segunda-feira, 31 de dezembro de 2007
domingo, 30 de dezembro de 2007
Tristeza
Hoje estou triste
Não com aquela tristeza que se liquefaz diante da supressão da angústia
Mas com algo mais,
Não sei,
Talvez algo além,
Uma tristeza do além
Não do além dos imaginários, mas do além dos aléns
Daquele além que não está além
Tampouco aquém, mas presente e sólido
Num ponto que transborda qualquer cronologia
Qualquer uma mesmo
Mesmo aquela fugidia e sórdida do hoje
Um mal-cheiro e um mal-estar da alma
Quiçá seja isso a tristeza
Um mal-cheiro anímico, forte e impactante como um golpe
Um golpe de amor, de rubor, de ódio, de angústia
Como qualquer golpe, doloroso, viscoso, pegajoso...
Nada do hoje, mesmo o mais pontual gesto, apaga o golpe da tristeza
Está lá, sempre lá, aquém e além
Instante, instante, instante...
Não com aquela tristeza que se liquefaz diante da supressão da angústia
Mas com algo mais,
Não sei,
Talvez algo além,
Uma tristeza do além
Não do além dos imaginários, mas do além dos aléns
Daquele além que não está além
Tampouco aquém, mas presente e sólido
Num ponto que transborda qualquer cronologia
Qualquer uma mesmo
Mesmo aquela fugidia e sórdida do hoje
Um mal-cheiro e um mal-estar da alma
Quiçá seja isso a tristeza
Um mal-cheiro anímico, forte e impactante como um golpe
Um golpe de amor, de rubor, de ódio, de angústia
Como qualquer golpe, doloroso, viscoso, pegajoso...
Nada do hoje, mesmo o mais pontual gesto, apaga o golpe da tristeza
Está lá, sempre lá, aquém e além
Instante, instante, instante...
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
Parábola e Reino
Giovanni Serodine
۞ O termo parábola vem do grego parabolē (Gleichnis, na tradução de Lutero). Este termo tem, nos evangelhos, uma função a tal ponto importante em referência aos discursos de Jesus – enquanto ele “fala em parábolas” (Mt 13, 10) – que é dele que deriva nas línguas romanas (provençal, francês e italiano; o espanhol hablar deriva por outro lado de fabulari) o verbo que significa “falar” (do baixo latim parabolare). O termo correspondente, em hebraico, é mašal, que quer dizer “comparação, provérbio”. Uma correspondência entre a estrutura da parábola e o reino messiânico está já contida de maneira implícita na passagem de Mt (13, 18-19) na qual o “discurso do reino” (logos tēs basileias) é aquele que torna necessário falar por parábolas. A parábola do semeador, que se trata então de explicar, concerne precisamente a este logos, na medida em que os grãos representam a própria linguagem (na exegese de Marcos, 4, 13: “o semeador semeia o logos”). Na série de parábolas que seguem, o reino messiânico é comparado a um campo onde crescem juntos o bom grão e o joio, a um grão de mostarda, à levedura, a um tesouro escondido num campo, a um mercador à procura de uma pérola, a uma rede jogada ao mar. Jungel observou a esse respeito que “o reino de Deus se exprime na parábola enquanto parábola” (Jungel, 385), de tal maneira que vêm expostas juntas a diferença e a proximidade entre o reino de Deus e este mundo. Na parábola, a diferença entre o signum e a res significata tende então a se anular, sem, no entanto, desaparecer completamente. Nesse sentido, pode-se dizer que – como na parábola do semeador de Mateus – as parábolas messiânicas são sempre parábolas sobre a linguagem, isto é, sobre a representação do reino, no qual ao ser colocados um ao lado do outro (para-ballō), não são tanto o reino e seu termo de comparação, mas também o discurso sobre o reino e o próprio reino, de tal maneira que a compreensão da parábola coincide com aquela do logos tēs basileias. Na parábola messiânica o signum e a res significata se aproximam, porque nela a coisa significada é a própria linguagem. E este é sem dúvidas o sentido – mas também a inevitável ambigüidade – da parábola kafkiana, e de toda parábola. Se, na parábola, o que deve advir é uma passagem além da linguagem, e se isso só é possível, segundo Kafka, fazendo-se linguagem (“se vós obedeceis às parábolas, tornar-vos-ei, vós mesmos, parábolas”), tudo depende do momento e da maneira em que o como é abolido.
Decisivo, nessa perspectiva, é que Paulo não apenas se serve raramente de parábolas no sentido técnico, mas o como não – que define para ele a klēsis messiânica – não compara, como vimos, dois termos distintos, mas coloca em tensão cada ser e cada termo consigo mesmo. O evento messiânico – que, para Paulo, já se produziu com a ressurreição – não se exprime como uma parábola na parábola, mas é presente en tō num kairō enquanto revogação de toda condição mundana que ela libera dela mesma para permitir o seu uso.
۞ O termo parábola vem do grego parabolē (Gleichnis, na tradução de Lutero). Este termo tem, nos evangelhos, uma função a tal ponto importante em referência aos discursos de Jesus – enquanto ele “fala em parábolas” (Mt 13, 10) – que é dele que deriva nas línguas romanas (provençal, francês e italiano; o espanhol hablar deriva por outro lado de fabulari) o verbo que significa “falar” (do baixo latim parabolare). O termo correspondente, em hebraico, é mašal, que quer dizer “comparação, provérbio”. Uma correspondência entre a estrutura da parábola e o reino messiânico está já contida de maneira implícita na passagem de Mt (13, 18-19) na qual o “discurso do reino” (logos tēs basileias) é aquele que torna necessário falar por parábolas. A parábola do semeador, que se trata então de explicar, concerne precisamente a este logos, na medida em que os grãos representam a própria linguagem (na exegese de Marcos, 4, 13: “o semeador semeia o logos”). Na série de parábolas que seguem, o reino messiânico é comparado a um campo onde crescem juntos o bom grão e o joio, a um grão de mostarda, à levedura, a um tesouro escondido num campo, a um mercador à procura de uma pérola, a uma rede jogada ao mar. Jungel observou a esse respeito que “o reino de Deus se exprime na parábola enquanto parábola” (Jungel, 385), de tal maneira que vêm expostas juntas a diferença e a proximidade entre o reino de Deus e este mundo. Na parábola, a diferença entre o signum e a res significata tende então a se anular, sem, no entanto, desaparecer completamente. Nesse sentido, pode-se dizer que – como na parábola do semeador de Mateus – as parábolas messiânicas são sempre parábolas sobre a linguagem, isto é, sobre a representação do reino, no qual ao ser colocados um ao lado do outro (para-ballō), não são tanto o reino e seu termo de comparação, mas também o discurso sobre o reino e o próprio reino, de tal maneira que a compreensão da parábola coincide com aquela do logos tēs basileias. Na parábola messiânica o signum e a res significata se aproximam, porque nela a coisa significada é a própria linguagem. E este é sem dúvidas o sentido – mas também a inevitável ambigüidade – da parábola kafkiana, e de toda parábola. Se, na parábola, o que deve advir é uma passagem além da linguagem, e se isso só é possível, segundo Kafka, fazendo-se linguagem (“se vós obedeceis às parábolas, tornar-vos-ei, vós mesmos, parábolas”), tudo depende do momento e da maneira em que o como é abolido.
Decisivo, nessa perspectiva, é que Paulo não apenas se serve raramente de parábolas no sentido técnico, mas o como não – que define para ele a klēsis messiânica – não compara, como vimos, dois termos distintos, mas coloca em tensão cada ser e cada termo consigo mesmo. O evento messiânico – que, para Paulo, já se produziu com a ressurreição – não se exprime como uma parábola na parábola, mas é presente en tō num kairō enquanto revogação de toda condição mundana que ela libera dela mesma para permitir o seu uso.
Giorgio Agamben, Il Tempo che Resta. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. pp. 45-46. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
domingo, 23 de dezembro de 2007
Parfum exotique
Quand, les deux yeux fermés, en un soir chaud d'automne,
Je respire l'odeur de ton sein chaleureux,
Je vois se dérouler des rivages heureux
Qu'éblouissent les feux d'un soleil monotone;
Une île paresseuse où la nature donne
Des arbres singuliers et des fruits savoureux;
Des hommes dont le corps est mince et vigoureux,
Et des femmes dont l'œil par sa franchise étonne.
Guidé par ton odeur vers de charmants climats,
Je vois un port rempli de voiles et de mâts
Encor tout fatigués par la vague marine,
Pendant que le parfum des verts tamariniers,
Qui circule dans l'air et m'enfle la narine
Se mêle dans mon âme au chant des mariniers.
(Charles Baudelaire. Les Fleurs du mal)
Je respire l'odeur de ton sein chaleureux,
Je vois se dérouler des rivages heureux
Qu'éblouissent les feux d'un soleil monotone;
Une île paresseuse où la nature donne
Des arbres singuliers et des fruits savoureux;
Des hommes dont le corps est mince et vigoureux,
Et des femmes dont l'œil par sa franchise étonne.
Guidé par ton odeur vers de charmants climats,
Je vois un port rempli de voiles et de mâts
Encor tout fatigués par la vague marine,
Pendant que le parfum des verts tamariniers,
Qui circule dans l'air et m'enfle la narine
Se mêle dans mon âme au chant des mariniers.
(Charles Baudelaire. Les Fleurs du mal)
sábado, 15 de dezembro de 2007
In the Realms of the Unreal
Em novembro de 1972 Nathan Lerner, um fotógrafo e designer que vivia em Chicago, abriu a porta do quarto no 851 Webster Avenue no qual tinha vivido por quarenta anos o seu inquilino Henry Darger. Darger, que tinha deixado o quarto alguns dias antes para se transferir para um albergue para pessoas idosas, era um homem tranqüilo, mas certamente perturbado. Tinha sobrevivido até então no limite da miséria lavando pratos em um hospital e os vizinhos certas vezes o escutavam falando sozinho, imitando uma voz feminina (uma menina?). Saia raramente mas, no curso de seus passeios, era visto procurando na sujeira como um mendigo. No verão, quando em Chicago a temperatura faz-se improvisamente tórrida, sentava na escada externa da casa, com o olhar fixo no vazio (assim o mostra a única fotografia recente). Mas quando Lerner, em companhia de um jovem estudante, entrou no quarto, achou-se diante de uma descoberta inesperada. Não tinha sido fácil percorrer o caminho entre os montes de objetos de todos os gêneros (novelos de barbantes, vasilhas vazias de bismuto, retalhos de jornais); mas, amontoado em um ângulo sobre um velho baú, havia uma quinzena de volumes datilografados encadernados à mão que continham uma espécie de romance de quase trinta mil páginas, com o título eloqüente In the Realms of the Unreal. Como explica o frontispício, trata-se da história de sete meninas (as Vivian girls), que comandavam a revolta contra os cruéis adultos Glandolinians, que escravizam, torturam, estrangulam e estripam as meninas. Mais surpreendente ainda, foi dar-se conta de que o solitário inquilino era também um pintor, que por quarenta anos tinha pacientemente ilustrado em dezenas e dezenas de aquarelas e painéis de carta por vezes com até três metros de comprimento o seu romance. Aqui paisagens idílicas, nas quais as meninas privadas, no gênero munidas de um pequeno sexo masculino, vagam absortas ou jogam entre flores e maravilhosas criaturas aladas (as serpertentes Blengiglomean), alternam-se (por vezes na mesma folha) com cenas sádicas de inaudita violência, nas quais os corpos das meninas são presos, espancados, destroçados e, por fim, abertos para deles extrair as vísceras ensangüentadas.
Aquilo que aqui nos interessa de maneira particular é o genial procedimento de composição de Darger. Uma vez que não sabia pintar nem mesmo desenhar, ele recorta imagens de crianças de álbuns de história em quadrinhos ou de jornais e as cola com uma pequena vela. Se a imagem é muito pequena, a fotografa e a aumenta conforme as suas necessidades. Ao fim, o artista dispõe de um repertório formular e gestual (variações seriais de uma Pathosformel que podemos chamar nympha dargeriana) que pode combinar como quiser (através de collage ou decalque) nos seus grandes painéis. Ou seja, Darger representa o caso extremo de uma composição artística unicamente por Pathosformeln, que produz um efeito de extraordinária modernidade.
Mas a analogia com Warburg é ainda mais essencial. Os críticos que se ocuparam de Darger sublinharam os aspectos patológicos da sua personalidade, que não teria jamais superado os traumas infantis e apresentaria traços indubitavelmente autistas. Muito mais interessante é indagar a relação de Darger com as suas Pathosformeln. Certamente ele viveu por quarenta anos totalmente imerso no seu mundo imaginário. Como todo verdadeiro artista, ele não queria simplesmente construir a imagem de um corpo, mas um corpo para a imagem. A sua obra, como a sua vida, é um campo de batalha em que o objeto é a Pathosformel “ninfa dargeriana”. Esta foi reduzida à escravidão pelos malvados adultos (frequentemente representados em vestes de professores, com toga e chapéu). Isto é, as imagens das quais é feita a nossa memória tendem, no curso da sua transmissão histórica (coletiva e individual), incessantemente a enrijecer-se em espectros e, portanto, trata-se de restituí-las à vida. As imagens estão vivas, mas, sendo feitas de tempo e de memória, a sua vida é sempre já Nachleben, sobrevivência, é sempre já ameaçada e pronta para assumir uma forma espectral. Liberar as imagens do seu destino espectral é a tarefa que tanto Darger quanto Warburg – no limite de um essencial risco psíquico – confiam, o primeiro, ao seu interminável romance, o outro, à sua ciência sem nome.
AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. pp. 19-22. Rapidamente traduzido por Vinícius Nicastro Honesko.
Aquilo que aqui nos interessa de maneira particular é o genial procedimento de composição de Darger. Uma vez que não sabia pintar nem mesmo desenhar, ele recorta imagens de crianças de álbuns de história em quadrinhos ou de jornais e as cola com uma pequena vela. Se a imagem é muito pequena, a fotografa e a aumenta conforme as suas necessidades. Ao fim, o artista dispõe de um repertório formular e gestual (variações seriais de uma Pathosformel que podemos chamar nympha dargeriana) que pode combinar como quiser (através de collage ou decalque) nos seus grandes painéis. Ou seja, Darger representa o caso extremo de uma composição artística unicamente por Pathosformeln, que produz um efeito de extraordinária modernidade.
Mas a analogia com Warburg é ainda mais essencial. Os críticos que se ocuparam de Darger sublinharam os aspectos patológicos da sua personalidade, que não teria jamais superado os traumas infantis e apresentaria traços indubitavelmente autistas. Muito mais interessante é indagar a relação de Darger com as suas Pathosformeln. Certamente ele viveu por quarenta anos totalmente imerso no seu mundo imaginário. Como todo verdadeiro artista, ele não queria simplesmente construir a imagem de um corpo, mas um corpo para a imagem. A sua obra, como a sua vida, é um campo de batalha em que o objeto é a Pathosformel “ninfa dargeriana”. Esta foi reduzida à escravidão pelos malvados adultos (frequentemente representados em vestes de professores, com toga e chapéu). Isto é, as imagens das quais é feita a nossa memória tendem, no curso da sua transmissão histórica (coletiva e individual), incessantemente a enrijecer-se em espectros e, portanto, trata-se de restituí-las à vida. As imagens estão vivas, mas, sendo feitas de tempo e de memória, a sua vida é sempre já Nachleben, sobrevivência, é sempre já ameaçada e pronta para assumir uma forma espectral. Liberar as imagens do seu destino espectral é a tarefa que tanto Darger quanto Warburg – no limite de um essencial risco psíquico – confiam, o primeiro, ao seu interminável romance, o outro, à sua ciência sem nome.
AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. pp. 19-22. Rapidamente traduzido por Vinícius Nicastro Honesko.
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
Dois poemas
Mirou
o horizonte
E viu
A nau
Ferindo o caos
E abrandando o calor
Com suas vestes pálidas
E a curiosidade
De espelhos e baralhos
Matou a poesia da gente nua.
E a fronteira se desfez
O sol
savana
Os pés
rachados
No chão rachado
Os orixás se vão
Pelo vão
Deixados pela cultura
Contra a cultura
Contra cultura enfiada goela abaixo
E a fronteira se desfez
Norte e sul
Colônias
Leste e oeste
Metrópoles
Rosa dos ventos
Que espalha a peste, o sangue
Da libertação ariana
Da sucessão do poder
Do domínio
Do extermínio
E a fronteira se desfez
A guerra
Frígida
O sangue
Cálido
A mata inóspita
O deserto lúgubre
O ouro líquido
A ganância sólida
Crianças atônitas
Bombas atômicas
E a fronteira se desfez
As Globos
Velocidade das informações
Um globo
muitas globalizações
Ansiosa pressa
Medo do terror
George. W.W.W.bush.com
Com permissão para matar
Em nome de Deus
Contaminando o mundo
E a fronteira se desfez
Minha terra
Tua terra
Pronomes
Possessões
Liberdade e propriedade
Ambições
Minha letra
Tua música
Nossa poesia
Real pronome
E a fronteira já não há.
o horizonte
E viu
A nau
Ferindo o caos
E abrandando o calor
Com suas vestes pálidas
E a curiosidade
De espelhos e baralhos
Matou a poesia da gente nua.
E a fronteira se desfez
O sol
savana
Os pés
rachados
No chão rachado
Os orixás se vão
Pelo vão
Deixados pela cultura
Contra a cultura
Contra cultura enfiada goela abaixo
E a fronteira se desfez
Norte e sul
Colônias
Leste e oeste
Metrópoles
Rosa dos ventos
Que espalha a peste, o sangue
Da libertação ariana
Da sucessão do poder
Do domínio
Do extermínio
E a fronteira se desfez
A guerra
Frígida
O sangue
Cálido
A mata inóspita
O deserto lúgubre
O ouro líquido
A ganância sólida
Crianças atônitas
Bombas atômicas
E a fronteira se desfez
As Globos
Velocidade das informações
Um globo
muitas globalizações
Ansiosa pressa
Medo do terror
George. W.W.W.bush.com
Com permissão para matar
Em nome de Deus
Contaminando o mundo
E a fronteira se desfez
Minha terra
Tua terra
Pronomes
Possessões
Liberdade e propriedade
Ambições
Minha letra
Tua música
Nossa poesia
Real pronome
E a fronteira já não há.
Poeta Morto
Hoje eu faço um poema breve
Com dizer mais leve
Que a neve que não caiu.
E me vou para o trabalho,
Só mais daqui a pouco
Louco? Não, apenas vagabundo.
Uma dia me disseram:
“Matem todos os poetas!”
Então sobrevivam, seus patetas,
Tensos, presos em seus grilhões...
Pois prefiro um poeta morto
Que um morto vivo a trabalho,
Buscando da vida os retalhos
No que resta do coração.
Com dizer mais leve
Que a neve que não caiu.
E me vou para o trabalho,
Só mais daqui a pouco
Louco? Não, apenas vagabundo.
Uma dia me disseram:
“Matem todos os poetas!”
Então sobrevivam, seus patetas,
Tensos, presos em seus grilhões...
Pois prefiro um poeta morto
Que um morto vivo a trabalho,
Buscando da vida os retalhos
No que resta do coração.
Piter Zander (poeta pescador dos campos gerais paranaenses)
Imagens 1. Carybé 2.Van Gogh
sábado, 1 de dezembro de 2007
"Sobre a crença em profetizações" ou "Da quiromancia, adivinhações e coisas afins"
Estudar a condição em que se encontra alguém que apelou às forças obscuras é um dos caminhos mais certos e rápidos para o conhecimento e para a crítica desses mesmos poderes. Pois cada prodígio tem seus dois lados, um para quem o faz, outro para quem o recebe. E não raramente o segundo lado é mais informativo que o primeiro, pois já contém em si o segredo deste. Se alguém pede que lhe esbocem a imagem grafológica ou quiromântica de sua vida, que lhe tracem o horóscopo, então no limitaremos por esta vez a perguntar: O que está sucedendo com ele? Poder-se-ia pensar que, antes de tudo, se trata de uma comparação e de um exame. Com maior ou menor ceticismo, examinará asserção após asserção. Na verdade, não é nada disso. Antes, o contrário. Em primeiro lugar, é uma curiosidade tão ardente com o resultado como se aí devesse esperar informação sobre alguém que lhe é muito importante mas totalmente desconhecido. O combustível desse fogo é a vaidade. Logo se torna um mar de chamas, pois agora ele se deparou com seu nome. Mas, se a exposição do nome já for em si uma das mais fortes influências que se pode pensar para seu portador (os americanos empregaram isso de modo prático, ao deixar que seus anúncios luminosos falassem a Smith e Brown), na adivinhação ela se liga obviamente ao conteúdo do que foi dito. Mas, com isso, a situação é a seguinte: a assim chamada imagem interior do próprio ser que trazemos em nós é, de minuto a minuto, pura improvisação. Ela se orienta, se assim podemos dizer, inteiramente de acordo com as máscaras que lhe são exibidas. O mundo é um arsenal de tais máscaras. Só o homem atrofiado ou desolado o busca como simulação em seu próprio interior. Pois nós mesmos somos em geral pobres de imagens. Por isso nada nos faz tão felizes como alguém que se aproxima de nós com uma caixa de máscaras exóticas e então nos apresenta os exemplares mais raros, a máscara do assassino, do magnata das finanças, do circunavegador. Olhar através delas nos encanta. Vemos as constelações, os instantes, nos quais fomos verdadeiramente um ou outro, ou todos de uma vez. Todos nós almejamos este jogo de máscaras como êxtase, e disso vivem até hoje os cartomantes, os quiromantes, os astrólogos. Sabem nos remontar para uma daquelas pausas silenciosas do destino que, só mais tarde, se observa que continham o gérmen do traçado de destino totalmente diferente daquele que nos foi concedido. Que o destino pare assim como um coração – isso percebemos com medo profundo e bem-aventurado, naquelas aparentemente tão mesquinhas, aparentemente tão errôneas imagens características de nós mesmos que o charlatão nos contrapõe. E tanto mais nos apressamos em lhe dar razão quanto mais sedentas sentimos subir em nós as sombras de vidas nunca vividas.
Walter Benjamin. Imagens do Pensamento. Obras escolhidas II (trad. José Carlos M. Barbosa)
L'Albatros
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule !
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid !
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait !
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer ;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
Charles Baudelaire (Les fleurs du mal)
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule !
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid !
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait !
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer ;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
Charles Baudelaire (Les fleurs du mal)
quinta-feira, 29 de novembro de 2007
A Consciência de Zeno
Henry Darger
A vida atual está contaminada até as raízes. O homem usurpou o lugar das árvores e dos animais, contaminou o ar, limitou o espaço livre. Mas o pior está por vir. O triste e ativo animal pode descobrir e pôr a seu serviço outras forças da natureza. Paira no ar uma ameaça deste gênero. Prevê-se uma grande riqueza... no número de homens. Cada metro quadrado será ocupado por ele. Quem se livrará da falta de ar e de espaço? Sufoco só de pensar nisto!
E infelizmente não é tudo.
Qualquer esforço de restabelecer a saúde será vão. Esta só poderá pertencer ao animal que conhece apenas o progresso de seu próprio organismo. Desde o momento em que a andorinha compreendeu que para ela não havia outra vida possível senão emigrando, o músculo que move as suas asas engrossou-se, tornando-se a parte mais considerável de seu corpo. A toupeira enterrou-se e todo o seu organismo se conformou a essa necessidade. O cavalo avolumou-se e seus pés se transformaram em cascos. Desconhecemos as transformações por que passaram alguns outros animais, mas elas certamente existiram e nunca lhes puseram em risco a saúde.
O homem, porém, este animal de óculos, ao contrário, inventa artefatos alheios ao seu corpo, e se há nobreza e valor em que os inventa, quase sempre faltam a quem os usa. Os artefatos se compram, se vendem, se roubam e o homem se torna cada vez mais astuto e fraco. Compreende-se mesmo que sua astúcia cresça na proporção de sua fraqueza. Suas primeiras máquinas pareciam prolongamentos de seu braço e só podiam ser eficazes em função de sua própria força, mas, hoje, o artefato já não guarda nenhuma relação com os membros. E é o artefato que cria a moléstia por abandonar a lei que foi a criadora de tudo o que há na Terra. A lei do mais forte desapareceu e perdemos a seleção salutar. Precisávamos de algo melhor do que a psicanálise: sob a lei do possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos.
Talvez por meio de uma catástrofe inaudita, provocada pelos artefatos, havemos de retornar à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem feito como todos os outros, no segredo de sua câmara qualquer neste mundo, inventará um explosivo incomparável, diante do qual os explosivos de hoje serão considerados brincadeiras inócuas. E um outro homem, também feito da mesma forma que os outros, mas um pouco mais insano que os demais, roubará esse explosivo e penetrará até o centro da Terra para pô-lo no ponto em que seu efeito possa ser o máximo. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, retornando à sua forma original de nebulosa, errará pelos céus, livre dos parasitas e das enfermidades.
Italo Svevo. A Consciência de Zeno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. pp. 421-422. Tradução: Ivo Barroso.
quarta-feira, 21 de novembro de 2007
I´m so tired
I'm so tired, I haven't slept a wink
I'm so tired, my mind is on the blink
I wonder should I get up and fix myself a drink
No,no,no.
I'm so tired I don't know what to do
I'm so tired my mind is set on you
I wonder should I call you but I know what you would do
You'd say I'm putting you on
But it's no joke, it's doing me harm
You know I can't sleep, I can't stop my brain
You know it's three weeks, I'm going insane
You know I'd give you everything I've got
for a little peace of mind
I'm so tired, I'm feeling so upset
Although I'm so tired I'll have another cigarette
And curse Sir Walter Raleigh
He was such a stupid get.
You'd say I'm putting you on
But it's no joke, it's doing me harm
You know I can't sleep, I can't stop my brain
You know it's three weeks, I'm going insane
You know I'd give you everything I've got
for a little peace of mind
I'd give you everything I've got for a little peace of mind
I'd give you everything I've got for a little peace of mind.
(Lennon/McCartney)
terça-feira, 20 de novembro de 2007
O tecido quebradiço das ilusões. Nietzsche sobre a origem da arte e da linguagem
"vocês deveriam (...) aprender a rir, meus jovens amigos, a menos que vocês queiram permanecer pessimistas por inteiro; talvez vocês, enquanto sorridentes, em algum momento mandem todo consolo metafísico para o inferno".
"há apenas um mundo e ele é falso, cruel, contraditório, sedutor, sem sentido. (...) Um mundo assim é o verdadeiro mundo (...). Precisamos da mentira para triunfarmos sobre essa realidade, essa "verdade", i.e., para viver. (...) Que a mentira seja necessária para se viver é parte desse caráter terrível e questionável da existência"
Texto de Mirko Wischke disponível em
segunda-feira, 19 de novembro de 2007
Aviso de naufrágio
O que será do destroço em que fui arremessado?
Sou consumido em suas cinzas de morte
Peço por socorro, clamo por saídas
Mas meus gritos não são capazes de ultrapassar os estrondos do mar
Já não sei se grito ou a voz moribunda e gutural
Que exalo submergindo nas águas
É um apelo animal frente ao predador
Ato grosseiro da natureza em dilaceração
Diluição.
EL GOLEM
Si (como el griego afirma en el Cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nilo en la palabra Nilo.
Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible Nombre, que la esencia
Cifre de Dios y que la Omnipotencia
Guarde en letras y sílabas cabales.
Adán y las estrellas lo supieron
En el Jardín. La herrumbre del pecado
(Dicen los cabalistas) lo ha borrado
Y las generaciones lo perdieron.
Los artificios y el candor del hombre
No tienen fin. Sabemos que hubo un día
En que el pueblo de Dios buscaba el Nombre
En las vigilias de la judería.
No a la manera de otras que una vaga
Sombra insinúan en la vaga historia,
Aún está verde y viva la memoria
De Judá León, que era rabino en Praga.
Sediento de saber lo que Dios sabe,
Judá León se dio a permutaciones
de letras y a complejas variaciones
Y al fin pronunció el Nombre que es la Clave.
La Puerta, el Eco, el Huésped y el Palacio,
Sobre un muñeco que con torpes manos
labró, para enseñarle los arcanos
De las Letras, del Tiempo y del Espacio.
El simulacro alzó los soñolientos
Párpados y vio formas y colores
Que no entendió, perdidos en rumores
Y ensayó temerosos movimientos.
Gradualmente se vio (como nosotros)
Aprisionado en esta red sonora
de Antes, Después, Ayer, Mientras, Ahora,
Derecha, Izquierda, Yo, Tú, Aquellos, Otros.
(El cabalista que ofició de numen
A la vasta criatura apodó Golem;
Estas verdades las refiere Scholem
En un docto lugar de su volumen.)
El rabí le explicaba el universo
"Esto es mi pie; esto el tuyo; esto la soga."
Y logró, al cabo de años, que el perverso
Barriera bien o mal la sinagoga.
Tal vez hubo un error en la grafía
O en la articulación del Sacro Nombre;
A pesar de tan alta hechicería,
No aprendió a hablar el aprendiz de hombre,Sus ojos, menos de hombre que de perro
Y harto menos de perro que de cosa,
Seguían al rabí por la dudosa
penumbra de las piezas del encierro.
Algo anormal y tosco hubo en el Golem,
Ya que a su paso el gato del rabino
Se escondía. (Ese gato no está en Scholem
Pero, a través del tiempo, lo adivino.)
Elevando a su Dios manos filiales,
Las devociones de su Dios copiaba
O, estúpido y sonriente, se ahuecaba
En cóncavas zalemas orientales.
El rabí lo miraba con ternura
Y con algún horror. ¿Cómo (se dijo)
Pude engendrar este penoso hijo
Y la inacción dejé, que es la cordura?
¿Por qué di en agregar a la infinita
Serie un símbolo más? ¿Por qué a la vana
Madeja que en lo eterno se devana,
Di otra causa, otro efecto y otra cuita?
En la hora de angustia y de luz vaga,
En su Golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía
Dios, al mirar a su rabino en Praga?
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nilo en la palabra Nilo.
Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible Nombre, que la esencia
Cifre de Dios y que la Omnipotencia
Guarde en letras y sílabas cabales.
Adán y las estrellas lo supieron
En el Jardín. La herrumbre del pecado
(Dicen los cabalistas) lo ha borrado
Y las generaciones lo perdieron.
Los artificios y el candor del hombre
No tienen fin. Sabemos que hubo un día
En que el pueblo de Dios buscaba el Nombre
En las vigilias de la judería.
No a la manera de otras que una vaga
Sombra insinúan en la vaga historia,
Aún está verde y viva la memoria
De Judá León, que era rabino en Praga.
Sediento de saber lo que Dios sabe,
Judá León se dio a permutaciones
de letras y a complejas variaciones
Y al fin pronunció el Nombre que es la Clave.
La Puerta, el Eco, el Huésped y el Palacio,
Sobre un muñeco que con torpes manos
labró, para enseñarle los arcanos
De las Letras, del Tiempo y del Espacio.
El simulacro alzó los soñolientos
Párpados y vio formas y colores
Que no entendió, perdidos en rumores
Y ensayó temerosos movimientos.
Gradualmente se vio (como nosotros)
Aprisionado en esta red sonora
de Antes, Después, Ayer, Mientras, Ahora,
Derecha, Izquierda, Yo, Tú, Aquellos, Otros.
(El cabalista que ofició de numen
A la vasta criatura apodó Golem;
Estas verdades las refiere Scholem
En un docto lugar de su volumen.)
El rabí le explicaba el universo
"Esto es mi pie; esto el tuyo; esto la soga."
Y logró, al cabo de años, que el perverso
Barriera bien o mal la sinagoga.
Tal vez hubo un error en la grafía
O en la articulación del Sacro Nombre;
A pesar de tan alta hechicería,
No aprendió a hablar el aprendiz de hombre,Sus ojos, menos de hombre que de perro
Y harto menos de perro que de cosa,
Seguían al rabí por la dudosa
penumbra de las piezas del encierro.
Algo anormal y tosco hubo en el Golem,
Ya que a su paso el gato del rabino
Se escondía. (Ese gato no está en Scholem
Pero, a través del tiempo, lo adivino.)
Elevando a su Dios manos filiales,
Las devociones de su Dios copiaba
O, estúpido y sonriente, se ahuecaba
En cóncavas zalemas orientales.
El rabí lo miraba con ternura
Y con algún horror. ¿Cómo (se dijo)
Pude engendrar este penoso hijo
Y la inacción dejé, que es la cordura?
¿Por qué di en agregar a la infinita
Serie un símbolo más? ¿Por qué a la vana
Madeja que en lo eterno se devana,
Di otra causa, otro efecto y otra cuita?
En la hora de angustia y de luz vaga,
En su Golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía
Dios, al mirar a su rabino en Praga?
Jorge Luis Borges
Imagem: L'Ange du foyer ou Le Triomphe du surréalisme.1937. Max Ernst.
sexta-feira, 2 de novembro de 2007
KARÚMI & MU-GA, MU-I
KARÚMI (a leveza)
‘karui’, adjetivo, é ‘leve’. Como uma pluma. Em seus últimos anos, dizem, Bashô insistia muito neste conceito. ‘Karúmi’ é não pesar a mão. Não deixar a arte aparecer, na obra de arte. ‘Karúmi’ é fazer as coisas de tal forma que o necessário e o arbitrário, que estão sempre indissoluvelmente ligados na obra de arte, não possam ser distinguidos. É conseguir dar a impressão que um haikai que levou muito tempo para atingir sua forma final pareça nascido na hora, ‘espontaneamente’. É ocultar a arte, fazer desaparecer o processo, fazer a arte parecer não-arte. ‘Karúmi’ é a qualidade que, dissolvendo e dissipando a fronteira entre natureza e cultura, faz o artefato cultura parecer e aparecer como um produto da natureza. ‘Heiter ist die Kunst’ límpida é a arte, disse o poeta alemão Schiller.
MU-GA, MU-I (o não-Eu, o não-fazer)
Intimamente ligados ao conceito de ‘karúmi’ os conceitos artísticos, mas religiosos na base, de ‘muga’ e ‘mu-i’. ‘Mu-ga’ é ‘não-Eu’. ‘Mu-i’ é não-Fazer’. São conceitos taoístas incorporados pelo Zen Budismo. ‘Mu-ga’ é ‘despersonalização”, a condição para a verdadeira criação artística, que se dá, pura, quando a ‘persona’, a máscara convencional do nosso eu cai e aflora a força original e indeterminada da nossa natureza, genérica e coletiva, impessoal e anônima. A arte ocidental (principalmente a poesia) sempre colocou ênfase exagerada na expressão do ‘eu’, tendência exacerbada pelo romantismo. ‘Mu-i’, ‘não-fazer’, é um conceito tipicamente taoísta. E é um princípio dinâmico. Um fazer taoísta é um fazer conforme o Tao, conforme a lógica intima do processo das coisas, (...) vale dizer, um não-fazer. No terreno da criação artística, ‘mu-i’ favorece a espontaneidade sábia, a entrega ao processo, a obliteração e anulação de um ego que quer fazer algo, dando lugar a um criar que se assemelha mais aos processos da natureza, um deixar-se ir, uma Abertura. Tributário desta concepção, o músico de vanguarda americano John Cage, que usa as indeterminações aleatórias do I-Ching, como método de disciplinamento (a mortificação) do Ego. A obra é um fruto de conjunções e conjunturas que independem de um eu que quer e, como quer, faz. Disse um sábio chinês: ‘faça as coisas como elas mesmas fariam, se pudessem'.
LEMINSKI, Paulo. Ventos ao vento. Rabiscos em direção a uma estética. In: Ensaios e anseios crípticos. (Organização e seleção Alice Ruiz e Áurea Leminski). Curitiba : Pólo editorial do Paraná : 1997. pp. 87-88. Foto: E. Erwitt.