voz, um rosto, um seixo, uma árvore
– absorve nesse “nada” a totalidade da consideração, transporta o espírito em
si, muda-o em som, em cor, em olhar ou em opacidade suave. Tal é a adoração:
intimidade desse transporte.
[1] J. Derrida, De l’esprit, Paris, Galilée, 1987, p.
176.
Jean-Luc Nancy. L'Adoration. (Déconstruction du christianisme, 2). Paris: Galilée, 2010. pp. 110-111. (Trad.: Vinícius N. Honesko)
Imagem: Francesco del Cairo. Maria Madalena em êxtase. 1650.
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