I. Fantasia e experiência
Nada pode dar idéia da dimensão da mudança ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela produz no estatuto da imaginação. Dado que a imaginação, hoje eliminada do conhecimento como sendo "irreal", era para a antiguidade o medium por excelência do conhecimento. Enquanto mediadora entre sentido e intelecto, que torna possível, no fantasma, a união de forma sensível e intelecto possível, ela ocupa, na cultura antiga e medieval, exatamente o mesmo lugar que a nossa cultura confere à experiência. Longe de ser algo irreal, o mundus imaginabilis tem a sua plena realidade entre o mundus sensibilis e o mundus intellegibilis, e é, aliás, a condição de sua comunicação, ou seja, do conhecimento. E, a partir do momento em que é a fantasia que, segundo a antiguidade, forma as imagens dos sonhos, explica-se a relação particular que, no mundo antigo, o sonho mantém com a realidade (como na adivinhação per somnia) e com o conhecimento eficaz (como na terapia médica per incubazione). Isto ainda é verdadeiro nas culturas primitivas. Devereus relata que os mohave (nisto não dissímeis das outras culturas xamânicas) crêem que os poderes xamânicos e o conhecimento dos mitos, assim como das técnicas e dos cantos que a eles se referem, são adquiridos no sonho. E não só: se viessem a ser adquiridos em estado de vigília, permaneceriam estéreis e ineficazes até que fossem sonhados: “assim um xamã, que me permitira anotar e aprender os seus cantos terapêuticos rituais, explicou-me que eu não teria igualmente poder de curar, pois não havia potencializado e ativado os seus cantos através do aprendizado onírico.”
Na fórmula em que o aristotelismo medieval sintetiza esta função mediadora da imaginação ("nihil potest homo intelligere sine phantasmate"), a homologia entre fantasia e experiência é ainda perfeitamente evidente. Mas, com Descartes e o nascimento da ciência moderna, a função da fantasia é assumida pelo novo sujeito do conhecimento: o ego cogito (é preciso notar que, no vocabulário da filosofia medieval, cogitare significava antes o discurso da fantasia que o ato da inteligência). Entre o novo ego e o mundo corpóreo, entre res cogitans e res extensa, não há necessidade de nenhuma mediação. A expropriação da fantasia, que daí decorre, manifesta-se na nova maneira de caracterizar a sua natureza: enquanto ela não era – no passado – algo de , mas era, sobretudo, a coincidência entre subjetivo e objetivo, de interno e externo, de sensível e de inteligível, agora é o seu caráter combinatório e alucinatório, que a antiguidade relegava ao plano de fundo, a emergir em primeiro plano. De sujeito da experiência, o fantasma se torna o sujeito da alienação mental, das visões e dos fenômenos mágicos, ou melhor, de tudo aquilo que fica excluído da experiência autêntica.
(AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. pp. 33-34.)
Nada pode dar idéia da dimensão da mudança ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela produz no estatuto da imaginação. Dado que a imaginação, hoje eliminada do conhecimento como sendo "irreal"
Na fórmula em que o aristotelismo medieval sintetiza esta função mediadora da imaginação ("nihil potest homo intelligere sine phantasmate"
(AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. pp. 33-34.)
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